De acordo com diversos estudos, o transtorno do espectro autista, ou TEA, acomete quatro vezes mais homens do que mulheres. Esse fato pode ser explicado por fatores biológicos, mas o machismo também pode estar por trás, colaborando para que mulheres sejam mais tardiamente diagnosticadas ou até mesmo recebam diagnósticos incorretos, como TDAH, bipolaridade, depressão, ansiedade, borderline.

Esse é o caso de Bianca Galvão, 26, de Pouso Alegre (MG). A dentista conta que, por ser mulher, seu processo de diagnóstico foi mais lento do que o de outras pessoas, e até mesmo invisibilizado. Ela e seu melhor amigo foram diagnosticados com TEA aos 15 anos. Mas, enquanto todos acreditavam que o amigo realmente tinha características do transtorno, o parecer de Bianca foi questionado pela família. "Os meus pais não aceitaram, meu pai principalmente. Ele falou que dava para ver nitidamente as características do meu amigo, que era palpável, mas que o meu não era e que iríamos procurar outros médicos

Acontece que Bianca também tinha características nítidas de autismo. Ela era socialmente isolada, só conversava com uma única amiga na escola, e andava dando pontapés. Observando esses comportamentos, a escola a encaminhou para a psicóloga do local, que a tratou com indiferença e descaso.

"Ela me chamou na sala dela e disse que eu só sairia de lá se contasse o que estava acontecendo, mas eu não sabia o que eu tinha. Pensei que ficaria naquela sala para sempre, mas consegui enviar uma mensagem para o celular da minha mãe, que me buscou."

Quando questionada se ela e o amigo eram tratados de formas diferentes no colégio, ela confirmou que sim, que ele sempre teve atenção por parte dos professores e corpo docente.

'SEI QUE SOU UMA EXCEÇÃO'

Já em relação ao tratamento médico, Bianca conta que ela e o amigo se consultaram com um neuropediatra e que ele foi igualmente atencioso com ambos, mas que isso é uma exceção. "Eu sei que eu sou uma exceção quando se fala em diagnóstico que deu certo. O meu médico foi ótimo comigo, tanto que consulto com ele até hoje."

O médico em questão é Walter Magalhães, do Hospital das Clínicas Samuel Libânio, em Pouso Alegre (MG). Apesar de ter fechado o diagnóstico de Bianca com precisão, ele precisou pedir uma série de exames, incluindo ressonâncias magnéticas, e o mesmo não aconteceu com o amigo.

Embora cada pessoa e diagnóstico sejam únicos, é nítido perceber como meninas têm mais dificuldades de serem corretamente lidas pela medicina, até mesmo por profissionais da saúde mental especializados no caso. Educadas desde cedo para serem quietas, bem comportadas, e esconderem quaisquer problemas que venham a ter para não incomodarem os demais, as mulheres vão mascarando seus comportamentos, o que atrapalha suas vidas em diversas esferas.

'FALOU QUE MEU QI ERA MUITO ALTO'

Com Nadime Samaha, de 27 anos, não foi diferente: a cantora e criadora de conteúdo de Curitiba (PR) passou por cerca de quatro psiquiatras e neurologistas até receber o diagnóstico de TEA, há um ano, diferente de seu irmão, que foi diagnosticado logo na infância, com um ano de idade.

"Uma vez eu cheguei com um teste de uma neuropsicóloga atestando que eu tinha autismo para um médico e ele falou que meu QI era muito alto, que não era para eu me preocupar porque não era uma coisa que iria afetar minha vida, sendo que uma coisa não tem nada a ver com a outra."

Nadime acredita que muitos profissionais da saúde não estão atualizados sobre como diagnosticar e lidar com o autismo, e isso acaba atrapalhando e gerando resultados equivocados, principalmente em mulheres que tendem a praticar mais masking do que homens.

A cantora tem um perfil na plataforma TikTok em que compartilha sua vivência e conhecimentos sobre TEA, e várias de suas seguidoras relatam experiências semelhantes de diagnósticos errados ou tardios.

Por meio desses relatos e de sua própria experiência, ela acredita que as expressões do autismo em mulheres demoram mais a serem compreendidas como características que estão de fato dentro do espectro. Isso porque, há pouco tempo, os estudos eram mais direcionados às características do autismo em meninos.

EXEMPLOS CLÁSSICOS

Existem dois exemplos clássicos trazidos nos livros de medicina: observar se os meninos brincam com carrinho girando a roda sem parar ao invés de direcionar o brinquedo para sua real função, e a maneira como ele enfileira os brinquedos. Já comportamentos semelhantes em meninas não chamam a atenção.

