'A Hora da Estrela', de Clarice, vira musical com letras de Chico César
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quinta-feira, 03 de fevereiro de 2022
GUILHERME HENRIQUE
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Laila Garin finaliza um cigarro de tabaco orgânico antes da conversa com o repórter por chamada de vídeo. "Comecei a fumar durante a pesquisa sobre Clarice", diz, em tom de brincadeira. Após a primeira tragada, ela complementa. "Foi um mergulho profundo para entender a escritora, sua protagonista, e o que eu, enquanto atriz, tinha a oferecer nesse trabalho."
As camadas descritas por Garin estão diluídas no musical "A Hora da Estrela ou o Canto de Macabéa", que transpõe para o palco a história do último romance publicado por Clarice Lispector, em 1977, ano de sua morte. A obra, em cartaz no Sesc Santana, zona norte da capital paulista, ganhou versos musicados por Chico César, que compôs 32 músicas inéditas para o espetáculo.
Garin tem papel duplo na peça. Interpreta Macabéa, migrante alagoana pobre que vive marginalizada no Rio de Janeiro. E também a Atriz, personagem que narra a trajetória da protagonista. No livro, essa função cabe ao escritor Rodrigo S.M. "Tem uma metalinguagem dessa Atriz, que se questiona sobre o próprio ofício, mas que vai se afeiçoando a Macabéa."
Garin conta que leu o romance na adolescência, assim como "A Paixão Segundo G.H.", outro clássico da autora. "Mas eu não tinha maturidade para entender. Achava Clarice soturna e melancólica, como de fato era. Mas também vi que seus livros são cheios de vida, de amor e uma noção particular do divino nas pequenas coisas do cotidiano", diz a atriz.
Ela diz que precisou se adaptar à personalidade de Macabéa. "Recentemente, interpretei Elis Regina, Edith Piaf, Joana, de Gota D'Água. São mulheres que gritam. Eu sou uma mulher que tem tônus. Mas ela [Macabéa] não reage, acha que não tem direito a nada. Essa apatia dela nos faz refletir sobre empatia e amor em estado puro."
A atriz também lamenta o fato de o livro, assim como o musical, tratarem de uma exclusão que se mantém. "É a obra mais social da Clarice. Essa é a história dos invisíveis, de uma sociedade que não mudou nada. Basta ver o que aconteceu com Moïse", diz, citando a morte por espancamento do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro.
No palco, a voz mirrada de Macabéa é soterrada pelas humilhações diárias dos núcleos que compõem a trama --o trabalho, o quarto da pensão e a metrópole--, e também pelos personagens que a acompanham. São eles a colega de escritório Glória, papel Cláudia Ventura, e o namorado Olímpico de Jesus, vivido por Cláudio Gabriel. André Paes Leme assina a direção e adaptação, e Marcelo Caldi a direção musical.
Em alguns momentos, a noção de espetáculo teatral fica totalmente borrada, como se a dramaturgia desse lugar a um show. "É uma espécie de partitura dramatúrgica em que nada está apartado: luz, música, figurino, texto. Um musical feito a muitas mãos", comenta Andréa Alves, proprietária da Sarau, idealizadora do projeto e que é reconhecida por inovar no gênero, com trabalhos como "Elza" e "Gota D'Água [A Seco]".
Quase sempre à meia-luz, com cadeiras e mesas em tom acobreado, os três atores e cantores interpretam um texto baseado quase que exclusivamente no livro de Clarice, com suas frases desconcertantes, além das músicas de Chico César. "Me fiz parceiro dela [Clarice], aproveitando uma musicalidade que já existe no texto", diz o compositor paraibano..
As canções vão do samba ao xote, passando pelo rock e também maracatu. "Eu tinha imaginado esse espetáculo como uma espécie de ópera-rock. Mas o livro de Clarice, a descrição dos personagens, onde eles estão, me fez mudar, juntamente com o Marcelo Caldi. Todos esses ritmos e variações trazem força, pujança e pulsante à peça, mantendo a herança do estilo dos musicais", afirma Chico César.
Garin diz ter se surpreendido com fidelidade da trilha sonora em relação ao livro. "É como se ele tivesse uma conexão direta com a Clarice. E tem uma embocadura nordestina nessas músicas, uma gostosura em pronunciar as palavras. A música tem algo sensorial que chega mais rápido à alma", diz Garin. O lançamento do álbum com 16 músicas do espetáculo, interpretadas por Garin e Chico César, está previsto para o fim deste mês.
Questionado, o compositor diz não saber sobre como Clarice receberia o musical. "Torço para que ela não ficasse chateada, porque tivemos muito respeito às inquietações dela que aparecem no romance", complementa. Diferentemente do tom hesitante de Macabéa, Garin sentencia com segurança. "Ela iria adorar."
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A HORA DA ESTRELA OU O CANTO DE MACABÉA
Avaliaçaõ: ****
Quando: Sex. e sáb., às 21h. Dom., às 18h. Estreia nesta sexta (4). Até 27/2. Sessão extra em 18/2, às 16h.
Onde: Sesc Santana, av. Luiz Dumont Villares, 579, Santana
Preço: R$ 40
Classificação: 16 anos
Elenco: Laila Garin, Cláudia Ventura e Cláudio Gabriel
Direção: André Paes Leme
Direção musical: Marcelo Caldi
Trilha sonora Chico César