SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Apoiadores dos militares, alguns armados com facas e cassetetes, atacaram grupos de manifestantes que protestavam nesta quinta-feira (25) contra o golpe de Estado em Mianmar, aumentando subitamente a tensão dos atos que já duram três semanas.

O país está em crise política, econômica e diplomática desde que as Forças Armadas tomaram o poder em 1º de fevereiro e depuseram toda a cúpula do governo civil, alegando fraude nas últimas eleições parlamentares.

Milhares de pessoas têm ido às ruas diariamente em todas as regiões do país, mas nesta quinta uma das manifestações em Rangoon, a maior cidade de Mianmar, foi dispersada antes mesmo de começar.

Cerca de mil apoiadores dos militares investiram contra grupos de estudantes, multiplicando relatos de espancamentos e até de esfaqueamentos. Nas redes sociais, há fotos e vídeos de manifestantes sendo ameaçados e fugindo de homens armados com facas.

Portando faixas com dizeres como "apoiamos nossas forças de defesa", os grupos favoráveis ao Exército tiveram acesso a áreas que estavam isoladas há dias para impedir o acesso de manifestantes pró-democracia e foram alvos de acusações de que estariam sendo pagos pelas Forças Armadas para agirem a seu favor.

"Eles [os partidários do Exército] têm o direito de protestar, mas não deveriam ter usado armas", declarou um manifestante ferido nas costelas por um dos apoiadores dos militares à agência de notícias AFP. "São uns brutos."

Na Universidade de Rangoon, a polícia bloqueou os portões do campus para impedir centenas de alunos de saírem para um protesto.

"Os eventos de hoje mostram quem são os terroristas. Eles temem a ação do povo pela democracia"< disse o ativista Thin Zar Shun Lei Yi à agência de notícias Reuters. "Continuaremos nossos protestos pacíficos contra a ditadura."

Min Aund Hlaing, chefe das Forças Armadas que agora comanda o país, disse que as forças de segurança "estão exercendo o máximo de contenção por meio do uso mínimo da força".

O número de mortos, no entanto, subiu para cinco, incluindo uma jovem de 20 anos atingida por um tiro na cabeça e que faleceu após dez dias de internação e um adolescente também ferido à bala na cabeça durante um protesto em Mandalay. Já o número de detidos chegou a 728, de acordo com a Associação de Assistência a Prisioneiros Políticos de Mianmar.

Por esses e outros atos de violência, o Facebook anunciou nesta quinta o banimento de todas as contas vinculadas à junta militar de Mianmar que ainda estavam abertas --no último domingo (21), a plataforma já tinha fechado a principal página das Forças Armadas.

"Os eventos desde o golpe de 1º de fevereiro, incluindo violência mortal, precipitaram a necessidade dessa proibição", disse a empresa, por meio de um comunicado. "Acreditamos que os riscos de permitir o Tatmadaw [como é conhecido o Exército de Mianmar] no Facebook e Instagram são grandes demais."

A plataforma afirmou ainda que tomou a decisão de banir devido a "violações excepcionalmente graves dos direitos humanos e ao claro risco de violência iniciada pelos militares no futuro de Mianmar", bem como ao histórico do Exército de não cumprir as regras do Facebook.

Serão bloqueadas todas as páginas e perfis diretamente ligados aos militares, bem como meios de comunicação controlados pelo Exército e ministérios sob direção militar direta. Empresas que apoiaram o golpe ou tenham relações com a junta também não poderão fazer anúncios na rede. Agências do governo responsáveis por serviços essenciais não serão banidas.

Nos últimos anos, o Facebook se envolveu com ativistas de direitos civis e partidos políticos democráticos em Mianmar e se opôs aos militares depois de sofrer críticas internacionais pela missão em conter campanhas e discursos de ódio na plataforma.

O chefe das Forças Armadas e outros 19 oficiais e organizações já haviam sido banidos pela rede social em 2018. Outras centenas de páginas e contas geridas por militares também foram removidas por "comportamento inautêntico coordenado"-- termo técnico utilizado pela equipe do Facebook para se referir ao uso de múltiplas contas falsas para disseminar conteúdo ou aumentar interações na rede.

Pouco antes das eleições parlamentares de novembro, a plataforma, que chegou a ser bloqueada no país após o golpe, também retirou do ar uma rede de 70 contas e páginas falas operadas por militares que publicavam conteúdo favorável ao Exército e contrário à conselheira de Estado, Aung San Suu Kyi, e a seu partido, a Liga Nacional pela Democracia (LND).

A LND, que comanda o país desde 2015, obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento nas últimas eleições em Mianmar, realizadas em novembro do ano passado. A legenda, entretanto, foi impedida de assumir quando o golpe foi aplicado no dia da posse da nova legislatura. O Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, obteve apenas 33 cadeiras.

