BAURU, SP (FOLHAPRESS) - Pela primeira vez na história da Alemanha, duas mulheres transexuais conquistaram assentos no Bundestag, o Parlamento do país, na eleição do último domingo (26).

Tessa Ganserer, 44, e Nyke Slawik, 27, concorreram pelos Verdes, partido que ficou em terceiro lugar no pleito e garantiu 118 das 735 cadeiras para o próximo mandato. A legenda deve desempenhar um papel central na construção da coalizão para o novo governo.

O SPD de Olaf Scholz, de centro-esquerda, elegeu o maior número de deputados: 206; serão dez assentos a mais que os de sua principal concorrente, a União (CDU/CSU), de centro-direita, partido do candidato Armin Laschet e da primeira-ministra Angela Merkel. O nome do novo premiê depende das costuras feitas por cada legenda para formar uma coalizão que garanta maioria no Parlamento.

"É uma vitória histórica para os Verdes, mas também para o movimento emancipatório [das pessoas] trans e para a toda a comunidade queer", disse Ganserer à agência de notícias Reuters. Para ela, os resultados indicam que a sociedade alemã está se tornando mais aberta e tolerante.

Entre suas prioridades no Legislativo, ela elencou a permissão para que mães lésbicas adotem crianças e a desburocratização do procedimento para a mudança de gênero em documentos de identidade.

A própria parlamentar teve que concorrer à vaga no Bundestag usando seu nome de batismo porque se recusou a se submeter à lei que há 40 anos exige um atestado médico de saúde mental para que uma pessoa transgênero mude legalmente seu nome e sua identidade de gênero.

A exigência pode custar de centenas a milhares de dólares e tem um peso estigmatizante, já que, na prática, trata a transexualidade como doença --a Organização Mundial da Saúde (OMS) a retirou da lista de transtornos mentais em 2018.

Em maio, o Bundestag rejeitou dois projetos de lei propostos pelos Verdes e pelos liberais do FDP que permitiriam às pessoas trans a retificação de documentos de identidade sem a exigência do laudo médico.

Outra demanda importante para a comunidade LGBTQIA+, segundo Ganserer, é a busca por indenizações e um pedido oficial de desculpas do Estado alemão a pessoas trans que foram forçadas a se esterilizar ou a passar por cirurgias de redesignação de gênero --estima-se que mais de 100 mil alemães tenham sido esterilizados até 2011, quando a Justiça declarou o procedimento ilegal.

Slawik, outra trans recém-eleita, garantiu um assento no Parlamento por meio da lista dos Verdes no estado da Renânia do Norte-Vestfália. "Ainda não consigo acreditar", escreveu ela nas redes sociais.

A deputada pretende fazer avançar no Legislativo alemão um plano de ação nacional contra a homofobia e a transfobia, além de leis de autodeterminação de gênero e antidiscriminação.

"Em uma época em que as pessoas ainda zombam de nós, quando algumas pessoas trans ainda enfrentam bullying ou perdem seus empregos [devido à sua identidade de gênero], isso é histórico", disse Slawik. "Pela primeira vez, vamos deixar de ser vítimas na sociedade e ficar em pé por conta própria."

Até 1969, ser homossexual era crime na Alemanha. Pessoas do mesmo sexo podem se casar legalmente no país desde 2017. As estatísticas mais recentes, no entanto, apontam aumento de 36% nos crimes de ódio contra a comunidade LGBTQIA+ em 2020.

No último domingo, a Alemanha também elegeu a primeira mulher negra para o Bundestag -no pleito de 2013, os senegaleses Karamba Diaby e Charles Huber foram os pioneiros entre os homens.

Awet Tesfaiesus, 47, é advogada especializada em direitos de migrantes e refugiados. Nasceu na Eritreia e migrou para a Alemanha com a família aos seis anos. Representando um distrito no estado de Hessen, na região central do país, conquistou sua vaga no Legislativo também entre os Verdes.

O que a levou a concorrer ao Bundestag, no entanto, foi um episódio trágico. Em fevereiro de 2020, um homem entrou em dois bares frequentados por imigrantes na cidade de Hanau e abriu fogo, matando nove pessoas. A investigação apontou que o assassino tinha motivações racistas.

