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Poder de fogo

Diante das mudanças em relação a posse de armas no Brasil, a FOLHA preparou uma reportagem especial sobre os critérios para o acesso legal ao armamento e os perigos da falta de fiscalização no setor. Deslize para o lado!

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QUEM ESTÁ NA MIRA?

Viviani Costa

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“Com muita satisfação, assinei esse decreto, feito por muitas pessoas de bem, para que o cidadão de bem possa então, nesse primeiro momento, ter a sua paz dentro de casa”, declarou o presidente Jair Bolsonaro logo após a assinatura do documento que alterou os critérios para concessão da posse de arma de fogo. Nesse caso, quem preencher os requisitos vai obter o direito de armazenar a arma em casa, mas não poderá transportar o equipamento de um local a outro. Para carregá-lo é necessário obter o porte de arma, assunto que será o próximo alvo do governo federal e do Congresso Nacional.

Fabricantes, lojistas e interessados em adquirir o equipamento comemoram as mudanças consideradas até tímidas pelos mais liberais. Por outro lado, representantes de entidades questionam, com base em pesquisas e dados estatísticos, a efetividade do decreto e adiantam possíveis prejuízos para a segurança pública. A reportagem da FOLHA preparou um especial sobre os trâmites necessários para ter acesso a uma arma, o preço pago pelo equipamento, a qualidade e a fiscalização dos produtos disponíveis no mercado, o monopólio e o comércio ilegal, as vítimas dos disparos e a expectativa de quem busca alternativas para se defender.

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A CANETADA

O decreto n° 9.685, assinado em 15 de janeiro, altera a regulamentação de 2004 do Estatuto do Desarmamento, aprovado no ano anterior. Antes os interessados na posse de arma de fogo deveriam declarar a “efetiva necessidade” de possuir o equipamento, porém não havia critérios estabelecidos em lei e a análise era subjetiva. Agora passa a ser aceitável como justificativa exercer ou ter exercido função no setor de segurança pública, ser colecionador, atirador, caçador, comerciante, dono de indústria, morador em área rural ou morador em área urbana com elevados índices de violência.

Para este último item, o decreto especifica “unidades federativas com índices anuais de mais de dez homicídios por cem mil habitantes, no ano de 2016, conforme os dados do Atlas da Violência 2018”. Porém, a “restrição” abrange todos os Estados, já que a menor taxa de homicídios (10,9) foi registrada em São Paulo. A maior (64,7) foi constatada em Sergipe.

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Outro item acrescentado foi a entrega da declaração de que há “cofre ou local seguro com tranca” para guardar a arma em casa quando houver crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência mental na residência. Cada interessado poderá adquirir até quatro armas de fogo. Porém, é possível ultrapassar esse limite desde que a justificativa seja aceita pela Polícia Federal.

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Já os registros das armas devem ser renovados a cada dez anos e não a cada cinco (para armas de calibre permitido) ou a cada três anos (para armas de calibre restrito). Todos os certificados de registro expedidos antes do novo decreto assinado por Bolsonaro serão renovados automaticamente, sem a necessidade de análise prévia.

Foram mantidas exigências como a idade mínima para a compra (25 anos), a apresentação de certidões de antecedentes criminais, a comprovação de residência fixa e de uma ocupação lícita e laudos de aptidão técnica e psicológica.

(NOTA: Este é um projeto da FOLHA DE LONDRINA com novos formatos e experiências em jornalismo imersivo. Uma melhor performance foi verificada em desktop e recomenda-se o acesso com conexões de alta velocidade. Algumas mídias podem ter o funcionamento comprometido em aparelhos móveis. Se encontrar algum erro durante sua experiência, deixe-nos [email protected] e BOA LEITURA!)

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O COMÉRCIO LEGAL

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O comércio de armas de fogo movimenta, aproximadamente, R$ 1 bilhão por ano no Brasil, segundo dados disponíveis no site da Aniam (Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições). Cerca de R$ 150 milhões são recolhidos em impostos.

