“Sou outra pessoa agora e todo mundo tem percebido isso. Meu dia a dia mudou em tudo. Eu me esquecia de coisas básicas, saía de casa para ir a um lugar e parava em outro totalmente diferente. Agora não, eu vou e volto, durmo bem, acordo mais disposto e faço meu chimarrão”.

A mudança na rotina que o agricultor Delci Ruver, 78, vem experimentando nos últimos anos é como um recomeço de vida para ele e para a esposa Maria Ruth Gayer Ruver, 77. Eles moram em uma área rural de Planalto, no Sudoeste do Paraná, e relatam o quanto Ruver foi demandando uma atenção especial após o diagnóstico da doença de Alzheimer.

“Era complicado deixá-lo sozinho. Passei a dormir só depois que ele se deitava por medo de ele esquecer o fogão ligado ou sair de casa. Ele esquecia a porteira aberta e não podia mais ficar perto do açude pelo risco de algum acidente. Agora ele já percebe detalhes importantes e dá para levarmos uma vida mais tranquila”, comenta a companheira.

Com essa retomada da qualidade de vida, a história de Ruver se tornou conhecida recentemente pelo fato de ele ter participado de um estudo pioneiro no Brasil sobre o uso de óleo da cannabis em pessoas com Alzheimer.

Diferente de outras pesquisas que vêm sendo conduzidas em todo o País, o estudo da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), em Foz do Iguaçu (Oeste), avalia os efeitos do uso diário de um extrato composto por THC (Tetrahidrocanabinol) e CBD (Canabidiol).

Para ter acesso aos extratos da cannabis, os pesquisadores contam com a Abrace (Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança), organização sem fins lucrativos, conhecida como a primeira instituição do Brasil autorizada pela Justiça a cultivar a maconha para fins medicinais.

HUMOR E MEMÓRIA

Os resultados após 22 meses de acompanhamento mostraram que Ruver teve uma reversão dos sintomas com melhoras no humor, sono e memória, além da doença se manter estável. “A doença de Alzheimer evolui muito rápido. Em aproximadamente cinco anos após o diagnóstico, o paciente tem perda cognitiva significativa. Esse é um dado importante porque nenhum medicamento convencional disponível hoje é capaz de barrar a progressão da doença, além do fato de não promover uma recuperação da autonomia como observamos nesse paciente”, diz a farmacêutica Ana Carolina Ruver Martins.

Ela é neta de Ruver e iniciou os estudos com canabinoides (compostos derivados da cannabis) em pacientes com doença de Parkinson. “Mas diante da progressão rápida da doença no meu avô, me juntei a outros pesquisadores e ao neurologista Elton Gomes da Silva para montar um protocolo de pesquisa com o objetivo de avaliar os efeitos do tratamento para pessoas com Alzheimer”, comenta.

Pesquisadora Ana Carolina Ruver Martins
Pesquisadora Ana Carolina Ruver Martins | Foto: Divulgação/Arquivo pessoal

Os estudos começaram no final de 2017, quando Ruver já apresentava o grau moderado de Alzheimer. Ele passou a fazer uso diário de 500 microgramas de extrato da cannabis, preparada com uma maior concentração de THC. Hoje, ele segue utilizando as gotas do composto todos os dias antes de dormir.

“O THC é muito conhecido pelos efeitos psicoativos, porém é uma substância que tem valor terapêutico para várias doenças; já o CBD é o composto mais conhecido dentro da área farmacêutica, principalmente pelo efeito antiepilético e também antidepressivos. Quando combinadas essas substâncias, observamos que têm efeitos neuroprotetores”, afirma a farmacêutica.

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MAIS PACIENTES

De acordo com a pesquisadora Ana Carolina Ruver Martins, até a publicação desse estudo, não havia nada semelhante comprovado em literatura. A partir desses resultados, que envolveram avaliações cognitivas e observação de fatores bioquímicos, um novo protocolo foi desenvolvido para ver como os resultados se reproduzem em um grupo maior de pacientes.

