BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) - O governo francês reagiu com cólera ao anúncio de que a Austrália trocaria a França pelos Estados Unidos em um contrato de construção de submarinos nucleares.

“Foi uma punhalada nas costas. Estou realmente enraivecido, muito amargo”, disse nesta quinta (16) o ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, à rádio France Info.

Sobrou também para o governo do presidente americano, Joe Biden, que foi comparado a seu antecessor, o republicano Donald Trump. “O que me preocupa também é o comportamento americano. Essa decisão unilateral, brutal, imprevisível se parece muito com o que fazia Trump”, disse ele.

Na divulgação realizada na quarta, Biden havia mencionado a França como “parceiro e aliado chave” na região, mas Le Drian diz que o anúncio é uma traição, após meses de conversa sobre atuação conjunta.

Furiosas, autoridades francesas cancelaram um evento de gala que comemoraria nesta sexta a ajuda da marinha francesa na batalha de 1781 pela independência americana, segundo o New York Times. O principal oficial naval da França, que havia viajado a Washington para a festividade, antecipou sua volta a Paris.

A nova parceria com os EUA e o Reino Unido significa o cancelamento de um contrato assinado entre França e Austrália em 2016, que chegaria a US$ 90 bilhões (R$ 475 bilhões, pelo câmbio atual), segundo a mídia do país. Mas é principalmente um golpe para as ambições francesas de fortalecer sua presença na região do Indo-Pacífico, palco de disputas territoriais —entre outras— envolvendo a China.

A Marinha da França é a única, entre as dos países da União Europeia (UE), com presença relevante na região, onde ficam seus territórios ultramarinos da Nova Caledônia e da Polinésia Francesa, com 2 milhões de cidadãos franceses.

A diplomacia da UE também reclamou da forma como a decisão foi tomada e anunciada. “Nem sequer fomos consultados. Como alto representante de segurança, eu não sabia e presumo que um acordo dessa natureza não foi feito da noite para o dia”, disse o chefe de Relações Exteriores do bloco, Josep Borrell.

Segundo ele, o incidente deve despertar os membros da UE para a necessidade de empregar meios e ação política para assumir papel geopolítico relevante. “A Europa precisa existir por si mesma, pois os outros existem por si mesmos.”

Na semana que vem, os Estados Unidos vão presidir pela primeira vez um encontro presencial de chefes de Estado do Quad, grupo que também inclui Japão, Índia e Austrália e procura cercar estrategicamente a China e suas saídas para o mar.

Embora critique a ação isolada dos americanos e britânicos no anúncio de parceria com a Austrália, o representante do bloco europeu disse que o episódio não deve provocar uma crise nas relações entre EUA e UE: “Não dramatizemos. Gostaríamos de ter sido avisados, lamentamos não ser parte disso, mas não há motivo para questionar nossa relação com os EUA, que melhorou muito recentemente”.

UE LANÇA PLANO PARA INDO-PACÍFICO

A aliança tripartite acabou obscurecendo o anúncio feito, também nesta quinta, de um plano estratégico da UE para atuação no Indo-Pacífico, que, entre outras coisas, inclui a implantação de um acordo comercial com a Austrália. Borrell afirmou que as negociações desse tratado não seriam afetadas pela quebra de contrato com a França: “Não vamos misturar as coisas. Os acordos seguirão seus caminhos”.

Os planos europeus para o sul e o sudeste asiático são descritos por analistas como uma forma de conter a influência crescente da China, mas o representante da UE preferiu ressaltar que se trata de uma “estratégia de cooperação, não de confrontação”.

O braço militar do programa é citado em penúltimo lugar entre nove ações apresentadas pela Comissão Europeia: o bloco pretende “explorar formas de garantir destacamentos navais reforçados pelos Estados-membros da UE para ajudar a proteger as linhas marítimas de comunicação e liberdade de navegação no Indo-Pacífico, ao mesmo tempo que aumenta a capacidade dos parceiros no Indo-Pacífico para garantir a segurança marítima”.

Uma aproximação militar com países que resistem a ambições territoriais chinesas “será vista com menos bons olhos por alguns”, disse Borrell, embora insista que o objetivo não é se contrapor ao gigante asiático. “É um delicado equilíbrio nas relações, que não será fácil, mas não deve ser visto como confrontação”.

Além dos tratados comerciais com Austrália, Indonésia e Nova Zelândia, são propostas a retomada de negociações com a Índia e um possível início de conversas comerciais com Malásia, Filipinas e Tailândia.

Segundo Borrell, um dos principais focos é a diplomacia climática —a União Europeia pretende investir em energia renovável nos países mais pobres do bloco e firmou em maio deste ano uma parceria com o Japão para ações de combate à mudança climática.

Com as nações mais desenvolvidas, Japão, Coreia do Sul e Cingapura, a UE quer fazer parcerias digitais e de padronização tecnológica, além de aumentar a conectividade com a Índia.

A UE é hoje o maior investidor na região, com valores que chegam ao dobro dos investimentos americanos, o principal parceiro de cooperação para o desenvolvimento e um dos principais parceiros comerciais: juntos, Europa e Indo-Pacífico têm mais de 70% do comércio global de bens e serviços e mais de 60% dos fluxos de investimento direto estrangeiro.