Armas de calibre permitido (.38, .380, .22 e .36, por exemplo) podem ser encontradas com facilidade em lojas de artigos de pesca, lazer e camping ou em estabelecimentos específicos para o comércio de armamentos e munições. Já as armas de calibre restrito (.40, .44, .45, .357, .454 e 9 mm, por exemplo) precisam ser solicitadas diretamente ao fabricante ou importador e, em tese, não estão disponíveis para o cidadão comum, apenas para agentes de segurança pública, magistrados, procuradores, colecionadores, caçadores e atiradores.

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A Taurus, sediada no Rio Grande do Sul, está entre três maiores fabricantes de armas leves (revólveres e pistolas) do mundo e exporta para mais de 80 países. Só no Paraná, as armas estão disponíveis para venda em mais de 70 lojas, incluindo shoppings centers.

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Em Londrina, um dos estabelecimentos pertence ao Nilton Roberto de Paula. O comerciante conta que a procura por informações para a compra de armamento aumentou logo após o período eleitoral e se intensificou com a publicação do novo decreto. “Até pessoas que estavam desinteressadas e não estavam nem sabendo se poderiam ou não comprar uma arma antes disso passaram a entrar em contato. Foi uma propaganda direta e indireta do governo que chamou a atenção dessas pessoas”, afirma. No entanto, poucas vendas se concretizaram.

A loja na região central de Londrina comercializa armas há 47 anos. Para o proprietário, as vendas tímidas são reflexo dos altos custos e das exigências feitas aos clientes já no balcão da loja. Para que os interessados e os vendedores não percam tempo, Nilton pede a apresentação de certidões criminais e faz uma série de perguntas sobre o passado dos clientes. Caso não perceba nenhum impedimento jurídico, ele segue com a venda e os encaminhamentos para a avaliação psicológica e o curso de tiro. Os laudos devem ser repassados à Polícia Federal, órgão responsável por expedir a posse para cidadãos comuns.

Os preços das armas variam entre R$ 3 mil e R$ 6 mil para revólveres e entre R$ 4,5 mil e R$ 6,5 mil para pistolas. Já o processo, segundo ele, custa cerca de R$ 480, incluindo a taxa do registro da arma, o teste psicológico e a instrução de tiro. A espera é de até 60 dias. Os valores das munições variam de acordo com a qualidade do material e o modelo da arma. Já os kits de limpeza e manutenção do equipamento custam entre R$ 100 e R$ 400 e são necessários para a retirada de resíduos de pólvora. O vendedor indica ainda a necessidade de frequentar cursos de tiro para manter a habilidade em manusear o material.

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Nilton contratou seguranças, instalou alarmes e um cofre para não ser surpreendido na loja. “A arma pode afastar os criminosos, mas o uso errado também pode prejudicar as pessoas. Se você der uma de valente contra o bandido, ele não pensa duas vezes, vai atirar. Mas você pode usar preventivamente. Não é para sair enfrentando bandido. Até para a gente que conhece arma, se aparecer um bandido na minha frente para eu atirar nele e matar... Mil coisas passam na minha cabeça em segundos. Eu não vou conseguir. A minha mente não está preparada para matar uma pessoa”, argumenta.

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“Até pessoas que não estavam nem sabendo se poderiam ou não comprar uma arma passaram a entrar em contato”, conta Nilton Roberto de Paula
“Até pessoas que não estavam nem sabendo se poderiam ou não comprar uma arma passaram a entrar em contato”, conta Nilton Roberto de Paula

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“Nós ‘de bem’ compramos a arma para nos precaver em alguma situação, para nos proteger e proteger a família. Se você souber agir na hora certa... Supondo que alguém chegue agora para assaltar. Eu deito no chão. Quando o bandido perceber que está tudo sob controle, ele vai relaxar. O bandido relaxa. Nessa hora, você pode pegar a arma e reagir. Nessa hora, pode ter três bandidos aqui dentro. Se você tentar atirar em um, os outros saem correndo. Você atira nem que não for para matar”, detalha a estratégia.

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O TRÁFICO DE ARMAS

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Mais de 119 mil armas de fogo foram apreendidas no Brasil em 2017, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Desse total, 13.782 foram adquiridas no comércio legal, mas acabaram extraviadas, perdidas, furtadas ou roubadas. Já a identificação de armas provenientes do tráfico ainda é precária, admite o delegado da Polícia Federal e novo coordenador geral do setor de Prevenção e Repressão ao Tráfico de Entorpecentes e Armas e Lavagem de Dinheiro, Elvis Secco. Segundo ele, este é um dos principais desafios da equipe. Desde janeiro, o delegado passou a atuar em Brasília.

