A poesia, a sabedoria bíblica, a MPB e o rock and roll já tentaram explicar o que será que será vive na ideia dos amantes, mas nem Camões, que definiu o amor como fogo que arde sem se ver, e nem o Rei Salomão, que escreveu que a jornada de um casal é mais misteriosa que o caminho de uma ave no céu, encontraram uma resposta para a pergunta do roqueiro Renato Russo. “Quem inventou o amor, me explica, por favor?”

Depois da arte, da música, da religião e da experiência mística, a ciência também se arrisca a explicar o inexplicável, ou melhor, a neurociência com os avanços dos estudos da mente humana tenta entender melhor as raízes desses sentimentos que unem os casais da paixão avassaladora ao amor infinito (enquanto dure).

Palestrante da 22ª edição do evento “Brain, behavior and emotions”, congresso científico na área de Neurociências, realizado na semana passada, em Florianópolis (SC), a presidente da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), a professora Carmita Abdo, falou sobre o tema na mesa redonda “A química do amor - da patologia à saúde mental”.

Segundo Abdo, que também fundadora e coordenadora do ProSex (Programa de Estudos em Sexualidade) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), a paixão é universal e presente em todas as épocas, etnias, independentemente da idade, gênero, orientação política e religião.

O sentimento forte, intenso e envolvente, de acordo com a professora, pode levar o apaixonado a um estado de depressão ou ansiedade, alterar o sono e até a hipomania, quadro com energia e agitação em excesso, impaciência e falta de concentração no período da paixão, que vai de 6 meses a 2 anos.

“Principalmente entre jovens adultos e adolescentes, estar apaixonado é um evento crítico da vida, desafiador, mas também chega a ser assustador”, afirmou a psiquiatra.

'AS SENSAÇÕES SÃO DE OTIMISMO'

Ela lembra que o estresse crônico faz parte da vida e estimula o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal que secreta o hormônio cortisol, que mexe com o sistema autônomo e diminui o funcionamento cardiovascular, defesas, memória e a atividade sexual.

“A ansiedade e depressão aumentam, pois estamos soltando muito cortisol e muita adrenalina na circulação. Mas, quando o estresse tem como base o amor, as sensações são de otimismo, bem-estar com a liberação de substâncias positivas como a endorfina, o neurotransmissor da dopamina e o hormônio da ocitocina que levam ao vínculo", detalha a especialista. "Neste período, a motivação, a recompensa, o prazer e a confiança são sentimentos que dominam os casais, o que derruba a depressão, a ansiedade e o isolamento. Por outro lado, aumentam as defesas imunológicas e a atividade sexual com a saúde preservada”, analisa Abdo, que destaca que o estresse não é necessariamente ruim, quando relacionado ao amor.

'ENAMORAR-SE PROVOCA ALTERAÇÕES HORMONAIS TRANSITÓRIAS'

De acordo com ela, uma pesquisa científica italiana acompanhou 24 pessoas, 12 homens e 12 mulheres, recentemente enamorados e comparou com um grupo controle com o mesmo número de integrantes, sem parceiros ou em relacionamentos a longo prazo.

O objetivo era medir os níveis de substâncias e hormônios como testosterona, que aumenta a libido (desejo sexual), dopamina e ocitocina, responsáveis pela sensação de apego e recompensa entre os casais.

Conforme Abdo, a pesquisa observou que o estradiol, a progesterona e outros hormônios sexuais não diferiram, estando em níveis normais tanto no grupo de enamorados quanto no grupo controle. “Porém, o cortisol estava muito alto no grupo dos enamorados, em pleno estresse, e a testosterona estava mais baixa nos homens e isso favorece o vínculo, ou seja, diminui a infidelidade. Já nas mulheres, a testosterona estava maior com a libido em alta”, explicou.

Mas, a pesquisa voltou a acompanhar o grupo, após o período entre 12 e 24 meses, sendo que as diferenças hormonais que favorecem o clima de romance entre os casais haviam desaparecido. “Enamorar-se provoca alterações hormonais transitórias, algumas das quais, específicas para cada gênero. Não sei se a gente sobreviveria a uma paixão mais do que ela dura. Talvez, a gente se acabasse, pois, a gente já se acaba em alguns meses”, brincou.

PAIXÃO, INTIMIDADE E COMPROMISSO

Para uma relação duradoura, a ciência aponta um caminho desafiador: a teoria do triângulo do psicólogo americano Robert Sternberg, que defende que o amor é composto por paixão, intimidade e compromisso.

“Se existe só intimidade, isso é amizade. Se a relação tem apenas compromisso é um amor vazio. Já no caso da paixão, é uma obsessão. Segundo a teoria, o amor estaria na confluência em sentir ao mesmo tempo paixão, intimidade e compromisso. Difícil, pois quando a paixão está presente, a intimidade ainda não chegou, e quando chega no compromisso a paixão pode ter acabado. A teoria é sensacional, mas será que a gente consegue aplicar?”, questiona a psiquiatra e professora Carmita Abdo.

PAR EMPÁTICO

Ela aconselha que a pessoa tente a empatia como base das escolhas com a capacidade de perceber os sentimentos do parceiro sem julgamentos, que é um componente cognitivo da empatia.

“Já o componente afetivo é a capacidade de ter uma reação emocional em sintonia com a emoção da outra pessoa. Seja a expressão verbal ou não verbal, como me aproximo e como eu me coloco, é o que valida a outra pessoa. Se me aproximo sorrindo e abraçando ou se me aproximo com cara de quem não está gostando. Isso representa mais ou menos empatia no componente comportamental”, avalia Abdo.

Ela também destaca que existe uma relação muito íntima entre empatia e satisfação conjugal: quanto maior é a satisfação, capacidade de perdão, inibindo respostas destrutivas, maior a capacidade de resolver conflitos. “Assim, nós estamos diante de casais empáticos, um preditivo de ajustamento e harmonia. Nem todo mundo tem a sorte de achar seu par empático. Você pode até ser empático, mas, às vezes, a pessoa com quem você se relaciona não tem essa condição e as coisas não funcionam.”

'A DEPRESSÃO E A EMPATIA ESTÃO MUITO RELACIONADAS'

O resultado pode levar até a prejuízos no sistema imunológico por conta de um relacionamento ou casamento sem empatia e amor com doenças, abuso de substâncias químicas e até suicídio.

“A depressão e a empatia estão muito relacionadas. O reconhecimento das expressões faciais ocorre quando a pessoa é empática. Quem está deprimido tem dificuldade em reconhecer a face de felicidade de alguém, não acaba percebendo a tristeza do outro e até identifica a face neutra como triste, pois vê no outro algo que diz respeito a si próprio", analisa.

"A capacidade de perceber as próprias emoções nos leva a perceber as emoções alheias e facilita as relações interpessoais. A psicoterapia ajuda a perceber as emoções e a capacidade para conhecer as próprias emoções e conseguir relações interpessoais mais satisfatórias”, acrescenta a psiquiatra.