"Por exemplo, ficar aficcionado por algum ator, por alguma banda, por algum boyband coisa assim é 'normal'. Agora, se o menino tem alguma fixação em algum objeto, as pessoas vão achar estranho. Então, a menina não tem hiperfoco, ela tem a paixonite; ela não tem TOC, ela é organizada.

Nadime também acredita que a intervenção em mulheres autistas deveria ter certas especificidades em relação à intervenção realizada em meninos e homens do espectro. Em especial, pelos riscos que as mulheres enfrentam diante de uma sociedade machista, sendo mais difícil a leitura do que é ou não perigoso para as mulheres autistas, por uma certa dificuldade de compreender atitudes e pretensões das pessoas.

DIFICULDADE EM DISTINGUIR A INTENÇÃO DOS OUTROS

Cassandra Peron, psicóloga especialista em psicopedagogia, educação especial, psicomotricidade e neuropsicologia, recebeu em seu consultório mulheres autistas que relatavam dificuldade em conseguir distinguir a intenção dos outros, incluindo os médicos. Além de se sentirem invadidas e desconfortáveis em diversas situações que talvez pessoas neurotípicas poderiam não ver problema.

"Às vezes o toque, às vezes algum olhar que ela não compreende de um médico, uma brincadeira que ele faz que ela não compreende a intenção. São nessas minúcias, nessas nuances, que vem essa sensação de ser invadida das mais diversas formas."

Ela também garante que embora tenha notado modificações na área médica e psicológica em relação aos diagnósticos do TEA, as descrições das características do transtorno ainda são bastante voltadas para o gênero masculino e para o comportamento externalizante, o que não acomete as mulheres, que, no geral, têm comportamentos internalizantes.

É AUTISMO OU TDAH?

Uma situação muito comum quando se fala de pacientes mulheres, é elas receberem diagnósticos incorretos. Peron confirma que a maioria das pacientes do gênero feminino recebe primeiro um diagnóstico de TDAH, ansiedade ou depressão —isso se tratando de diagnóstico único, não de uma comorbidade que acompanha o autismo.

"As meninas e mulheres vêm de uma caminhada de passar por diversos profissionais, e não se entendendo naquele diagnóstico de TDAH, continuam angustiadas. É raro encontrar uma autista mulher que teve de primeira o diagnóstico de TEA.

A neuropsicóloga destaca ainda que quando não recebem o diagnóstico equivocado ou de alguma comorbidade, sofrem até mesmo negligência médica a respeito dos apontamentos trazidos por elas.

"Elas escutam que o que elas têm não é autismo, que é uma desculpa, falta de terapia. O médico diz: para de frescura, são situações que constrangem, chateiam e não ajudam em nada. Há ainda muito julgamento nesse sentido.

Diante desse cenário de negligência e preconceito, Peron questiona os dados que comprovam que para cada quatro meninos autista, há uma menina com o TEA. "Quantos diagnósticos mais poderíamos ter se olhássemos com atenção para as meninas?", diz.

Ela aponta que não há um marcador genético totalmente bem definido, o que torna equivocado assumir que as características do TEA estão totalmente ligadas ao gênero masculino.

"Eu diria que não somos só um ser biológico, temos os fatores sociais e certamente as influências do ambiente também vão interferir nesse diagnóstico. Tudo isso constituiu a personalidade de uma pessoa. Não tem como negar a influência do gênero, mas há também os fatores sociais. Por exemplo, uma mulher autista no Brasil será totalmente diferente de uma no Canadá."

COMO DIAGNOSTICAR?

A terapeuta pontua que uma maneira adequada de diagnosticar o TEA em mulheres (e em todos os pacientes) é por meio de entrevistas bem elaboradas e detalhadas, com duração de no mínimo uma hora e meia, e apurando toda a infância e vida pregressa dessa mulher. Algo que nem sempre é feito por todos os profissionais da área da saúde

"O que eu destaco que faz toda diferença é a entrevista, e nem todos os profissionais dedicam uma hora, uma hora e meia de conversa com essa paciente. Conhecer a história pregressa dessa mulher, a infância dela, a relação com a família é fundamental. Porque se a gente se baseia puramente na observação, iremos nos equivocar no diagnóstico, uma vez que as mulheres mascaram, e há inúmeras pesquisas que provam isso."

Ela também se mostrou contrária a uma abordagem única e simplificada, enfatizando a importância de uma intervenção multidisciplinar, contando com neurologistas, psiquiatras e psicólogos.

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