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Levantamento feito pela Polícia Federal entre 2014 e 2017 apontou que o Paraná é o segundo Estado em número de armas apreendidas, principalmente pistolas. O Rio de Janeiro ocupa a primeira posição. Seis das dez cidades campeãs em apreensões no Brasil ficam no Paraná (Foz do Iguaçu, Curitiba, Cascavel, Londrina, Guaíra e Santa Terezinha do Itaipu). A fronteira com o Paraguai facilita a entrada de armas ilegais, grande parte fabricada nos Estados Unidos.

Delegado Elvis Secco (FOTO: Fábio Alcover 29/06/16)
Delegado Elvis Secco (FOTO: Fábio Alcover 29/06/16)

“Nossas operações visam hoje o rastreamento dessas armas. Estamos lutando, principalmente, para que haja um maior controle no sentido de registrar as armas em bancos de dados para poder cruzar informações como marcas das armas para que possamos ter um parâmetro de quais são os países que mais fornecem armas para o Brasil e também por onde é o maior ingresso dessas armas”, explica o delegado. A intenção é formalizar uma cooperação policial internacional para auxiliar o combate ao tráfico de armas, crime diretamente ligado ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro.

Os principais destinos do armamento são os Estados do Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo e Mato Grosso do Sul. Conforme Secco, armas trazidas do Paraguai correspondem a, aproximadamente, 60% do total de apreensões no País. Nos quatro anos pesquisados no levantamento da PF, o volume de apreensões em Londrina foi de 243 armas. Porém, o delegado estima que o número real seja, pelo menos, 30% maior.

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Ouça a entrevista com Elvis Seco 2 min
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Fundos falsos em veículos de pequeno porte ainda são a artimanha mais utilizada pelos criminosos para o transporte ilegal. Pessoas que não possuem antecedentes criminais aceitam a oferta dos traficantes para conduzir os veículos. Armas também já foram encontradas em caminhões frigoríficos e em meio a cargas de soja e de madeira.

“Estão utilizando também os Correios para mandar peças de armas. A partir disso, os criminosos conseguem dar um ‘upgrade’ no armamento. Uma outra situação é a importação de armas por meio de lojas do Paraguai e que são entregues para criminosos que atuam na fronteira e remetem para outros Estados por meio de transportadoras ou de outros métodos”, afirma.

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FISCALIZAÇÃO E QUALIDADE

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Mais de 345 mil armas foram registradas no Brasil em 2018 por meio dos sistemas Sinarm (Sistema Nacional de Armas), administrado pela Polícia Federal, e Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), ligado ao Exército. Os dados incluem renovação da documentação e novos registros de armamentos utilizados pelas forças de segurança nacional. Cidadãos comuns, empresas de segurança privada, policiais civis e guardas municipais, por exemplo, recorrem ao Sinarm para obter a posse das armas. Integrantes das Forças Armadas, das Polícias Militares, colecionadores, atiradores e caçadores estão entre os que solicitam a autorização ao Sigma.

Além da posse, para andar armado nas ruas é necessário obter o porte de arma, expedido apenas pela Polícia Federal. No ano passado, o órgão contabilizou 8.639 autorizações entre renovações e novos pedidos, total 54% maior que em 2014 quando foram emitidos 5.595 portes.

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As armas só podem ser comercializadas em lojas credenciadas pela Polícia Federal e pelo Exército, a este último também cabe o controle da fabricação dos produtos. Porém, para o assessor de advocacy do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli, a fiscalização do setor deixa a desejar. “Não somos contra a venda de armas. Somos contra a venda banalizada. Ao contrário do que disse o ministro [Onyx Lorenzoni], armas não são liquidificadores. Acreditamos, com base em evidências técnicas, que a venda deve ser revestida de requisitos extremamente rígidos, considerando o nível de criminalidade que temos no Brasil”, lamenta.

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Ouça a entrevista com Felippe Angeli 2 min
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Angeli defende que os lotes das munições deveriam ser mais restritos para a marcação do número de série. Segundo ele, lotes com 2 milhões de unidades e o mesmo número de série dificultam a identificação da origem do disparo no caso de assassinatos como o da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro.

