SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A continuidade entre "Acqua Movie" e o anterior "Árido Movie", de 2005, é evidente --em ambos, o Sul e o Norte, ou o Sudeste e o Nordeste, se encontram. No "Árido", alguém sai do Rio de Janeiro para visitar a família, numa cidade do interior de Pernambuco. Desta vez, o migrante, um apresentador de telejornal conhecido nacionalmente, sofre um infarto e morre logo na sequência de abertura.

Ele não queria voltar à sua terra natal, Nova Rocha. Seu filho, Cícero, é que decide levar as cinzas para lá. Essa decisão tem a ver com seu ressentimento com a mãe. Afinal, Duda, vivida por Alessandra Negrini, era separada do pai e distante do filho. Na maior parte do tempo, ela, que é fotógrafa e cineasta, estava em filmagem, de preferência na Amazônia.

O ressentimento do filho, digamos, ocupa toda a parte inicial do filme, e talvez não seja exagero a chamar de um tanto acadêmica. Lírio Ferreira se detém durante minutos na aspereza inicial dessa relação. Não é esse o problema, e sim o caráter nada inventivo ou sintético desse segmento. As imagens não vibram: obedecem a convenções.

Logo, felizmente, vem a viagem --que mãe e filho fazem juntos, claro-- e chega-se a Nova Rocha. Ali está a família do pai de Cícero, que, por sinal, é quem manda na região. Ali se destaca seu tio, o prefeito da cidade. O jogo de sedução em torno de Cícero opõe Duda aos parentes do ex-marido. E o prefeito é um tipo excelente, tão afável quanto ameaçador.

Ou, se se prefere, a disputa se dá entre a razão sulista contra o uso e abuso do poder que o filme verifica no interior de Pernambuco. O abuso do poder se deixará ver pela ação dos jagunços a serviço do tio, cujo objetivo central é tomar assim que possível a terra onde vivem os índios. Não por acaso, ele acredita que a família chegou ao lugar antes dos próprios índios.

Do lado da razão temos os argumentos de Duda -o pai nunca gostou da família, nunca quis voltar ou rever os parentes, são gente perigosa et cetera.

No meio disso estão, obviamente, as águas. Águas que simbolizam aqui o novo Nordeste, assim como o nome Nova Rocha deriva do fato de a cidade original, Rocha, ter sido submersa para que se construísse no lugar uma represa. Águas que provêm, em grande parte, da transposição do rio São Francisco. Elas é que parecem garantir um interior sertanejo próspero, moderno e, claro, atrasado.

A parte pernambucana do filme é, de longe, a mais interessante. A mais inventiva também. Com apenas um plano sabemos que o menino está vendo um canal da transposição. Mais três planos de aparelhos eletrônicos e já sabemos o essencial sobre Nova Rocha (ou novo Nordeste), moderno e caipira. Uma rápida intervenção dos jagunços em uma manifestação dos índios e sabemos de que lado está o poder local. Et cetera.

A luta entre Duda e a família coronelesca envolve também isso -tradição versus transformação, forma versus razão. Essas instâncias opostas lutam, no imediato, pelas cinzas do ilustre jornalista --o prefeito o deseja enterrar com banda, presença do governador e tudo mais. A longo prazo, é a alma de Cícero que está em disputa. De que lado ficará o jovem? De seus parentes, com a galeria de retratos ameaçadoramente ilustres, ou de sua mãe, para quem a existência dos índios significa conhecimento e progresso, e não o inverso?

Com isso, podemos dividir "Acqua Movie" em duas partes distintas, que seguem a introdução, por sinal bastante sintética e eficaz na sequência de um tormentoso telefonema entre o pai e a mãe de Cícero, seguida da constatação de sua morte.

Em cada sequência, a luta pela alma de Cícero está em questão. O que parece fazer do menino uma bela e atual metáfora do Brasil atual. Ele parece encarnar um jovem país que não sabe o rumo a tomar -se o de uma difícil evolução fundada na razão ou o do caminho de um poder fundado na ignorância e no atraso. Assim se define o combate que parece ocupar Lírio Ferreira -não entre Norte e Sul, mas entre luz e trevas.

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ACQUA MOVIE

Quando: Estreia nesta quinta (10)

Onde: Nos cinemas

Classificação: Livre

Elenco: Alessandra Negrini, Guilherme Weber, Marcélia Cartaxo

Produção: Brasil, 2019

Direção: Lírio Ferreira