Um dia de cada vez longe do álcool
No Dia do Alcoólico Recuperado, conheça histórias das pessoas que destacam a importância da busca por ajuda e os desafios na reabilitação
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 09 de dezembro de 2024
No Dia do Alcoólico Recuperado, conheça histórias das pessoas que destacam a importância da busca por ajuda e os desafios na reabilitação
Matheus Camargo - Especial para a FOLHA

Problemas com álcool matam 91,9 mil pessoas por ano no Brasil, segundo dados da OMS (Organização Mundial da Saúde), e o número de pessoas que ingerem bebida alcoólica de forma abusiva cresceu de 18,4%, em 2021, para 20,8%, em 2023, de acordo com o relatório da Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico).
Para auxiliar no tratamento da doença, a irmandade AA (Alcoólicos Anônimos) está há 77 anos com grupos espalhados pelo país, em que dependentes partilham entre si os desafios que enfrentam diariamente. Neste dia 9 de dezembro se comemora o Dia do Alcoólico Recuperado e histórias de reabilitados pelo AA mostram a necessidade da busca por ajuda contra o problema.
Este é o caso de José (nome fictício), de 64 anos, que frequenta as reuniões há 27 anos e entende que é necessário se manter em tratamento até o fim da vida. “Sei que preciso desse aconselhamento, participar das reuniões ao longo da vida. Continuo participando das reuniões online para manter a sobriedade, partilhar minha história, e ajudar aqueles que chegaram agora também”, destacou um dos dependentes que segue nas reuniões do grupo de Alcoólicos Anônimos de Londrina.
Em entrevista à FOLHA, José compartilhou sua história, a série de acontecimentos que o levaram a entender que o alcoolismo quase abreviou sua vida, e que era necessária a busca por ajuda.
“Eu bebia socialmente, controladamente, até os meus 17 anos. Eventualmente tinha aquela bebedeira de domingo, em uma festa de formatura, mas foi aumentando a partir dos 18 anos. Comecei a beber mais vezes durante a semana. Após o casamento era quase todo dia e isso progrediu. Até que aos 37 anos eu já estava bebendo abusadamente. Perdia o horário, mudei minhas características, meu caráter. Comecei a mentir muito para justificar meu atraso em casa, o atraso no trabalho, com os clientes… Ficou difícil a vida. Comecei a ter uma morte moral na sociedade”, relatou ele.
'ENTENDI QUE TINHA UMA DOENÇA E ERA INCURÁVEL'
“Quando eu cheguei em casa um dia, totalmente alcoolizado, por volta das 4 da manhã, houve uma briga forte com minha esposa. Ela falou que a partir daquele dia iria se separar. Eu peguei um colchão, coloquei no carro, falei: ‘graças a Deus, estou me livrando de você’. O problema para mim não era o álcool e sim os horários. Passaram 15 dias, um mês separados, sentindo a dor da separação. Liguei para casa para falar com minhas filhas, tenho três, e uma delas disse: ‘a mãe falou que era bom você ir no ‘Alcoólicos Anônimos’, ela acha que você está bebendo demais’. Eu fui fazer uma comprovação (de que não tinha o problema). Quando eu cheguei e ouvi as partilhas, eu vi minha vida ali na minha frente. Me deu um choque. Eu entendi que tinha uma doença e era incurável. Eu precisava me abster totalmente do álcool. Me assustou a princípio: ‘como eu vou viver sem álcool? Eu não vou ter mais amigos. O mundo bebe, como eu vou ficar?’ Eu entendi depois que a sociedade não bebe, quem bebe é uma porcentagem da sociedade”, seguiu José sobre sua primeira experiência no AA.
José é frequentador de um dos cinco grupos de Alcoólicos Anônimos de Londrina. Na região metropolitana, as cidades de Assaí e Arapongas também contam com grupos próprios. Em todo o Paraná são 60 núcleos que contam com reuniões online, que são realizadas diariamente, e presenciais, que são semanais.
“Quando eu comecei a ter problema com o álcool - o doente alcoólico percebe pouco que está causando algo em virtude do álcool -, eu tinha graves problemas com a aceitação de Deus, era um inimigo meu, e tudo dava errado e ele não me ajudava em nada. Tive problema no trabalho. Era prestador de serviços… Acertava com um cliente hoje para resolver amanhã e não aparecia. Eu comecei a não ser mais produtivo. No outro dia você não consegue trabalhar. Na relação pessoal, as pessoas já me evitavam, não chamavam para festa, que eu ia ‘encher a cara’, discutir com a esposa. Eu pegava meu dinheiro que era para tratar das minhas filhas e entregava para os amigos no bar. Eu pagava para todo mundo”, lembrou José.
DIFICULDADE DE LIDAR COM EMOÇÕES
O dependente explicou que a experiência que tem com colegas no AA mostra que a diferença em cada organismo leva cada pessoa a uma resposta distinta com relação à doença. Segundo ele, após menos de um ano de participação nas reuniões o álcool já não fazia mais parte de sua vida.
“Cada pessoa tem uma maneira, um jeito, cada um absorve de uma maneira. Eu tive a graça de ter conseguido já no início me manter abstêmio”, destacou José, que revelou, porém, outro problema como consequência. “No meu caso, eu tive dificuldade de lidar com grandes emoções. É a grande meta do programa: ter equilíbrio emocional, ter um autoconhecimento.”
José afirmou jamais ter recaído de fato, mas que há dez anos viveu uma experiência que por pouco não o fez retroceder no tratamento.
“Eu tive uma discussão muito forte com minha esposa. Era um desequilíbrio emocional forte. Eu estou na minha sala e aqui tem um barzinho e uma adega de vinho. Não aconselho ninguém a ter. Eu peguei uma garrafa aqui de vinho, fui para um cômodo ao lado. Eu pensei: ‘vou beber e ela vai ver’. Mas eu lembrei do tempo de sobriedade, das minhas filhas, da vida que eu tenho, da transformação total. Aí peguei a garrafa e trouxe de volta”, disse o londrinense.
“Eu sei que no momento que eu colocasse o primeiro gole na boca, eu voltaria a beber na mesma intensidade que bebia antigamente. Eu não vou voltar a beber como um jovem de 15 anos, vou começar o processo onde ele foi parado naquele dia. Naquele momento eu tive consciência da minha partilha com os companheiros. Eu lembrei de histórias. Lembrei que quase bati o carro de frente com um caminhão. Fui ultrapassar de forma irregular após beber muito, estava com minha família toda. Seria o fim de todas elas.”
Ainda segundo a Vigitel 2023, o número de brasileiros que bebem e dirigem subiu de 5,4% para 5,9% entre os que responderam a pesquisa.
'OU VOCÊ PARA DE BEBER OU EU SAIO DE CASA'
Outra pessoa que frequenta as reuniões de AA em Londrina e contou sua história à FOLHA foi Lucy (nome fictício), de 47 anos, que está há quatro sem consumir álcool e que teve na pandemia de Covid a grande virada de chave de sua vida.
“Eu comecei a beber muito jovem. Com 12 anos eu já sentia uma ‘queda’ pela bebida. Enchia minha boca de água. Meu pai bebia. Eu via aquela bebida em cima da mesa e às vezes bebia escondida. Quando era adolescente, eu já bebia muito mais que os outros. Eu não conseguia parar”, citou ela, que revelou ter perdido o pai e três irmãos por problemas com álcool.
“Eu casei, tive meu filho, e comecei a beber em casa. Era beber de não conseguir parar. Eu só saía para os lugares que tinha bebida. Festa de criança, por exemplo, não queria ir. Meu objetivo era beber. Nos últimos cinco anos (antes de ficar sóbria) eu bebia todos os dias. Me afastei da empresa que trabalhava, fiquei dois anos longe, encostada pelo INSS. Nesses dois anos, piorei. Comecei a beber mais ainda. Chegou a pandemia, meu filho estava fazendo faculdade, ficou estudando em casa. Ele falou: ‘mãe, ou você para de beber ou eu saio de casa. Eu não aguento mais você assim’. Meu marido falou em separar. Eu resolvi procurar ajuda. Fiquei um ano internada em uma clínica de recuperação. Saí, depois voltei para outras internações. Só então eu conheci o AA. Era um grupo aberto, online. Fiquei assistindo às reuniões e me entendi (como alcóolica).”
Além de questões físicas, o consumo excessivo de álcool também afeta a saúde mental dos dependentes. Segundo o Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool), há evidências que apontam para a piora de transtornos como depressão e ansiedade relacionadas ao consumo excessivo de álcool. Foi um dos fatores que levou Lucy a seus piores momentos.
“Eu estive em um processo de síndrome do pânico e tentei tirar minha vida. Minha saúde mental foi pelo ralo. A saúde física também, já que não conseguia fazer nada: ou estava de ressaca ou em abstinência. Não conseguia fazer mais nada. Teve o afastamento das pessoas, das minhas amigas, não me chamavam mais para nada para não dar problema. Meu filho me pedia para buscar ajuda”, relatou Lucy, que detalhou sua primeira experiência no AA.
QUATRO ANOS DE SOBRIEDADE
“Minha primeira reunião foi online. No dia anterior tinha bebido muito, pedi para meu marido para me internar de novo. Ele disse para tentar algo diferente. Então eu procurei uma clínica na internet, mas apareceu o site do AA. Veio um senhor falar comigo (em um chat) e me explicou como funcionava. Pediu para eu não beber até a noite, ficar sóbria, que as reuniões começaram às 20h. Achei que era até golpe. Foi difícil. Chegou às 17h e eu queria beber, mas aguentei. Foi ali que entendi que alcoolismo é uma doença sem cura, mas com tratamento. Foi ali que eu entendi que precisava evitar o primeiro gole”, disse ela, que admitiu sentir dificuldade no tratamento.
“Meu marido ainda bebe. Às vezes têm bebida na geladeira. Uma vez, esse ano, tinha um copo de cerveja em cima da mesa, estava gelado, tinha as gotas em volta. Eu passava pela cozinha e vi aquilo. Eu quase bebi. Foi muito difícil. Outro dia, meu filho guardou no guarda-roupas uma garrafa de tequila que ele ganhou de presente. Eu vi, minha boca encheu de água. Eu pensei duas vezes… Não bebi. Eu evito o contato. Se eu sinto o cheiro, confesso que dá uma certa vontade”, admitiu.
MUDANÇA DE PERFIL
Presidente do Junaab (Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil) e porta-voz do Alcoólicos Anônimos no Brasil, Lívia Pires Guimarães explicou as ações do AA e revelou que houve uma mudança no perfil das pessoas que buscam ajuda na irmandade nos últimos anos.
Segundo ela, é cada vez mais comum que mulheres como Lucy sejam participantes de grupos, especialmente em plataformas online. “A irmandade é para qualquer pessoa, independente da religião, orientação sexual, idade, qualquer um, mas por questões culturais tínhamos um predomínio de homens adultos, com idade mais avançada, porque a repercussão da doença do alcoolismo é mais tardia. Mas com o início das reuniões online por conta da pandemia, aumentou expressivamente o número de mulheres”, destacou.
Segundo ela, são diversos fatores que levaram à mudança de perfil, como a facilidade para participar de reuniões online sem ter que deixar os filhos em casa, o medo pelo fato de a maioria das reuniões presenciais serem no período noturno, e até mesmo por medo de abrir seus relatos pessoas a um grupo formado, em sua maioria, por homens.
PANDEMIA FOI UM DIVISOR DE ÁGUAS
Outra mudança em relação à mudança de perfil do AA se deu por conta de perdas diretas devido à pandemia de Covid-19, segundo Lívia.
“Observamos que a pandemia foi um divisor de águas para o AA. Estamos tentando entender como vai ficar agora. Eram muitos idosos até então e infelizmente muitos morreram na pandemia. Muitos grupos fecharam definitivamente, porque se foram muitos membros na pandemia. O AA se sustenta a partir de suas próprias contribuições, não recebe nenhum recurso financeiro de fora. Se o grupo fecha, o AA não se mantém. Em algumas regiões do Brasil, grupos fecharam e tiveram dificuldade de voltar. Mudaram de forma definitiva para o online. Estamos nos organizando, o online veio para ficar.”
A presidente do Junaab fez questão de reforçar que o AA não realiza parcerias com o poder público ou privado e que os membros que realizam trabalhos são voluntários. Lívia Pires Guimarães indicou que a ideia da irmandade é ter “cooperação sem afiliação”, ou seja, caso haja o contato de uma empresa para um evento ou palestra, o AA pode entrar em cooperação, mas sem receber recurso algum.
Atualmente são cerca de 4 mil grupos em reuniões no Brasil, mas segundo a própria porta-voz é inviável o cálculo de pessoas atendidas, visto que não há cadastro ou pedido de documentação, visando justamente o anonimato.
EM LONDRINA
O site oficial do Alcoólicos Anônimos é o aa.org.br e todos os dados sobre grupos estão disponíveis.
Em Londrina são cinco grupos de reuniões presenciais, sendo eles o Grupo Central, na Rua Mato Grosso, 1.167; o Grupo Higienópolis, na Avenida Higienópolis, 1.073; o Grupo Viver Bem, na Avenida São João, 383, no Guaravera; o Grupo Londrina, na Avenida Dez de Dezembro, 647; e o Grupo Sobriedade, na Rua Flor do Campo, 134.
Aqueles que preferirem também podem solicitar ajuda pelo telefone ou Whatsapp (43) 99146-3304. (M.C.)
TRATAMENTO MULTIDISCIPLINAR
A psiquiatra Olivia Pozzolo, pesquisadora do Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool), destacou que o alcoolismo é definido como Transtorno por Uso de Álcool (TUA) e é caracterizado por um padrão que gera prejuízos à vida do indivíduo. Ainda segundo a especialista, o desenvolvimento dessa dependência é multifatorial.
“Envolve aspectos genéticos, psicológicos, sociais e ambientais. Outros fatores incluem histórico familiar de alcoolismo, início precoce do consumo, presença de transtornos mentais como ansiedade e depressão, e exposição a ambientes onde o consumo é socialmente incentivado. Outro ponto importante é o uso de álcool como mecanismo para lidar com o estresse, traumas ou dificuldades emocionais aumenta o risco de dependência”, explicou a médica.
O consumo excessivo de álcool pode gerar danos a curto e longo prazo. Conforme a especialista, a curto prazo se iniciam os problemas sociais, como dirigir embriagado, sexo sem proteção, decisões impulsivas que comprometem a segurança própria e de outras pessoas, bem como mudança no humor e sintomas de depressão. Entretanto, a longo prazo o alcoolismo pode gerar doenças fatais como cirrose e hepatite alcoólica, ligadas ao fígado, doenças cardiovasculares, câncer, e até mesmo a déficits cognitivos, alterando circuitos neurais e dificultando a capacidade de controle.
IMPORTÂNCIA DE GRUPOS DE APOIO
O tratamento, segundo Olivia Pozzolo, é multidisciplinar e inclui intervenções médicas, psicológicas e sociais.
“Geralmente, inicia-se com uma avaliação abrangente para compreender o padrão de consumo, os prejuízos associados e o nível de motivação do paciente para o tratamento. Pode incluir a desintoxicação supervisionada para manejo da abstinência. A psicoterapia desempenha um papel fundamental, ajudando a identificar e modificar padrões de pensamento e comportamento ligados ao uso do álcool, além de apoiar o indivíduo a refletir sobre sua relação com a substância”, explicou a psiquiatra.
“Medicamentos, como a naltrexona, podem ser prescritos para reduzir o desejo ou prevenir recaídas. Além disso, grupos de apoio, como os Alcoólicos Anônimos (AA), são frequentemente incorporados ao tratamento, com evidências científicas demonstrando benefícios significativos para a recuperação.”