O presidente da Avida (Associação das Vítimas de Disparo de Armas de Fogo sem o Acionamento do Gatilho), Luciano Vieira, também aponta falta de fiscalização no setor. A associação, formada em 2016, conta com, aproximadamente, 30 integrantes, grande parte deles policial civil ou militar de várias partes do Brasil. A principal falha identificada, conforme Vieira, é o disparo causado após chacoalho, batida, pancada ou queda da arma no chão. “Isso, em tese, seria inadmissível”, critica.

Felippe Angeli: “Não se trata aqui de gostar ou não gostar de arma de fogo”
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Vieira é policial civil e foi vítima de disparo acidental em 2011. Ao chegar em casa, a pistola .40, de fabricação nacional, caiu ao chão e, mesmo travada, disparou contra o peito dele. A bala perfurou o pulmão e saiu pelas costas. O relato foi feito durante audiência pública na Câmara dos Deputados, em agosto de 2016. Na ocasião, além de Vieira, outras oito vítimas relataram acidentes com disparos acidentais. “É um risco o poder público não fiscalizar a qualidade. Agora a procura por armas vai ser ainda maior também pelo cidadão comum”, alerta. Vieira defende também a abertura do mercado e a livre concorrência no setor.

Em nota, a assessoria de imprensa do Exército destacou que o órgão “realiza, constantemente, sem aviso prévio, fiscalizações de rotina e operações de grande porte, em todo o território nacional”. Quanto ao controle de qualidade, a assessoria explicou que os protótipos de fabricação dos chamados PCE (Produtos Controlados pelo Exército), que inclui armas, são avaliados pelo órgão. “Contudo, uma vez autorizada a fabricação do produto, a empresa é a responsável em manter a fabricação fielmente idêntica ao protótipo avaliado.”

VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA

Disparos de arma de fogo vitimaram aproximadamente 910 mil pessoas no Brasil entre 1980 e 2016. As estatísticas fazem parte do Atlas da Violência 2018, levantamento realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O estudo aponta que a procura por armas aumentou gradativamente em razão do êxodo rural e estagnação econômica na década de 1980. Na época, milhares de pessoas seguiram para os grandes centros e houve crescimento das tensões sociais, já que o poder público não conseguiu atender as novas demandas que incluíam melhorias no setor da segurança pública.

Em 2016, a quantidade de pessoas assassinadas no Brasil por meio de disparos de arma de fogo chegou a 44.475, número 27% maior que em 2006, quando 34.921 pessoas morreram. O Estado com mais vítimas em 2016 foi a Bahia (5.449), seguido do Rio de Janeiro (4.019) e Pernambuco (3.475). São Paulo ocupou a sétima colocação (2.720) e o Paraná, a décima posição (2.125).

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O QUE ESPERAR APÓS O DECRETO

Edson Neves e Viviani Costa

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Representantes de entidades apontam para os riscos de um retrocesso no setor da segurança pública após a assinatura do novo decreto. O assessor de advocacia do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli, lamenta a falta de debate sobre o tema e a aplicação das mudanças 15 dias após a posse do novo presidente.

“Não se trata aqui de gostar ou não gostar de arma de fogo ou de qualquer posição ideológica partidária, mas sim de um consenso científico nacional e internacional que demonstra essa correlação entre o aumento da circulação de armas de fogo e o aumento da violência letal”, afirma. O instituto atua há mais de 20 anos na área de segurança pública e acredita que estudos científicos e estatísticas reunidas pelos integrantes e por representantes de outras entidades deveriam embasar a implantação de políticas públicas no setor.

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Para o advogado criminal e diretor da OAB Subseção Londrina, José Carlos Mancini Júnior, o novo decreto não facilita na posse de armas. “De maneira nenhuma. As etapas continuam da mesma forma que se tem desde 2003 [com o Estatuto do Desarmamento]”, defende. A lei, segundo ele, também teve as estruturas preservadas. “Houve algumas presunções de veracidade e dilações nos prazos, como na concessão da posse, mas sem influir em relação ao porte. Essa, para haver mudança, apenas via projeto de lei, não podendo ser alterada por decreto presidencial”, explica.

