Curitiba - A retina, um fino tecido que reveste a camada de trás dos olhos, é o único lugar do corpo em que médicos podem observar os neurônios sem precisar abrir o crânio. A partir dessa técnica, pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Medicina Interna e Ciências da Saúde da UFPR (Universidade Federal do Paraná) publicaram um estudo que mostra a possibilidade de haver uma relação direta entre marcadores biológicos (alterações na retina, por exemplo, a espessura da camada que a cobre ou fibras nervosas que formam o nervo óptico) e o diagnóstico de esquizofrenia.

Essa pesquisa, de caráter inovador, está em andamento, e os resultados apresentados até agora são animadores, segundo os cientistas. O desenvolvimento dessa técnica pode abrir possibilidades de um novo diagnóstico para a doença, que atinge cerca de 21 milhões de pessoas no mundo, e quase 1% da população brasileira, de acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde).

Marcelo Alves Carriello é psiquiatra e mestre pela Pós-Graduação em Medicina Interna e Ciências da Saúde da UFPR. Ele conta que o interesse pela pesquisa surgiu por meio da leitura de artigos divulgados na área, que está em constante crescimento. Por isso, junto de seu orientador, o médico Raffael Massuda, e em conversa com o médico oftalmologista Mario Sato, resolveu investigar a relação entre duas áreas da medicina: a psiquiatria e a oftalmologia.

PSIQUIATRIA E OFTALMOLOGIA

A aproximação entre esses dois ramos, que em princípio podem parecer distantes, foi suficiente para alcançar resultados preliminares de grande impacto. “O que percebemos foi a redução do volume da mácula [pequena região no centro da retina] nos pacientes com esquizofrenia quando comparado ao de pessoas da mesma faixa etária e sexo, mas sem transtornos mentais”, conta o pesquisador. Essa parte chamada “mácula” permite, aos seres humanos, uma visão nítida e detalhada. As suas células convertem a luz em impulsos elétricos, que são enviados ao cérebro.

Mario Sato, que é professor associado de Oftalmologia na UFPR e responsável pelo setor de Neuro-Oftalmologia e Eletrofisiologia Ocular do Hospital das Clínicas, também comenta que essa aproximação entre as áreas é muito importante para o bem dos pacientes. “São muitas as doenças psiquiátricas que afetam a estrutura e a função do cérebro“, comenta. “Esses exames de eletrofisiologia ocular conseguem identificar essas alterações, porque junto da tomografia de coerência óptica não é necessário a subjetividade para avaliar os pacientes”, explica.

ESPESSURA E SINTOMAS

Outra descoberta do estudo foi uma correlação entre a espessura da camada de fibras da retina com os sintomas de esquizofrenia. “Ou seja, quanto menor a espessura dessa camada, maior eram as quantidades de traços presentes na esquizofrenia. Esses sintomas são a inflamação dessas áreas”, conta Carriello. Entre eles, estão dificuldades na expressão de emoções, diminuição da fala, bem como a manifestação de alucinações e delírios.

Esse dado já foi publicado em revistas internacionais e, conforme Rafael Massuda, é possível partir para novos caminhos no desenvolvimento científico. “Começamos a perceber que em áreas neuronais das pessoas com esquizofrenia, há a diminuição desse volume. E mesmo no cérebro é possível perceber que esses pacientes possuem a diminuição das estruturas de sinapse dos neurônios“, explica o médico. Sinapse é o termo utilizado para o número de conexões dos neurônios no cérebro. Desta forma, se existe essa redução, é possível associar diretamente ao diagnóstico da esquizofrenia.

MULTIDISCIPLINAR

Para Carriello, essa pesquisa tem um papel importante para somar evidências para novas formas de avaliações dos pacientes com esquizofrenia no futuro. “Nossa pesquisa não tem por objetivo mudar as práticas clínicas atuais, mas podemos ajudar, no futuro, para que os pacientes possam ser melhor avaliados e tratados de forma mais eficaz, com um diagnóstico considerado mais rápido”, conta.

Ele destaca, também, a importância da realização da pesquisa de forma multidisciplinar. “A pesquisa conjunta com a oftalmologia foi uma forma de encontrar, a partir do exame biomarcador, a esquizofrenia, visto que há características biológicas de neurodegeneração (perda de neurônios) observadas nesta doença, e o olho seria uma extensão do sistema nervoso central (olho e cérebro possuem a mesma formação embriológica)“. A pesquisa ocorreu com 35 pacientes saudáveis, além de outros 35 de controle, que são importantes para a validação metodológica.

DIAGNÓSTICO CLÍNICO

A linguagem médica caracteriza a esquizofrenia como um diagnóstico clínico. Ou seja, não é possível fazê-lo a partir de exames de sangue, é necessária a avaliação por parte de um profissional com experiência na área, por meio do acompanhamento do paciente.