No segundo semestre de 2021, outros 28 pacientes diagnosticados com a doença de Alzheimer, em estágio leve e moderado, também passaram a ser acompanhados. Metade do grupo fez uso da mesma dosagem do óleo da cannabis e a outra metade, de placebo. “Estamos fazendo a análise estatística dos dados, mas o que conseguimos adiantar desse trabalho é que os pacientes que fizeram uso de canabinoides durante seis meses se mostraram clinicamente estáveis”, diz.

REJUVENESCIMENTO NEURONAL

O professor de Medicina e Biociências da Unila, Francisney Nascimento, coordenador da pesquisa, esclarece que na doença de Alzheimer as pessoas vão perdendo neurônios e o THC faz uma efeito de rejuvenescimento neuronal, ou seja, impede que os neurônios morram ou recupera aquelas que estão debilitados.

“Isso ficou muito claro quando aplicamos os estudos em animais e esses nossos novos estudos estão mostrando que o efeito é o mesmo em humanos. Outras pesquisas já comprovaram que nos processos de inflamações e de estresse oxidativo, que são bioquímicos naturais do organismo provocados pelo organismo no processo de envelhecimento e, que também levam à morte ou disfunção dos neurônios, o THC e o CBD causam efeitos anti-inflamatórios e antioxidativo”, detalha.

Para a pesquisadora Martins, esses primeiros achados são animadores porque podem representar “um ganho gigantesco na qualidade de vida não só do paciente, mas também dos cuidadores, da família como um todo”.

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. | Foto: iStock

'AINDA TEMOS MUITO A ANDAR'

Após a publicação deste novo estudo conduzido com 28 pacientes, os pesquisadores da Unila querem dar continuidade aos estudos, avaliando mais pacientes com diferentes doses do óleo da cannabis. “Ainda temos muito a andar, mas como universidade e pesquisa, nossa proposta é sempre mostrar mais evidências que deem base clínica para que os médicos possam prescrever o tratamento aos pacientes”, afirma o professor da Unila, Francisney Nascimento.

Ele destaca que a legislação já permite que os derivados da cannabis sejam prescritos por médicos para qualquer doença, desde que os pacientes não apresentem melhoras nos tratamentos convencionais.

Segundo Nascimento, nos tratamentos com os medicamentos disponíveis hoje para Alzheimer, um terço dos pacientes tem estabilidade, mas por um período curto, de seis a oito meses. “Depois desse tempo, a doença segue progredindo. No caso de Delci Ruver (agricultor de 78 anos que participa do estudo pioneiro), ele segue estável há praticamente quatro anos. Além disso, ao contrário dos medicamentos convencionais, o óleo da cannabis não apresentou, até o momento, nenhum efeito adverso”, destaca.

A Unila iniciou os estudos com os canabinoides em 2017, através de uma paciente jovem, que apresentava muitos problemas motores, cognitivos e emocionais ao sofrer um traumatismo cranioencefálico devido a um acidente de carro.

“Em 2019, publicamos um artigo demonstrando que ela teve uma melhora rápido dos problemas motores e, após três meses de uso do extrato, passou a apresentar também melhoras na cognição. A partir disso, passamos a olhar para outras possibilidades”, diz.

Imagem ilustrativa da imagem Idoso do PR tem reversão de sintomas de Alzheimer com óleo de cannabis
| Foto: Divulgação/Arquivo pessoal

SETEMBRO LILÁS

Segundo a Alzheimer’s Association, organização de saúde voluntária mundial dedicada ao cuidado, suporte e pesquisas envolvendo o Alzheimer, trata-se do tipo de demência mais comum, causando problemas na memória, pensamento e comportamento.

No Brasil, estima-se que são 1,2 milhão de casos, sendo que a maior parte ainda sem diagnóstico. Em todo o mundo, mais de 35 milhões de pessoas são diagnosticadas com a doença.

Nos estágios iniciais, os sintomas de demência podem ser mínimos, mas pioram conforme a doença causa mais danos ao cérebro. A taxa de progresso da doença é variável conforme a pessoa, contudo, pessoas portadoras de Alzheimer vivem em média até oito anos após o início dos sintomas, de acordo com a Alzheimer’s Association.

Buscando ampliar a conscientização e desafiar o estigma que cerca a demência, no dia 21 de setembro é comemorado o Dia Mundial da Doença de Alzheimer e a cor lilás foi escolhida para marcar a campanha durante todo o mês.

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