Mancini Júnior se mostrou claro em apoiar as exigências legais que se mantém para a posse de arma de fogo. “Aquele que se considerar apto a ter uma arma, demonstrar os requisitos, as certidões, por mais que sejam subjetivas as questões psicológicas, não se há tanta discussão. Há de se conferir a liberdade de escolha do cidadão, mas sempre com parâmetros claros, não tomando de forma apelativa um anseio e se vender uma ideia que não está próxima à solução. Eu, enquanto Estado, posso pedir mínimos requisitos para a liberação. A análise deverá ser caso a caso. Se virmos do ponto de vista que agora teremos uma resposta à criminalidade, aí vejo com um pouco de temor”, pondera.

Em relação aos casos de violência contra a mulher, a promotora de justiça do Tribunal do Júri de Curitiba, Ticiane Louise Santana Pereira, não acredita que as alterações acarretem em aumento nos casos de feminicídio. “Predominantemente, no contexto da violência doméstica, que é uma das duas situações que caracterizam o feminicídio, a arma de fogo não é o principal instrumento do crime e sim a faca (arma branca) e o estrangulamento”, considera. Em contrapartida, ela admite que a facilitação do acesso à arma pode contribuir para o aumento das ocorrências em geral.

Já a promotora e coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, Valéria Scarance, ressalta que 70% dos casos de violência contra a mulher ocorrem dentro das residências. A maioria das vítimas é agredida com armas brancas, como facas e objetos cortantes. Porém, para a promotora, isso ocorre porque os autores dos crimes ainda não possuem acesso fácil a arma de fogo.

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Ouça a entrevista com Valéria Scarance 2 min
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“Vejo com preocupação o incentivo à posse de armas. O perfil do homem que agride a mulher e pratica o feminicídio é de um homem comum. Normalmente, esse homem não tem antecedentes criminais ou não tem antecedentes por violência contra a mulher. O padrão do agressor é de um homem com bons antecedentes, conduta social ilibada e de alguém que, teoricamente, não oferece risco. Ter uma arma de fogo em casa, segundo estudos internacionais, é considerado fator de risco de morte”, alerta Scarance.

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CASOS FAMOSOS

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INSEGURANÇA NO CAMPO

Edson Neves

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O semblante é sereno, mas por dentro esconde um misto de revolta e decepção. O produtor rural Vilson Mouro, 59 anos, é filho de pioneiros que trabalham com agricultura e pecuária há mais de 80 anos sempre na mesma localidade: Patrimônio Selva. E a onda de violência na zona rural fez com que Mouro, que comanda o negócio há 50, decidiu comprar uma arma três anos atrás.

Com uma pistola calibre .380 no bolso e outras quatro guardadas na propriedade – uma delas com o caseiro, Mouro faz as contas de quantas vezes foi vítima de assaltos. “Sete ou oito. Na última, bateram no meu pai (94 anos) e na minha mãe (de 88), além de roubarem trator e bois. Eles judiam mesmo”, revelou. A agressão, além de física, também foi verbal. “Você é vagabundo, ordinário, não presta”, relembrando os xingamentos. “Você está levantando 4h da manhã para trabalhar, mas você é vagabundo”, esbravejou.

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“Todo mundo entregou as armas e ficou sem nada”, critica o produtor rural Vilson Mouro
“Todo mundo entregou as armas e ficou sem nada”, critica o produtor rural Vilson Mouro

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Para ele, o Estatuto do Desarmamento e a campanha para a entrega voluntária de armas com situação irregular não ajudaram. “Todo mundo entregou as armas e ficou sem nada. E então os bandidos vêm na propriedade e tomam o que você tem. Os produtores ficam com dificuldade de achar empregado”. Mouro relatou à FOLHA que três famílias já chegaram a trabalhar em sua propriedade e que hoje conta com apenas uma, o que fez trocar a leitaria pela criação de gado.

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O investimento de cerca de R$ 15 mil em sistema de câmeras e capacitação para a posse de arma, de acordo com ele, é mínimo perto dos prejuízos que já teve. “Só um trator custa R$ 200 mil”, explica. Além dele, o caseiro Vandeir Ferreira Nascimento também fez os cursos necessários para a posse de arma. “Hoje, a gente dá respaldo para eles de arma e documentos. Tomara que nunca precise usar, mas se for usar, tem que proteger a família dele. A ordem para o funcionário é para atirar. Se tiver que matar, vai matar. A gente não vai perder mais trator e não vão mais bater nos meus pais. A ordem é se vir e se não se identificar, vai levar chumbo grosso”.

