Curitiba - Pesquisadores do Departamento de Genética da UFPR (Universidade Federal do Paraná) analisaram a presença do alelo responsável pela persistência da lactase, enzima essencial para a digestão de laticínios, nas populações negras e quilombola das Américas. A conclusão foi de que a tendência à intolerância à lactose, já alta entre povos americanos, é particularmente sensível para essas populações.

Imagem ilustrativa da imagem População negra é mais intolerante à lactose por causa de variantes genéticas
| Foto: iStock

Como o alelo se desenvolveu de forma independente por toda a Europa e em populações pastoralistas da África – dependentes de rebanhos para subsistência –, existem diferentes mutações africanas e apenas uma europeia. Em artigo publicado na revista científica Frontiers in Genetics, os cientistas analisam a frequência com que cada mutação está presente no continente americano.

Essa e outras pesquisas desenvolvidas no Departamento de Genética da UFPR aspiram contrapor o viés eurocêntrico predominante nos estudos biomédicos do mundo todo e, dessa forma, proporcionar melhores diagnósticos para doenças, permitindo tratamentos mais eficientes para todas as populações.

HIDRÓLISE

A enzima lactase é formada por enterócitos do intestino delgado, ou seja, é composta por células responsáveis por quebrar determinadas moléculas, como as da lactose, um açúcar não absorvível presente no leite de mamíferos. Esse processo, chamado de hidrólise, transforma a lactose em glicose e galactose, açúcares de fácil absorção pela mucosa intestinal.

Portanto, a persistência da lactase permite que o indivíduo consuma leite na vida adulta, pois tem um organismo capaz de fazer a digestão da lactose corretamente. Já a hipolactasia primária – ou a não persistência da lactase – está relacionada à indigestão e à má absorção da lactose, que pode ocasionar intolerância à lactose ou outros problemas gastrointestinais, como gases e diarreia. A pesquisa da UFPR avaliou exatamente isso, a persistência ou não da lactase.

A professora Marcia Holsbach Beltrame, orientadora do estudo, explica que a lactase é altamente expressa por recém-nascidos, mas que, com o crescimento, é natural que a enzima deixe de estar presente no organismo, ocasionando a não persistência da lactase. “O normal é que a enzima lactase esteja presente apenas na infância, pois é na fase de amamentação que consumimos leite. Depois, ela para de ser produzida”.

SELEÇÃO NATURAL

No entanto, essa condição foi modificada pela seleção natural, devido ao hábito de consumir leite, adquirido no decorrer da adaptação humana. “A persistência da lactase é uma característica humana que surgiu junto com o hábito de consumir leite de outros animais na idade adulta em populações humanas ancestrais. Com esse costume, apareceram mutações em diferentes populações humanas que fazem com que essa enzima continue sendo produzida por toda a vida”, destaca.

Segundo a pesquisadora, as pessoas que tinham essa mutação conseguiam consumir leite de animais sem apresentar os sintomas da intolerância à lactose, o que na época foi uma vantagem enorme na alimentação em populações pastoralistas. “Esse tipo de mutação aumentou de frequência nessas populações, por seleção natural, já que levavam a uma maior chance de sobrevivência e de reprodução dos indivíduos que a portavam. Isso aconteceu de forma independente na África e na Europa, com mutações diferentes”.

Para a realização do estudo, os cientistas da UFPR realizaram sequenciamento genético em brasileiros negros para encontrar a enzima lactase. A pesquisa avaliou os dados genômicos de pessoas negras em todo o continente americano com a parceria do pesquisador Victor Borba, da Universidade Federal de Minas Gerais.

Os resultados alcançados revelam que a frequência da persistência da lactase entre a população negra é baixa. “Fizemos o sequenciamento da região genômica que controla a expressão da enzima lactase em brasileiros negros e encontramos poucas pessoas com as mutações africanas de persistência da lactase. Isso nos mostra que, provavelmente, não temos muita ancestralidade de populações pastoralistas africanas no Brasil. A mutação europeia de persistência da lactase foi encontrada em uma frequência baixa nos brasileiros negros, sendo que em muitas pessoas nem foi detectada”, relata a pesquisadora.

CONTRASTAM COM RECOMENDAÇÕES ALIMENTARES

Os procedimentos e os resultados foram similares na pesquisa de âmbito continental. Para ela, esses dados são importantes pois contrastam com as recomendações alimentares vigentes nos países americanos. O trabalho foi realizado a partir de uma junção de diversos dados genômicos de vários grupos de pesquisa e de bancos de dados.

A colaboração da UFPR foi fundamental para realizar essa descrição sobre as Américas, mostrando que a maioria das pessoas no continente não tem mutações de persistência da lactase, portanto podem ser intolerantes à lactose.

De acordo com a pesquisa, nas Américas, apenas algumas populações do Brasil, de Cuba e do Uruguai têm uma proporção elevada de indivíduos que possuem a persistência da lactase. Entretanto, Brasil e Uruguai estão entre os países que mais consomem leite e derivados.

“Vimos que a frequência da persistência da lactase varia bastante entre as populações nas Américas, mas em geral não passa de 50% e chega a ser zero em algumas populações. Isso significa que a maior parte das pessoas, em especial as pessoas negras e indígenas, provavelmente são intolerantes à lactose”, explica a pesquisadora.

