Autor escocês repassa produção literária de ditadores dos séculos 20 e 21
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sábado, 08 de maio de 2021
CARLOS GRALEB
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Cerca de 15 anos atrás, o escritor escocês Daniel Kalder pretendeu criar um movimento antiturismo. Paisagens e monumentos célebres já não têm nada a oferecer, dizia ele. As únicas paragens dignas de ser visitadas são "as terras devastadas, os buracos negros, as áreas urbanas sinistras".
Dada essa preferência, não chega a ser surpreendente que, ao escrever não sobre lugares, mas sobre outros livros, ele tenha escolhido explorar as obras assinadas pelos déspotas dos séculos 20 e 21. "Este é um livro sobre alguns dos piores livros já escritos e, portanto, foi uma pesquisa terrivelmente dolorosa", diz ele sobre "A Biblioteca dos Ditadores". "É por isso que eu o fiz."
A expressão "piores livros" se refere ao conteúdo ou à forma? Aos dois. Para Kalder, nada redime a literatura ditatorial. Ele começa sua jornada com expectativas negativas e a encerra sem mudar de opinião. Ninguém espere encontrar no texto defesas como a que o filósofo esloveno Slavoj Zizek costuma fazer de Lênin ou Mao. Kalder é menos imaginativo e muito mais sensato. Acredita que o terror político jamais compensa, não importa qual seja a causa.
Lênin é apontado como fundador do "cânone ditatorial". Seus livros contêm a lógica do Estado totalitário e o passo a passo para implementá-la. Depois vêm os "quatro grandes" do século 20: Stálin, Mussolini, Hitler e Mao. Kalder prossegue, então, colhendo nomes à esquerda e à direita, em todos os continentes. Franco, Salazar, Tito, Nasser, Kim Il-sung, Fidel, Idi Amin, Gaddafi, Khomeini, Saddam Nenhum deles se absteve de escrever copiosamente para destruir adversários, doutrinar seguidores ou construir o próprio mito.
Em tom cômico-ranzinza, Kalder demonstra que, em regra, os ditadores escrevem de forma obscura e tediosa. Seus voos retóricos costumam levar ao ridículo. Mas, vez por outra, há uma quebra nessa lógica. Kalder reconhece no aiatolá Khomeini o dom da clareza analítica. Concede a Mao o talento do aforismo. E quase simpatiza com a modéstia do português Salazar, cujas obras "são interessantes pelo grande esforço para não gerar empolgação".
Uns poucos ditadores causam surpresa genuína. Em suas memórias da Primeira Guerra, Mussolini revela-se "um observador perspicaz e até poético". E ele ainda escreveu um romance. "A Amante do Cardeal", diz Kalder, é marcado por uma trama complicadíssima e uma "fisicalidade sádica e indisciplinada".
Há outros dois ditadores-romancistas: o generalíssimo Franco, da Espanha, e Saddam Hussein, do Iraque. O primeiro escreveu "Raça", em que dois irmãos lutam em lados opostos da Guerra Civil Espanhola (1936-39). O irmão que luta pelos nacionalistas é um alter-ego de Franco que, depois de vencer a batalha, jura lealdade ao líder do país. Ou seja, Franco jura lealdade a Franco, o que Kalder descreve divertidamente como um "momento de vanguarda".
Quanto a Saddam, pouco antes de ser deposto ele havia se apaixonado pela escrita de ficções históricas. Em sua obra-prima "Zabiba e o Rei", uma avó conta ao netinho histórias de um passado cheio de sangue e estupros, informando-o, inclusive, que em certa região do Iraque os ursos costumam tomar seres humanos como amantes.
"A Biblioteca dos Ditadores" pode ser descrito como um livro para evitar a leitura de outros livros. Tudo que você precisa saber sobre a história da prosa totalitária está ali, com as devidas sentenças condenatórias. Pena que não se trate de um gênero defunto. No futuro, uma empreitada semelhante à de Kalder ainda vai fazer sentido dessa vez escavando o Twitter e não estantes empoeiradas.
A BIBLIOTECA DOS DITADORES
Preço: Entre R$ 38,66 (capa comum) e R$ 17,91 (digital), na Amazon
Autor: Daniel Kalder
Editora: HarperCollins