"Aquilo me atingiu muito fortemente, foi um tapa na cara de todos nós", contou Tesfaiesus à emissora pública Hessenschau, acrescentando que o atentado quase a fez deixar o país com marido e filho.

"Quando criança, eu não imaginava que poderia haver advogados, médicos ou políticos negros", afirmou a parlamentar eleita. Agora, ela pretende fazer de seu mandato um instrumento de luta por igualdade de oportunidades para negros e imigrantes em um país cuja história carrega cicatrizes provocadas por crimes de ódio.

A Alemanha também terá no próximo mandato legislativo a primeira mulher com deficiência no Bundestag. O atual presidente do Parlamento, Wolfgang Schäuble, ex-ministro e principal negociador ocidental do tratado que pôs fim à Alemanha Oriental, ficou paraplégico após um ataque a tiros em 1990, mas é criticado por omissão em relação aos direitos das pessoas com deficiência.

Stephanie Aeffner, 45, promete tentar mudar esse cenário. A assistente social com formação médica foi eleita pelos Verdes representando o rico estado de Baden-Württemberg. Seu site de campanha elenca como prioridades do mandato políticas sociais voltadas para pessoas com deficiência e seus cuidadores, além do aumento do salário mínimo e de políticas ambientais.

No pleito do último domingo, cerca de 85 mil pessoas com deficiência foram autorizadas a votar pela primeira vez na Alemanha, segundo levantamento da rede Deutsche Welle. A permissão foi garantida pela Justiça após anos de disputas e pressão de ONGs e grupos de ativistas.

O entendimento era o de que pessoas com deficiências intelectuais ou físicas dependentes de cuidados de um tutor poderiam ter seus votos manipulados de alguma forma. Para os ativistas, um argumento capacitista, que se assemelha às razões apontadas há mais de um século para limitar o direito feminino ao voto.

"Impedir alguns de votar não é apenas injusto, é inconstitucional. Sem inclusão não há democracia", afirmou à DW o conselheiro do governo alemão sobre acessibilidade, Jürgen Dusel.

Ainda que não seja possível afirmar com precisão quem ocupará o cargo de premiê deixado por Angela Merkel, já se sabe quem deve ocupar a cadeira da primeira-ministra no Parlamento -literalmente.

Quando Anna Kassautzki, também do SPD, nasceu, Merkel era deputada havia três anos. No último domingo, ela conquistou o assento no Bundestag correspondente ao distrito que sagrou a hoje primeira-ministra vencedora em todas as eleições desde 1990. Ela teve 24,3% dos votos, contra 20,4$ de Georg Günther, 33, da CDU.

Nascida em Heidelberg, em 1993, Kassautzki é líder do local do movimento Jovens Socialistas. Em suas redes sociais, ela descreve seu compromisso com a causa feminista e contra injustiças sociais. "Se quisermos fazer nosso país avançar, devemos pedir aos 10% mais ricos que paguem mais [impostos] em vez de cortejá-los", escreveu em seu site de campanha.

Líder da sigla de Merkel diz que Scholz tem prioridade A definição do sucessor da primeira-ministra depende das negociações dos principais partidos para formar uma coalizão que garanta maioria entre os 735 deputados no Bundestag.

Não há regra na Constituição sobre como governos são formados nem é dada preferência ao partido que tenha terminado o pleito com mais parlamentares eleitos: cabe às próprias siglas negociar seus acordos, e as diferentes conversas podem ser feitas simultaneamente.

Nesta terça (28), porém, líderes do CSU, partido da Baviera que compõe a União com a CDU, disseram que Olaf Scholz, do SPD, tem preferência para se tornar premiê.

"Scholz tem mais possibilidades de se tornar primeiro-ministro nesse momento, claramente", disse o dirigente da CSU Markus Söder, em entrevista coletiva. "Nenhum mandato para governar pode se legitimar moralmente com base nesse resultado eleitoral [da União]. O resultado de uma eleição não pode ser reinterpretado, deve ser aceito."

O líder da bancada da CSU, Alexander Dobrindt, também disse acreditar que os sociais-democratas estão "à frente dos partidos da União", apesar da pouca vantagem, para buscar discussões com os Verdes e os liberais da FDP em uma coalizão.

O candidato da União, Armin Laschet, por sua vez, afirma que continua disposto a negociar uma aliança para ser alçado ao posto de premiê.