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| Foto: Arquivo Pessoal

ANCESTRALIDADE

A presença do alelo 13910∗T no gene MCM6 é o indicativo mais característico da persistência da lactase e está diretamente relacionado com a ancestralidade europeia. Segundo o estudo, a baixa frequência com que ele foi encontrado pode ser um indicativo de que dietas que tenham como base produtos derivados do leite não sejam a melhor recomendação para as populações sem ancestralidade europeia.

“A persistência da lactase foi quase que exclusivamente introduzida nas Américas pelos europeus, já que os povos nativos do continente americano não tinham mutações de persistência da lactase em alta frequência e também não há evidências de que eles consumissem leite, e as mutações africanas estão presentes em frequências muito baixas, mesmo nas populações de maior ancestralidade africana”, relata a pesquisadora.

Portanto, a pesquisa indica que as dietas baseadas em diretrizes, políticas de saúde e dados europeus devem ser reconsideradas e que, até que se tenham estudos mais avançados sobre o papel da ingestão de laticínios no desenvolvimento de doenças complexas, deve-se considerar substitutos, a exemplo de produtos à base de plantas, como melhor opção para as orientações dietéticas no continente americano.

“A maioria das pessoas nas Américas não consegue digerir adequadamente a lactose. Esse número é ainda mais expressivo nas populações negras e indígenas, a exemplo do Sul do Brasil, onde mais de 66% das pessoas negras apresentam essa característica”, revela a professora, que acredita na necessidade de novas diretrizes nutricionais, considerando as características expostas no estudo.

“Ter uma dieta rica em laticínios não deveria ser o padrão nas populações do nosso continente. Esses guias alimentares precisam ser reformulados conforme as características das populações latino-americanas, principalmente em países de maioria negra ou indígena”.

PIONEIRISMO

Beltrame chegou ao objeto de pesquisa após uma experiência nos Estados Unidos. Em contato com o trabalho da pesquisadora Alessia Ranciaro, que descobriu as mutações africanas, ela se sentiu inspirada e começou a questionar sobre quais mutações poderiam estar presentes no Brasil.

“Não havia muitos estudos que tivessem investigado isso. A maioria avaliava só a mutação europeia e em pessoas brancas. Então, voltei ao Brasil e, com o apoio da Alessia, minhas alunas começaram a desenvolver o projeto”.

A pesquisa feita na UFPR foi a primeira a investigar a persistência da lactase em todo o continente americano, com um grande número de indivíduos e com populações diversas. “Foram 7428 indivíduos analisados nas Américas do Sul, Central e do Norte, sendo 25 populações de 12 países e 259 indivíduos afro-brasileiros. Também foi o primeiro trabalho a investigar a persistência da lactase em uma população quilombola”, declara a pesquisadora.

A falta de verba, no entanto, foi um obstáculo para o desenvolvimento do estudo. “Foi um grande desafio realizar essa pesquisa com pouquíssimos recursos financeiros. Tivemos apenas verba interna da UFPR para o projeto de mestrado da Ana Cecília Guimarães Alves, minha orientanda. Mas o custo da pesquisa era bem maior, então contamos com recursos de nossos colaboradores”, relata.

Apesar das dificuldades, a professora está contente com o andamento da pesquisa, mas ainda vê um longo caminho a ser percorrido. “Do ponto de vista científico, é um tema muito interessante, tanto pela genética em si e pela evolução, quanto pelas consequências na saúde humana. Os dados publicados foram gerados no mestrado da Ana Cecília e na iniciação científica da Natalie Mary Sukow, ambas sob minha orientação, e continuamos nessa linha de pesquisa pois ainda temos muitas perguntas sem resposta”, comenta.

PREENCHER A LACUNA

A linha de pesquisa, do Programa de Pós-Graduação em Genética (PPG-GEN) da UFPR, tem como objetivo conhecer a diversidade genética da população negra no Brasil, as origens e os impactos na área de saúde. Ela foi criada em 2019 por Beltrame, a fim de preencher a lacuna no conhecimento sobre a genética e a saúde da população negra.

“Menos de 10% das pesquisas genômicas no mundo todo são feitas com populações africanas ou de ancestralidade africana. Nos Estados Unidos e no Caribe, só 2% dos participantes são africanos ou de populações negras. No Brasil, não temos dados, mas também é difícil encontrar uma pesquisa na área biomédica que tenha sido realizada com pessoas negras ou que tenha incluído um número suficiente de negros”, afirma Beltrame.

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| Foto: Divulgação - UFPR

A linha de pesquisa foi certificada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) dentro do grupo de pesquisa de genética de populações humanas. Essa linha é importante para as futuras aplicações na saúde, pois o conhecimento adquirido permite entender as doenças que atingem essa população, a origem e as causas dessas doenças do ponto de vista biológico e o desenvolvimento de testes diagnósticos e tratamentos adequados para a população negra, que é mais da metade da população do país.

“Pensar que no Brasil não há necessidade de fazer estudos voltados para a população negra por conta da miscigenação é um erro e uma face do racismo. A população negra, além de sofrer mais de diversas doenças, apresenta maiores frequências de certas variantes genéticas que interferem nessas doenças”, explica a pesquisadora que também destaca o conhecimento da ancestralidade, possível a partir dos estudos da genética.

“Tem a importância do resgate de uma história de origens africanas da nossa população, de quais povos africanos os brasileiros descendem. Uma história que foi violentamente apagada na escravidão e que a genética pode ajudar a reconstruir”. (Com informações da Sucom UFPR)

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