O Exército vem tentando usar supostas acusações de fraude no pleito como justificativa para a tomada de poder. Os militares também acrescentaram à narrativa o argumento de que a comissão eleitoral do país usou a pandemia de coronavírus como pretexto para impedir a realização de uma campanha justa. Dizem ainda que agiram de acordo com a Constituição e que a maior parte da população apoia sua conduta, acusando manifestantes de incitarem a violência.

"Colocaremos em operação uma verdadeira democracia multipartidária", declarou o novo regime, acrescentando que o poder será transferido após "a realização de eleições gerais livres e justas".

A promessa, apesar de reiterada, é encarada com ceticismo pelos mianmarenses opositores e por observadores internacionais. No campo diplomático, ocupa o centro de um esforço coordenado pela Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean), grupo formado por Mianmar, Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Filipinas, Tailândia, Singapura e Vietnã.

O ministro das Relações Exteriores da Indonésia, Retno Marsudi, reuniu-se na Tailândia com seu homólogo militar nomeado por Mianmar, Wunna Maung Lwin, para discutir formas de amenizar as crises no país.

Há temores entre os opositores do regime mianmarense, porém, de que a intervenção indonésia poderia conferir legitimidade à junta militar e à sua tentativa de cancelar a eleição de novembro e organizar um novo pleito.

Retno não mencionou as eleições durante uma entrevista coletiva após o encontro, mas enfatizou que a Asean busca um "processo de transição democrática inclusivo".

De acordo com uma apuração da Reuters, a Indonésia teria proposto aos demais membros do bloco que enviassem observadores a Mianmar para garantir que os generais cumprissem sua promessa de "eleições justas e livres", o que, na prática, significaria aceitar a anulação dos resultados do pleito de novembro.

O primeiro-ministro da Tailândia, Prayuth Chan-ocha, também se reuniu com o representante mianmarense e, nesta quinta, negou que o encontro ocorrido na quarta em Bancoc representasse algum tipo de endosso aos militares.

"A questão política é um assunto do país deles. Quero encorajá-los a levar o país rumo à democracia o mais rápido possível", disse Prayuth, um general reformado do Exército tailandês que assumiu o poder em um golpe, em 2014, e se tornou primeiro-ministro civil em um disputada eleição cinco anos depois, que ele disse ter sido livre e justa.

No Ocidente, as críticas e sanções contra os militares mianmarenses continuam. O Reino Unido incluiu mais seis nomes na lista que já continhha 19 membros das Forças Armadas sancionados pelo governo britânico.

"O pacote de medidas [desta quinta] envia uma mensagem clara ao regime militar em Mianmar de que os responsáveis pelas violações dos direitos humanos serão responsabilizados e as autoridades devem devolver o controle a um governo eleito pelo povo,", disse o ministro das Relações Exteriores britânico, Dominic Raab.

O Banco Mundial também anunciou a suspensão o envio de ajudas a Mianmar, que em 2020 somaram US$ 900 milhões (R$ 4,89 bilhões). "O Banco também pode pedir o reembolso dos fundos que considera que não são necessários para a realização de projetos", advertiu Mariam Sherman, diretora de operações da entidade no Sudeste Asiático.

Países como EUA, Canadá, Austrália, Japão, Índia e Nova Zelândia também têm feito apelos sobre a necessidade de rápida restauração da democracia e, em alguns casos, anunciaram sanções aos generais que assumiram o comando do país.

O presidente americano, Joe Biden, cujo governo considera a tomada de poder em Mianmar um golpe de Estado, anunciou no início do mês um conjunto de sanções contra os militares, incluindo o bloqueio de bens do governo mianmarense, que somam US$ 1 bilhão (R$ 5,3 bi).

Há, entretanto, poucas referências históricas de militares mianmarenses cedendo a pressões externas, com exceção das influências de Rússia e China. Pequim, como principal parceiro regional de Mianmar, vinha adotando uma abordagem mais branda, sem condenar abertamente o golpe. Mais recentemente, porém, juntou-se a outros países-membros do Conselho de Segurança da ONU para pedir a libertação de Suu Kyi.

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, por sua vez, não mencionou golpe militar ou presos políticos em uma nota divulgada sobre o assunto e limita-se a dizer que tem a expectativa de "um rápido retorno do país à normalidade democrática e de preservação do Estado de Direito".

CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR

1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente

1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar

1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência

1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais

1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder

1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz

1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições

2008: Assembleia aprova nova Constituição 2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido

2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento 2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro

2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência

2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar

2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado