As crises deflagradas pelo novo coronavírus exigem maior senso crítico sobre os comportamentos adotados até agora também na gestão pública da saúde e na medicina. José Eduardo Siqueira, professor de bioética do curso de medicina da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), em Londrina, aponta a necessidade de reflexões para avançarmos como sociedade na pós-pandemia.

Imagem ilustrativa da imagem 'Precisamos saber que somos vulneráveis', afirma professor e médico londrinense
| Foto: Marcelo Chello/CJPress/Folhapress

Os números da doença crescem exponencialmente atingindo todas as camadas da sociedade. Em um país tão desigual quanto o Brasil, quando se fala de pandemia, é fundamental apontar os comportamentos que trouxeram a saúde pública até aqui.

“Nós deveríamos ser conduzidos pelos princípios do SUS (Sistema Único de Saúde), feito em 1988, na época da nossa Constituição, que dizia que a saúde é um direito de todos e dever do Estado; e os quatro parâmetros do SUS são: universalidade, equidade, integralidade e controle social. Ao longo do tempo, o que temos visto é que houve uma progressiva desvalorização desses pilares”, afirma Siqueira.

O médico destaca que ao longo dos anos a redução da verba para a Saúde gerou o subfinanciamento do sistema, com baixo investimento do governo e crescimento da iniciativa privada. Para ele, esse comportamento adotado durante anos está custando caro agora. “Não existe leitos suficientes, sobretudo de UTIs (Unidade de Terapia Intensiva). Ficou claro que o SUS, com esse tempo de 40 anos, foi subestimado, a gente está vendo isso agora.”

icon-aspas "A gente vai ter que mudar o enfoque no curso de medicina e mostrar que a formação do profissional tem que ser mais holística; sobretudo, formar um profissional mais humilde e que não seja tão embebido pela tecnologia”
José Eduardo Siqueira -

PROTOCOLO DE ATENDIMENTO

Com poucos leitos, os médicos são submetidos a um embate ético, com protocolos por ele questionáveis de priorização de atendimento. “Estamos diante de uma doença que acomete de forma devastadora os idosos e alguns protocolos pretendem priorizar os mais jovens, porque estão na idade produtiva”, critica.

O médico cita o processo como parte de uma necropolítica. “Os médicos estão sendo obrigados a tomar uma decisão cruel, definir quem vai merecer o respirador e quem não vai, escolhendo quem vai morrer”, acrescenta. E reprova os critérios adotados. “Se fala nas mortes do CNPJ, morte das empresas, que seguramente vai acontecer, uma coisa que vai ter uma consequência devastadora, mas é um falso dilema dizer: CNPJ versus CPF. Nós já tivemos no Brasil mais de 13 mil CPFs que desapareceram com a doença”, aponta. E pede um comportamento mais solidário e de acolhimento aos mais vulneráveis.

O QUE APRENDER?

Siqueira acredita que o momento é de muita reflexão, inclusive, sobre a finitude humana. Para ele, a certeza de que a ciência pode resolver tudo se desmantelou com a chegada de um vírus desconhecido, de alta transmissibilidade, que não foi encontrada a cura, mostrando que todos somos vulneráveis. Isso, mudaria até o enfoque da medicina.

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“Inclusive, no curso de medicina, a gente tem que discutir a questão da finitude humana e cuidados paliativo. Nós estamos entrando em um momento da história da humanidade, com aproximadamente 25% de pessoas acima de 65 anos e tem doenças crônicas degenerativas incuráveis. A gente vai ter que mudar inclusive o enfoque no curso de medicina e mostrar que a formação do profissional tem que ser mais holística, vendo o ser humano mais completo e, sobretudo, formar um profissional mais humilde e que não seja tão embebido, fascinado, pela tecnologia”, aponta. Dos aspectos positivos que a pandemia impôs, menciona o papel importante da telemedicina e aulas remotas.

icon-aspas "O ser humano não é uma doença, ele é biográfico, é uma história, então cada cidadão enterrado é uma história enterrada"
José Eduardo Siqueira -

CUIDADOS PESSOAIS

Sobre os cuidados pessoais de saúde, Siqueira aponta que o novo coronavírus trouxe a higienização das mãos como lição aprendida e compara com outros momentos da história. “No começo do século 19, um cidadão descobriu que era importante lavar as mãos antes de entrar na sala de parto e ele foi ridicularizado”, recorda. Mas acrescenta que será uma parcela que vai levar esse novo comportamento adiante. “Você considera possível, viável, uma sociedade tão desigual, periferia, pessoas que não têm condição de ter água com esse comportamento? Eu acho que a classe média vai aprender e vai usar, mas não vai ser um valor universal.”

É UMA HISTÓRIA

Siqueira destaca as lições a serem aprendidas para que saiamos mais fortalecidos desse momento enquanto sociedade. “Precisamos saber que somos vulneráveis. Formarmos profissionais mais humildes. Nos conscientizarmos de que a ciência sempre tem resposta provisória. E que o ser humano não é uma doença, ele é biográfico, é uma história, então cada cidadão enterrado é uma história enterrada. Acho que nós temos que aprender e incorporar isso no nosso cotidiano.”

Para isso, faz um apelo aos gestores. “É preciso que o mundo político, os gestores e responsáveis pela saúde, tenham presente que a vida humana é a coisa mais importante e para isso há que se investir de uma maneira mais robusta na saúde, na educação e nos planos sanitários”. “É uma esperança, mas eu sou um realista. Eu acho que, lamentavelmente, nós vivemos em atender uma sociedade da Casa Grande e Senzala.”