(FOLHAPRESS) - Julie, a jovem norueguesa que protagoniza a joia de filme que é "A Pior Pessoa do Mundo", não é uma menina qualquer. É, como deixa claro a trama, uma dessas garotas com inteligência acima da média --ela estuda medicina no começo do longa-, mas que não sabe exatamente o que quer. Troca o curso inicial por psicologia, depois por fotografia, depois por jornalismo.

Enquanto não define seu rumo profissional, ela entra e sai de relacionamentos com homens cuja atenção ela mesma se espanta de ter despertado. Quem nunca?

Os dois parágrafos iniciais deste texto provavelmente existem, escritos cada um à maneira de sua autora, nos diários, ou nas fotografias, ou até mesmo nas lembranças de quase todas as meninas espertas e indecisas -e muitas meninas são espertas e indecisas- em uma certa fase da vida. Esta começa no exato momento em que param de rir quando você revela o ano de seu nascimento e acaba de uma maneira menos marcante, quando pouco a pouco sua presença começa a não ser mais a grande novidade da festa.

De atração principal, no comecinho da juventude, as mulheres parecem se transformar, com o passar do tempo, em móveis e utensílios. Aqueles objetos sem nenhum atrativo espetacular, mas que estão sempre lá, e até podem ser úteis.

Sempre pensei que essa era uma impressão pessoal e, mais ainda, geracional. Que eu guardaria trancada no mesmo lugar onde hoje muitos de nós suprimimos o ímpeto de fazer um comentário politicamente incorreto.

Mas eis que surge "A Pior Pessoa do Mundo", com uma personagem completamente atual e realista, mas que parece passar por situações semelhantes a qualquer outra jovem -mesmo aquelas nascidas no outro hemisfério muitos, muitos anos antes dela.

Alternando momentos genuínos e até banais com outros de pura ironia, cenas comoventes e delirantes, esse filme conta uma história eletrizante, que deixa o espectador grudado na cadeira.

E olha que o roteiro tem um recurso que em geral só causa ansiedade e agonia. Ele é contado em capítulos, e logo no início se revela quantos serão --12!--, além do prólogo e do epílogo. Mas a trama é tão bem construída, a personagem é tão parecida com cada pessoa na plateia, é tão fácil se enxergar nas situações pelas quais ela passa que logo a contagem regressiva vira um detalhe sem menor importância.

Numa era em que os filmes parecem estar cada vez mais longos --"Drive My Car", outra maravilha recém-chegada aos nossos cinemas, por exemplo, tem três horas--, "A Pior Pessoa do Mundo" conta quatro anos da vida de Julie em duas horas e oito minutos cheios de flertes, lutas, sexo e conversas intensas, duras, profundas, além de uma sequência de realismo fantástico espetacular.

Renate Reinsve, a norueguesa de pernas infinitas que interpreta Julie, venceu o prêmio de melhor atriz no festival de Cannes do ano passado. Merecido. Ela faz o filme todo ter um ar documental, como se não estivesse interpretando cenas previamente escritas, ensaiadas, produzidas, e sim vivendo aquelas situações, das mais banais às mais inusitadas.

Nos seus relacionamentos com os homens, age como quase toda mulher jovem, naquela fase da vida descrita aqui. Ela se encanta pelas exatas características que depois de um tempo se transformam nas razões pelas quais ela não aguenta mais conviver com o sujeito.

O cartunista mais velho por quem ela se apaixona, e com quem passa a viver, a oprime com sua rotina que parece escrita em pedra e a pressiona a tomar a decisão de ter filhos quando isso é o último item na lista de prioridades dela. O garotão jovem e desencanado por quem ela troca o cartunista, e por quem se apaixona completamente, depois a enlouquece com sua falta de ambição.

De novo, quem nunca?

"A Pior Pessoa do Mundo" é um filme muito parecido com a vida. Ou pelo menos com um momento da vida. Que tem seus altos, seus baixos, seus momentos mágicos, outros insuportáveis. Mas da qual é impossível tirar o olho.