Para psicanalista, as crianças têm os adultos como modelos e reflete sobre o que se tem dado muita atenção atualmente: "o corpo virou vitrine"
Para psicanalista, as crianças têm os adultos como modelos e reflete sobre o que se tem dado muita atenção atualmente: "o corpo virou vitrine" | Foto: Shutterstock

A percepção das crianças sobre o próprio corpo e os efeitos disso no processo de desenvolvimento estão ganhando a atenção de alguns especialistas. A partir de estudos e da experiência cotidiana, muitos profissionais estão vivenciando uma realidade impactante: a de que muitas crianças expressam uma idealização do corpo já na primeira infância, ou seja, nos primeiros seis anos de vida.

Dados da Pretty Foundation, uma organização australiana sem fins lucrativos, revelam que 38% das meninas estudadas de 4 anos estão “insatisfeitas” com seus corpos e 34% das meninas com 5 anos já revelam uma intenção para dieta. Os números justificam o trabalho da entidade na conscientização e fornecimento de ferramentas educacionais para incentivar as crianças a desenvolver e nutrir uma imagem corporal positiva para si e para os outros. A concentração dos esforços da Pretty Foundation é justamente na primeira infância.

Na avaliação do psicanalista em Londrina, Sylvio do Amaral Schreiner, essa “insatisfação” é na verdade um reflexo dos sentimentos dos pais e cuidadores adultos sobre o corpo das crianças. “Isso não é delas. Existem crianças percebendo os adultos em volta insatisfeitos com eles mesmos e consequentemente, com elas. É aquilo: como vou poder gostar de mim se minha mãe/pai não está gostando?”

Schreiner lembra que as crianças têm os adultos como modelos e reflete sobre o que se tem dado muita atenção atualmente. “O corpo virou uma vitrine. Ele vai ganhando uma superficialidade ao mesmo tempo em que passa a ser associado ao sucesso, desejo, a ser querido ou não. É a ideia de que se eu for perfeito, o mundo vai ser muito bom para mim”, pondera.

A pediatra e hebiatra em Londrina, Giovana Ribeiro de Souza, comenta que durante as consultas com crianças, a preocupação com a imagem normalmente é uma demanda dos pais associada a um fator externo, como por exemplo, meninas que são ginastas ou que têm alguma relação com o universo da moda.

Diferente da pré-adolescência (entre 10 e 13 anos) quando a questão já é expressada por eles mesmos. “Os meninos e meninas já começam a ter um estranhamento do próprio corpo ao mesmo tempo em que ficam maravilhados com as primeiras modificações. Depois dessa fase, aí sim eles passam a dar realmente importância à imagem corporal, principalmente por conta dos relacionamentos. Os olhares externos são extremamente importantes para os adolescentes. Temos que valorizar isso e ficar atento quando essa valorização da imagem começa a sair de um padrão normal e passa a ser patológico, afetando a saúde física e mental”, aponta a médica.

FONTES DE INFLUÊNCIA

A docente da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), em Minas Gerais, Clara Mockdece Neves, comenta que há três fontes de influência para a valorização estética na infância. São os pais, os pares (crianças da mesma idade ou do mesmo círculo social) e a mídia.

“O contexto familiar na criança é muito forte porque ela constrói sua identidade e desenvolve percepções sobre si mesma e sobre seu corpo, muito relacionada ao modelo que ela tem na família. Com pais que estão sempre fazendo dieta, buscando procedimentos estéticos ou falando o tempo todo sobre o corpo, é natural que a criança sofra essa influência e traga isso para sua imagem corporal”, afirma.

Sobre os chamados “pares”, Neves cita como exemplo, o ambiente escolar. “Por volta dos 6, 7 anos, a criança cria mecanismos de comparação que são normais da infância. Isso acontece sobre diversos fatores e o corpo é um deles. Mas o problema surge a partir do momento que ela internaliza esse padrão”, diz.

Já ao citar a mídia, ela destaca como a influência mais pervasiva. “As crianças estão tendo acesso cada vez mais cedo à sua própria rede social, aos vídeos do YouTube e Instagram”.

Recentemente, o Instagram - rede social de compartilhamento de fotos e vídeos - deixou de mostrar a quantidade de curtidas em cada postagem (ainda em fase de testes). A mudança, conforme o pronunciamento da empresa, busca engajar o público mais com o conteúdo das publicações e tornar tal ambiente virtual menos tóxico e competitivo.

Neves cita um artigo publicado em 2018 por pesquisadores da Holanda e Austrália, sobre insatisfação corporal nas mulheres a partir da análise dos efeitos dos números de curtidas do Instagram. “As pessoas, de fato, dão maior credibilidade a uma foto que tem um número maior de 'likes'. Então, a gente acredita que essa medida (de retirar o número de curtidas) vai trazer uma nova dinâmica nessa influência”, pontua.

CABELOS E BARRIGA TANQUINHO

A docente Clara Mockdece Neves atua no Labesc (Laboratório de Estudos do Corpo) e Necos (Núcleo de Estudos do Corpo e Sociedade), ambos ligados à UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), e enfatiza que enquanto a criança está somente comparando, não há problemas. “Mas a partir do momento em que ela internaliza, passa a acreditar naquilo como uma verdade. Com isso, vai querer buscar ser de tal forma, modificar o corpo ou o cabelo porque já está internalizando que há um padrão de corpo, um padrão de beleza”, diz.

Esse comportamento nas crianças, segundo a pesquisadora, é mais sutil, porém, um dos achados para sua tese de doutorado foi de que algumas características corporais são fortes na infância. É o caso dos cabelos (hipervalorização do loiro e liso) e a barriga. “Nas entrevistas e perguntas aplicadas com crianças, surgiu muito a expressão 'barriga tanquinho' associada com imagens de famosas, como por exemplo, a Anitta”, comenta.