SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um dos mais influentes aliados do presidente Vladimir Putin fez críticas diretas ao negociador-chefe da Rússia para a tentativa de paz com a Ucrânia, dizendo que ele se expressou incorretamente ao sugerir concessões a Kiev.

"Nós vamos até a vitória com nosso presidente!", disse, em seu canal no Telegram, o ditador da Tchetchênia, Ramzan Kadirov.

Se não está perto de ser um rompimento, a manifestação sugere duas coisas. Primeiro, uma insatisfação entre os elementos mais radicais no apoio à guerra conduzida por Putin no país vizinho desde o fim de fevereiro. Segundo, que Kadirov joga para essa mesma plateia, ante as críticas que circulam sobre o desempenho de suas forças na Ucrânia.

"Nós não faremos nenhuma concessão. Foi [o negociador Vladimir] Medinski que cometeu um erro, usou frases erradas. Se você acha que ele [Putin] irá desistir o que ele começou, do jeito que nos foi colocado, isso não é verdade", afirmou o tchetcheno.

Nas negociações ocorridas na segunda (29) em Istambul, Medinski falou sobre os termos colocados no papel pelos ucranianos e sobre o anúncio de que as conversas seriam facilitadas por uma redução na atividade militar em torno de Kiev e Tchernehiv.

Apesar de ataques pontuais seguirem e da desconfiança geral no Ocidente de que os russos estão apenas se reagrupando, Kadirov tomou a ideia de recuo ao pé da letra para elaborar sua crítica. Detalhe: o anúncio inicial havia sido feito por Alexander Fomin, vice-ministro da Defesa, o que também adiciona dúvidas sobre o alinhamento no governo russo.

Ele não é um aliado qualquer. Putin ascendeu ao poder em 1999 como premiê do governo Boris Ielstin com a missão de finalizar a guerra na Tchetchênia, pequena e indócil república separatista muçulmana que havia humilhado o Kremlin em uma guerra de 1994 a 1996. O território permanecia livre, mesmo sendo um ente federal russo herdado da União Soviética, dissolvida em 1991.

Putin usou de ampla brutalidade e, no ano seguinte, havia subjugado os tchetchenos, inclusive utilizando algumas táticas de cerco a cidades vistas agora na Ucrânia. Cedeu o poder a um senhor da guerra local, o pai de Ramzan, Akhmat.

Em 2004, o ditador foi morto em um atentado e o filho tomou o seu lugar paulatinamente, assumindo plenos poderes com apoio do Kremlin três anos depois. Grozni, a capital que havia virado ruína, foi reconstruída com dinheiro russo e dos contatos de Kadirov no Golfo Pérsico --há uma pitoresca "mini-Dubai" com prédios espelhados no centro da cidade de estilo soviético e coalhada de homenagens a Putin e Akhmat.

Em casa, Kadirov aplicou linha dura, suprimiu violentamente tanto extremistas islâmicos (ele é de um ramo moderado da religião) quanto ativistas de direitos humanos e da população LGBTQIA+, pelo que é considerado um pária no Ocidente.

Os tchetchenos têm fama de guerreiros irascíveis, e o canal de Kadirov propagandeia seus supostos feitos na Ucrânia. O próprio ditador disse ter estado perto de Kiev, algo bastante duvidoso, e postou fotos nesta semana dizendo estar na área de Mariupol.

Numa, orava em um posto de gasolina da Rosneft, estatal russa que não opera na Ucrânia. Noutra, ouvia um general russo de fato envolvido na ação em Mariupol, em local não divulgado.

Na sua fala desta quarta (30), ele estava no ornado gabinete de governo em Grozni, onde até as tesouras são douradas. A ostentação e o gosto por esporte são marcas do ditador: na Copa de 2018, ele bancou a estadia do Egito de Mohammad Salah na cidade, sem dar muita sorte aos hóspedes, e já recebeu brasileiros como o ex-lateral da seleção Roberto Carlos.

Ele se descreve como "o primeiro soldado raso de Putin" e prega lealdade ao Kremlin. Suas forças de fato estão em Mariupol e foram, segundo relatos, responsáveis por diversos combates para controlar a cidade. Mas elas ficam sob o guarda-chuva da Rosvgardia, a Guarda Nacional de Putin que é separada das Forças Armadas, em ações do estilo operações especiais, sem equipamento pesado geralmente.

A associação russo-tchetchena leva a cenas curiosas para um país que lutou uma guerra cruenta contra islâmicos nos anos 1990: o grito de guerra da turma é "Sila Akhmat! Allahu Akhbar!" --"Força Akhmat!" seguido do "Deus é o maior", que está na boca de todo combatente muçulmano no mundo.

Bandeiras com a imagem do pai de Kadirov são onipresentes nas ações coreografadas para celulares, e o ditador faz pregação constante contra o Batalhão Azov, unidade neonazista ucraniana que enfrentou em Mariupol.