O psiquiatra Marcelo Alves Carriello explica que, além disso, o médico deve realizar diversos testes para diferenciar esse de outros transtornos mentais, e até mesmo de doenças orgânicas. “O tempo de diagnóstico depende de cada pessoa, sendo que é preciso entender que pode haver casos mais típicos que outros, além de considerar a assistência médica que essa pessoa recebe“, explica.

O professor Raffael Massuda comenta que o diagnóstico da doença tem uma incidência entre 0,6% a 1% da população. Ou seja, é uma doença não muito comum, mas não considerada rara. “A identificação do transtorno começa no adulto jovem, sendo no homem entre os 18 e 24 anos, e na mulher entre os 22 e 27“, explica.

SINTOMAS

O médico conta que, para confirmar o diagnóstico, é preciso existir pelo menos dois dos sintomas: delírio; alucinação; comportamento desorganizado; discurso alterado; demais sintomas negativos com prejuízo funcional.

Mas isso leva tempo, como explica Massuda. “Além do prejuízo funcional, você precisa perceber pelo menos seis meses com sintomas psicóticos leves ou com sintomas residuais. Não é um diagnóstico considerado tardio, mas existe uma certa demora porque precisa ser feito a longo prazo, pois não adianta dizer que todo paciente com sintomas delirantes ou alucinatórios possui esquizofrenia“, esclarece.

Dessa maneira, o estudo apresenta uma nova forma de poder identificar a doença. E, na medicina, quanto mais cedo uma doença for diagnosticada, maiores as chances de um tratamento eficaz. “Lembra que falei da idade? A esquizofrenia começa aos 18 anos em um homem adulto. É a idade em que ele começa a trabalhar, estudar. É um impacto direto naquilo que a pessoa vai se tornar no futuro“, alerta Massuda.

COMO É FEITO O EXAME?

O psiquiatra Marcelo Alves Carriello explica que a identificação foi feita por meio de uma Tomografia de Coerência Óptica (TCO), que não é como uma “tomografia clássica”, que utiliza radiação. Utiliza-se um laser para o procedimento. “Ele é bem rápido, dura poucos minutos, é prático e indolor e pode até ser feito à beira leito“, comenta. Por “à beira leito”, o médico quer dizer que mesmo pacientes internados, que não possuem condição de se locomover até um consultório oftalmológico, podem ser submetidos ao exame, já que o aparelho que o realiza é de fácil deslocamento.

“O paciente se senta em frente do aparelho de TCO com o queixo e testa apoiados e foca o olhar em um ponto de luz do aparelho (um olho por vez)“, detalha. O aparelho realiza uma varredura da retina e o processamento visual do software da máquina projeta uma imagem 2D para o médico, com a espessura das camadas (em geral de 7 a 9 camadas) e volume da retina.

“Esse aparelho emite luzes de comprimento de faixas diferentes. Para visualizar melhor, é utilizado um mecanismo no qual a luz reflete nas estruturas oculares, que é a retina e o nervo óptico, volta para o aparelho e é captada por um espectrômetro (fotodetector com câmara de alta velocidade)“, ilustra o professor Mario Sato.

Logo, a partir de um cálculo, esses estímulos luminosos e todas as informações são processadas por um algoritmo. Então, é possível visualizar as estruturas do fundo de olho “in vivo”, como um corte anatômico.

Assim, os médicos conseguem identificar alterações da espessura da retina e do volume, como, por exemplo, a redução da camada de fibras nervosas, redução de células ganglionares, redução da camada plexiforme interna compatíveis com lesão neurológica, bem como alteração de fotorreceptores e demais partes relacionadas à condução do impulso elétrico.

OUTRAS PESQUISAS

Existem outras pesquisas que tentam aproximar o diagnóstico de doenças com exames que envolvem o globo ocular. “Podemos citar estudos que avaliam as mesmas estruturas aqui citadas para diagnóstico de esclerose múltipla, doença de Alzheimer, Parkinson, ataxias espinocerebelares, que são manifestações clínicas que deterioram o equilíbrio e a coordenação motora“, explica Sato.

Dessa forma, em tese, qualquer doença que afete o cérebro na totalidade pode causar mudanças no exame TCO. “Foram bem promissores os resultados alcançados“, comemora Mario Sato. O especialista explica que com o estudo é possível associar esquizofrenia a uma redução significativa do volume macular e também da camada da retina. Dessa forma, ele acredita ser muito provável que, no futuro, o exame utilizado nesse estudo possa ser usado como marcador biológico precoce do início da doença, no acompanhamento e na melhora a partir do tratamento. (Com informações da UFPR)