Uma técnica cirúrgica inovadora, desenvolvida em Curitiba, vem ganhando a atenção de pacientes e cirurgiões oncológicos ao redor do mundo. A cirurgia de transposição uterina foi estudada e realizada pelo médico Reitan Ribeiro em 2015. Desde então, vem abrindo um caminho de esperança para as mulheres que estão em tratamento de câncer na região pélvica.

Durante as sessões de radioterapia para tratar tumores de intestino, no canal anal ou em outros órgãos localizados abaixo do abdômen, as mulheres são expostas a radiações ionizantes que danificam o DNA das células de tumor.

“Essas células morrem por não conseguirem mais se reproduzir. Por ser na região da pelve e atingir órgãos como o útero, o tratamento leva à infertilidade. Essa cirurgia que estamos fazendo, ainda em caráter experimental, é uma forma de preservar o útero, as trompas e os ovários do dano que a radioterapia causa”, explica o cirurgião oncológico.

COMO FUNCIONA

Para evitar danos ao útero, o cirurgião realoca o órgão junto com as trompas e os ovários. “O útero fica estruturado na parede do abdômen para que as pacientes realizem a radioterapia. Após as sessões que duram dois meses, em média, voltamos o útero no lugar, em uma nova cirurgia”, diz. No procedimento, o colo do útero é conectado ao umbigo, que será o novo canal para a liberação da menstruação e da secreção fisiológica do colo (muco).

Ribeiro se dedicou ao desenvolvimento da técnica por cerca de um ano e meio. Ele atua no Instituto de Oncologia do Paraná e no Hospital Erasto Gaetner (instituição de saúde com foco no tratamento clínico e cirúrgico de pacientes com câncer e doenças oncológicas), onde foi realizada a primeira intervenção a partir desta técnica.

A cirurgia foi feita em novembro de 2015 em uma paciente de Curitiba. A fisioterapeuta Francielle Cristina Boarão, que passou por um tratamento de câncer no reto, lembra que na época do diagnóstico da doença, estava com 26 anos. “Os médicos que explicaram que o tratamento envolveria sessões de quimio e radioterapia. Sendo assim, minhas chances de engravidar futuramente seriam reduzidas a zero. Foi a partir daí que a cirurgia de transposição uterina passou a ser um caminho de esperança para mim. Teoricamente, com o procedimento, eu teria 60% de chances de poder gerar um filho”, conta.

'UMA OPORTUNIDADE QUE DEI PARA MIM'

Boarão foi para o centro cirúrgico e dias depois estava em casa, recebendo uma equipe de cuidados domiciliares e realizando exames de ultrassom semanalmente. “Tudo ocorreu muito bem. No primeiro mês eu não menstruei, mas nos dois seguintes, o sangue era liberado por um pequeno buraco no meu umbigo. Eu usava algodão e micropore em substituição ao absorvente. Nos demais dias, eu usava apenas uma gaze no umbigo”, conta.

Passados aproximadamente três meses, Boarão retornou para a mesa de cirurgia para retirada do tumor e realocação do útero. O tratamento contra o câncer terminou em 2017 e hoje, o desejo de engravidar aumenta a cada dia. “Minha ginecologista disse que meu útero está normal e eu também estou bem, vivendo minha rotina. Quanto mais mulheres eu conseguir atingir com essa minha história, maior é a gratidão. Acho que essa experiência é uma oportunidade que dei para mim e para muitas outras mulheres”, destaca a paciente, que acompanhou o cirurgião em uma viagem a Washington (EUA) para apresentar a técnica.

De acordo com o médico, a cirurgia de transposição uterina é indicada para pacientes mais jovens, em geral até os 40 anos. “Os resultados que temos visto mostram que, em geral, a cirurgia funciona muito bem. Precisamos esperar que as mulheres tentem engravidar porque grande parte dos procedimentos foi em mulheres jovens e adolescentes”, diz.

12 PAÍSES

Nos últimos sete anos, o procedimento já foi realizado em doze países. De acordo com Ribeiro, até o momento foram cerca de 40 cirurgias, sendo a metade no Brasil. Ele esteve à frente de 15 do total de procedimentos.

Apesar de ainda ter caráter experimental, o médico ressalta que a cirurgia envolve protocolos de pesquisa e que ela só pode ser realizada em centros autorizados pela Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa).

'NÃO DESISTAM DOS SONHOS'

Com pouco mais de dois meses de vida, o pequeno Nicolas é protagonista de uma grande história. Ele é o primeiro bebê que nasceu de uma gestação após a mãe, Carem dos Santos Neves Rosa, 32, ter passado pela cirurgia de transposição uterina.

Nicolas nasceu em janeiro deste ano, em Porto Alegre (RS), quatro anos depois de a mãe ter tomado a decisão que mudaria sua história de vida. Logo que Rosa descobriu o lipossarcoma (tumor que se origina no tecido gorduroso) na região da pelve e do ombro, ela teve a indicação de radioterapia.

"Foi uma gestação perfeita e o Nicolas está super bem, saudável”, comemora Carem dos Santos Neves Rosa, ao lado do marido Geferson Machamnn
"Foi uma gestação perfeita e o Nicolas está super bem, saudável”, comemora Carem dos Santos Neves Rosa, ao lado do marido Geferson Machamnn | Foto: Divulgação

“Eu tinha 28 anos e não havia pensado ainda sobre ser mãe, mas tive que tomar uma decisão naquele momento. Conversei com médicos, amigos e familiares e fiz o que meu coração pedia. Eu pensava que o não eu já tinha, mas se um dia eu quisesse tentar ter filhos, essa seria minha chance, a de fazer a cirurgia”, conta.

Hoje, com Nicolas nos braços, ela e o esposo Geferson Machamnn celebram a vida. “Eu estava me recuperando do tratamento e das cirurgias, quando minha menstruação atrasou. Eu imaginava que era efeito da medicação, mas não. Eu estava grávida. Era tudo novidade para mim e para os médicos porque a gente não sabia como o útero ia se ‘comportar’. Foi uma gestação perfeita e o Nicolas está super bem, saudável”, comemora.

A fisioterapeuta passou pela cirurgia em 2018. Durante três meses ela ficou com o útero em meio ao abdômen, tempo que duraram as sessões de radioterapia. No caso de Rosa, que tomou pílula anticoncepcional de forma contínua, não houve menstruação.

“Logo que voltei para a mesa cirúrgica para retornar o útero ao lugar, parei de tomar a pílula e tudo voltou como antes, tanto para ter relações sexuais quanto para menstruar. Ter medo é normal, mas se eu puder deixar uma mensagem para as mulheres é para que elas não percam a fé. É bem difícil esse momento de diagnóstico de câncer e ainda mais quando sabemos que vai afetar nossa fertilidade. Escutem o que o coração diz e não desistam de seus sonhos porque hoje estou aqui com meu bem maior”, comenta.

As cirurgias no Hospital Erasto Gaetner estão sendo custeadas pela instituição. Pacientes que tiverem interesse, podem entrar em contato no ambulatório do hospital, preferencialmente encaminhadas por um médico.

USO CRESCENTE

“Acho que a técnica terá um uso crescente. Cada vez mais mulheres estão descobrindo tumores na pelve e estão tendo filhos mais tarde. Então, temos visto um aumento da incidência da doença com o postergar da gestação”, aponta o cirurgião oncológico Reitan Ribeiro, que desenvolveu a cirurgia de transposição uterina. Ele conta que a ideia de estudar e colocar em prática a técnica começou com a história de uma paciente, “que tinha uma situação de câncer de reto e não queria fazer o tratamento porque iria perder a fertilidade”.

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