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O caseiro Vandeir Ferreira Nascimento também fez os cursos necessários para a posse de arma
O caseiro Vandeir Ferreira Nascimento também fez os cursos necessários para a posse de arma

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Com uma espingarda Winchester calibre 22, Nascimento admite que nunca utilizou a arma para o devido fim estabelecido pelo patrão. “Só usei algumas vezes à noite, quando ouvia algum barulho estranho, dava tiro para o alto. Sempre fico atento porque qualquer coisa temos que correr atrás de arma. Tendo ela (arma) perto, me sinto bem mais protegido. Porque sem, eles acabam aproveitando”, frisa o caseiro, que mora com a esposa em um dos imóveis de Mouro.

Com o decreto, o produtor rural da Selva espera mais tranquilidade para conduzir os negócios da família. “Pode ter certeza que toda a área da agropecuária vai estar armada hoje. O bandido tem que pensar que aqui na fazenda tem arma também. Vão contar até dez antes de aparecerem por aqui”, garante.

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O ATIRADOR

Patrícia Maria Alves

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Eu estava em algum lugar isolado na zona leste de Londrina, em uma estrada que dá acesso ao clube de águas quentes. O sol ainda estava fraco e eu, tensa. Até aquele momento, meu único contato com arma havia sido duas ocasiões em que participei de campeonatos de paintball. Tinha absoluta certeza que não encontraria semelhanças. Enquanto eu colocava o tripé para gravar a experiência daquele momento, cinco carros da Polícia Militar passaram. Soube logo que haveria um treinamento tático para uso de armas restritas. Suei frio, as horas iam passando e eu cada vez mais tensa.

“Olá, bom dia, vocês sabem onde eu encontro o estande de tiro?”, perguntei. Uma senhora que fazia o café me olhou espantada e apontou ao longe. Talvez tenha se assustado com o tripé da câmera. Caminhei por entre as piscinas termais e encontrei um galpão com um carro cheio de furos, dois manequins perfurados por munições e uma casa de treinamento tático. “Aqui já foi do Clube de Tiro Pé Vermelho. Agora, eles mudaram o centro de treinamento”, explicou a instrutora de tiro Fernanda Fabris, a única mulher dentre 69 instrutores credenciados pela Polícia Federal para aplicar testes práticos de capacidade técnica no Paraná. Em Londrina, são oito, dos quais dois fazem parceria com Fabris no grupo G3 Técnicas de Combate. Naquela manhã, no entanto, Fabris tinha outra missão: me transformar em uma atiradora.

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Equipe G3 Técnicas de Combate
Equipe G3 Técnicas de Combate

Meu primeiro contato com a instrutora ocorreu uma semana após uma pesquisa rápida no Google Trends me mostrar que os termos “armas”, “posse de armas” e “decreto do Bolsonaro” estavam no Top 5 dos assuntos mais pesquisados no Paraná no período de 15 a 19 de janeiro. Sou pacifista, não defendo o uso de armas por civis e apoio melhorias nas condições de trabalho dos profissionais da defesa social como alternativa para o combate da violência. Mas, independentemente da minha opinião pessoal, fui entender melhor essa outra realidade. Engrossei as estatísticas e fui procurar informações por posse de armas.

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Screenshot: Google Trends
Screenshot: Google Trends

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Durante a pesquisa encontrei páginas na web que me prometeram informações precisas, mas decepcionaram com apontamentos obtusos e pouco esclarecedores. Cheguei à conclusão que só entenderia de fato o processo se estivesse envolvida nele.

E, assim, chegamos a esse momento. Enquanto a instrutora me ensinava as regras de segurança antes de ter contato com a arma, Luan grita ‘Pista Quente”. De regra, é o momento que algum atirador vai fazer um disparo para que os outros participantes procurem uma posição segura. Dois segundos e veio o estampido. Agora imagine, leitor, o meu susto! Meu coração disparou, minha mão tremeu, perdi a concentração nas instruções de Fabris e pensei em disfarçadamente sair de fininho. “Corra, Patrícia, Corra!” Mas eu tinha percorrido um caminho muito longo para chegar ali. Não podia desistir.

