'Ataque dos Cães' vê o lado gay do caubói machão, mas não só isso
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quarta-feira, 08 de dezembro de 2021
INÁCIO ARAUJO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Pode-se dizer, para simplificar, que a palavra gay tornou-se, nos últimos tempos mais um ponto de venda do que outra coisa. "Faroeste gay": eis como se apresenta "Ataque dos Cães". É menos inexato, em todo caso, do que a tradução escolhida para "The Power of the Dog", mas passemos.
Estamos em Montana, 1925. O faroeste, a rigor, já acabou. Mas os rancheiros e caubóis continuam a toda nesse oeste distante. Ali estão os irmãos Phil e George Burbank. Ali também está a viúva Rose Gorden e seu filho Peter, que servem o almoço para os peões e seus patrões, os Burbank.
O primeiro a chamar a atenção é Peter, cujos modos delicados despertam a ira dos machões da mesa, comandados por Phil. Peter se defende como pode: ignora-os. Seu objetivo é ir para a faculdade e se tornar cirurgião.
George, o mais civilizado dos Burbank, aproxima-se da viúva, com quem se casará pouco depois. Phil não aprecia a ideia. Odeia o menino, notabiliza-se pela misoginia e vive imerso na lembrança de seu falecido mestre, Bronco Henry, o homem que lhe ensinou como montar a cavalo.
Desde então começamos a perceber o quanto será difícil dizer que esse conjunto de personagens forma de fato um conjunto. É como se cada um vivesse em um universo próprio. George com suas viagens de negócios e proximidade com o governo; Phil, com o fantasma de Bronco Henry, o mestre de sua vida; Rose sentindo-se deslocada --quando não hostilizada-- todo o tempo; Peter dissecando animais em seu quarto. Aproveita as férias no campo para praticar, preparando-se para futuras cirurgias.
São todos solitários, unidos somente pela beleza da paisagem, que Jane Campion explora com delicadeza. A mesma com que trata seus personagens, por sinal. Como o casal Rose-George: para Rose, o marido encomenda um piano de meia cauda. Gesto amoroso, talvez, mas deslocado: ela é uma pianista sem prática, que acompanhava uma orquestra no fosso de um cinema --estamos na era do filme mudo. Será chamada a tocar para o governador...
Que importa? Cada um está em seu mundo. Inclusive Peter, que com seu físico franzino passa altivamente pelos caubóis que adoram insultá-lo. Com o tempo, Phil parece abandonar a hostilidade e dispõe-se a uma aproximação com o jovem Peter. Quer ensinar-lhe a arte da montaria e tal, tudo como seu velho mestre Bronco Henry fez com ele.
A insinuação de homossexualidade do caubói machão é evidente --mas está longe de ser o essencial do filme. A insinuação em relação ao jovem Peter é bem mais estranha, pois de início ele parece francamente afeminado, característica que vai perdendo com o tempo.
E mesmo a aproximação com Phil --e dadas as consequências de tal proximidade-- pode-se associar menos a uma ligação de natureza sexual entre os dois do que a uma pérfida vingança contra o homem que maltratou a ele e à sua mãe.
Esse último item decorre de algumas associações que envolvem de dissecação de animais a conhecimentos médicos e a existência de revista de cultura física, sobre as quais não convém deter-se aqui. De todo modo, isso não impede que esse "Ataque dos Cães" seja visto como um filme com aspectos claramente gays, é certo.
Ao mesmo tempo, é de se levar em consideração que nos últimos tempos tem sido bastante exposta a tendência a relações gays em locais enclausurados --prisões, quartéis, claustros et cetera--, tanto quanto no campo aberto, onde a ausência feminina é prolongada.
Jane Campion é enfática a esse respeito --a notar: o banho no rio dos caubóis machões, cuja macheza parece desaparecer com a nudez--, mas ao mesmo tempo não esquece as virtudes da discrição e da elegância. Nem perde de vista por isso o conjunto de seu filme. Sim, existem gays, no filme e fora dele, devem ganhar o direito à visibilidade e à representação. Mas é como se Campion nos lembrasse que sua existência não se limita à orientação sexual e que nem é só disso que o mundo é feito.
Por fim, os últimos anos têm sido pródigos em faroestes surpreendentemente inovadores. "Ataque dos Cães" é bem interessante, embora bem menos instigante do que filmes como "Vingança e Castigo" -- do setor popular-- ou "O Atalho" e "First Cow" --na vanguarda.
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ATAQUE DOS CÃES
Onde: Disponível na Netflix
Classificação: 14 anos
Elenco: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons
Produção: Reino Unido/Canadá, 2021
Direção: Jane Campion
Avaliação: Bom