O Sinarm (Sistema Nacional de Armas), instituído no Ministério da Justiça, no âmbito da Polícia Federal, é o responsável pelo controle de armas de fogo em poder da população. A primeira lição que tive foi que não existe um processo para posse de arma e, sim, para a aquisição de arma de fogo de uso permitido - uma autorização de compra. A lista de requisitos tem ao menos 15 tipos de documentos e procedimentos, dentre os quais os três testes mais importantes que eu estava prestes a fazer: a avaliação psicológica, o exame teórico sobre normas de segurança, o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03) e seus decretos complementares (Decreto 5.123/04 e Decreto N° 9.685/19) e o exame de capacidade técnica: o teste de tiro e manuseio da arma.

Por dois dias consecutivos me empenhei em reunir toda a documentação. Era um mar de atestados de antecedentes criminais e documentos básicos. Tirei uma foto 3x4 e estava pronta para me encontrar com a psicóloga Solange Aparecida Arantes. A avaliação psicológica deve ser feita ao menos 72 horas antes dos exames práticos.

No prédio baixo e bem iluminado na rua Borba Gato, a psicóloga credenciada há cinco anos pela Polícia Federal me recebeu com um aceno. Eu estava perdida, literalmente. Muito atenciosa, me ofereceu uma água, fez eu me sentir confortável e então começou uma entrevista para averiguar meu histórico familiar, propensão à violência entre outras perguntas bem intensas sobre a minha personalidade. Além de um teste de atenção que se assemelhava ao teste que fiz quando há alguns anos atrás iniciei o processo para aquisição da CNH.

Instrutora Fernanda Fabris me passa as orientações para o primeiro disparo
Instrutora Fernanda Fabris me passa as orientações para o primeiro disparo

Após o exame, Solange já sabia mais da minha vida que a minha própria mãe, com certeza. “O que me preocupa sobre o novo decreto é a instituição da renovação a cada dez anos. Muita coisa acontece na vida de uma pessoa em cinco anos, imagine em dez anos” comenta a profissional que atua há 34 anos na área.

“Eu tenho que estudar mais”, pensei. Agora que tinha vencido o primeiro teste, caminhava para o segundo com certa ansiedade. “Certa” é modo de dizer, a ansiedade estava bem polpuda. Cada parte desta etapa de testes é eliminatória. Reprovação significaria processo zerado e espera de 30 dias para refazer os exames.

A arma que eu estava conhecendo naquele momento era a que seria usada no exame de capacidade técnica no fim de tarde, uma pistola Glock .380. Fabris me ensinava a colocar as munições no cartucho e não foi fácil como parece nos filmes. “É uma parte importante do teste, se não souber municiar o cartucho pode perder pontos”, explicou. Respirei fundo e me concentrei. “Pista Quente”, foi minha vez de limitar a circulação de pessoas na área de tiro. Minha mão tremia.

O exame de capacidade técnica é dividido em duas partes: a avaliação teórica, com 20 questões objetivas e discursivas, e a prova prática. Não sei qual dos dois me punha mais nervosa. Se eu for analisar bem, depois do treino da manhã eu estava mais confiante com o tiro. Convidei o repórter Edson Neves para fazermos um teste. Como se sairia uma pessoa sem treinamento algum nos exames técnicos? Seguimos para as provas.

O resultado foi nota 8,0 para mim, que havia estudado a noite toda mais de 50 páginas de conteúdo, e 8,7 para o Edson que foi como chegou à redação. Fabris me consolou: “Foi o nervosismo”.

Chegou a hora do teste de manuseio de arma de fogo e tiro. Se estivesse na pele do Neves e tivesse de fazer o exame sem o curso, provavelmente não seria capaz. Mas eu estava confiante. Exausta, mas confiante, finalizava o terceiro dia consecutivo no processo de me tornar uma atiradora.

O teste prático é composto por 20 disparos. Dez deles temos que fazer a cinco metros de distância e os outros dez, a sete. Para cada parte temos 40 segundos. “É uma questão de respiração, controle de cano e de gatilho.” Eu repetia na mente as lições de Fabris feito um mantra. “Norma de segurança número um: somente aponte sua arma, carregada ou não, para onde deseja atirar; número dois: NUNCA engatilhe a arma se não for atirar”.

Passei. Minha nota foi 90. Já Neves, ficou com apenas 23 pontos. Mas não finalizei o processo para adquirir uma arma. Fui encontrar o pessoal de um clube de tiro desportivo.

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Imagem ilustrativa da imagem Poder de Fogo

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Imagem ilustrativa da imagem Poder de Fogo
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TIRO DESPORTIVO

“Não é tão simples assim, a pessoa que faz a requisição de compra de arma pelo Sinarm só tem direito a possuir a arma dentro de casa. Se precisar levar para fazer manutenção, terá de ir até a Polícia Federal e pedir uma guia de trânsito. A PF emite essa guia uma vez a cada seis meses. E ainda há a questão da compra de munições, que é limitada. A pessoa que tem esse tipo de registro não vai gastar suas guias e munições para vir ao clube. Além de que precisa estar filiada”, explicou Ademir Prado, presidente do Clube de Tiro Pé Vermelho.

Mundial de tiro esportivo - Alemanha/2014 (FOTO:Divulgação CPB)
Mundial de tiro esportivo - Alemanha/2014 (FOTO:Divulgação CPB)

Prado acrescenta que para poder fazer os treinamentos, melhor é ser um atirador desportivo. E para isso eu teria que seguir com meu processo a partir daquele momento com o pessoal do Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas). “É lá que você pode tirar o CR - Certificado de Registro - para poder frequentar o estande de tiro. Mas a filiação ao clube é parte da documentação. Hoje, a taxa anual para frequentar aqui - o Clube de Tiro Pé Vermelho - é de R$ 800. Só então a pessoa ganha uma guia de trânsito para caçador, atirador e colecionador (CAC) e pode vir praticar, comprar mais munições e ir a competições, como os Jogos Olímpicos.”

POSSE NÃO É PORTE

Outro ponto importante que aprendi ao passar por todo esse processo é que posse de arma de fogo não pode ser confundida com porte. “O pessoal precisa entender que se você quer uma arma para defesa o que você terá é uma arma de defesa e ela deve estar armazenada em sua residência em lugar seguro, não é para fazer bonito na rua, na cintura e muito menos para matar. Legitima defesa tem limite e o excesso é julgado como crime perante a lei. Um atirador desportivo ou recreativo tem isso em mente e respeita a legislação”, argumenta Prado que está aposentado há oito anos, após vinte de atuação como agente da Polícia Federal no Paraná. “Estamos falando aqui de posse para defesa e registro de atirador desportivo (CR), o porte de armas é outro universo”.

Imagem ilustrativa da imagem Poder de Fogo

EXPEDIENTE

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PODER DE FOGO: A POLÍTICA DA PÁTRIA ARMADA

DATA DE PUBLICAÇÃO
09 de Fevereiro de 2019

TEXTOS
Edson Neves, Patrícia Maria Alves, Viviani Costa

IMAGENS
Gina Mardones, Marcos Zanutto, Patrícia Maria Alves, Ricardo Chicarelli

IMAGENS DE APOIO:
Evaristo Sá/AFP, Miguel Schincriol/AFP, Shutterstock, Fernando Frazão/Agência Brasil, Tomaz Silva/Agência Brasil

EDIÇÃO E PRODUÇÃO MULTIMÍDIA
Patrícia Maria Alves

EDIÇÃO DE TEXTOS
Fernando Rocha Faro, Thiago Mossini

ARTE
José Marcos da Silva

APOIO LOGÍSTICO
Jenes de Almeida, Zenil Costa

DIAGRAMAÇÃO/IMPRESSO
Gustavo Andrade

EDIÇÃO SITE
Erick Rodrigues

DESIGN/WEB
Patrícia Maria Alves

SUPERVISÃO DE PROJETO
Adriana De Cunto (Chefe de Redação)

AGRADECIMENTOS Equipe do G3 Técnicas de Combate pelo treinamento e instruções para o capítulo ‘O atirador’; banda Corpsia pela cessão de trilha sonora.

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