Ter fé pode alterar a forma como o paciente responde aos tratamentos. É o que defendem estudiosos da área médica que visam o atendimento integral do ser humano. As dimensões bio-psico-socio-espiritual devem ser contempladas nos processos de saúde e, diante das incertezas decorrentes da pandemia, essa abordagem global se torna ainda mais necessária.

Imagem ilustrativa da imagem Andar com fé eu vou... Medicina estuda efeitos da espiritualidade na saúde
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“No século 20, a gente teve um avanço espantoso da tecnociência, chegamos à engenharia genética, chegamos à possibilidade de manipular o gen humano, reprodução assistida, esse avanço extraordinário foi de alguma maneira desacompanhado do avanço de uma reflexão ética e moral. O território da espiritualidade entra aí”, explica o professor de bioética da PUC (Pontifícia Universidade Católica de Londrina), José Eduardo Siqueira.

O professor defende a necessidade de um diálogo calmo e construtivo entre a materialidade e a espiritualidade no campo dos estudos da saúde. Para ele, a noção de morte traz sofrimento que também precisa ser tratado no paciente. “Essa percepção (da morte) só o ser humano tem e, claro, essa verdade indiscutível da finitude humana traz um grau de sofrimento e vulnerabilidade muito grande. Não é um analgésico que trata esse sofrimento, entra nessa vertente da espiritualidade com a ciência, sobretudo, na medicina”, defende.

VISÃO MAIS APROFUNDADA

O professor diz que ainda somos reféns do racionalismo científico, mas que é preciso ter uma visão mais aprofundada. “É preciso que a gente tenha um olhar claro diante dessa realidade de que a ciência é importante, fundamental, mas tem que dialogar com a espiritualidade. O que não significa seguir uma religião específica, a religiosidade, espiritualidade está em um plano superior”, aponta.

GRUPO DE ESTUDOS

Diante disso, universidades do mundo todo estudam os efeitos que a espiritualidade tem na saúde. Aqui no Brasil há o Gemca (Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular). “A gente procura separar religião, religiosidade e espiritualidade. No nosso grupo, nós colocamos a espiritualidade como uma situação de estado mental e emocional que vai nortear nossos pensamentos. Atitudes, ações e reações no dia a dia, como a pessoa se relaciona consigo próprio e com outras pessoas”, aponta o presidente do grupo Roberto Espocartte.

O grupo surgiu em 2013 e faz parte da Sociedade Brasileira de Cardiologia. O intuito é buscar material científico que possa beneficiar pacientes. “Imagina você ter uma internação e descobre que é grave, que vai precisar de múltiplas internações e que não tem cura. Nesta situação, a gente percebe um sofrimento e angústia muito grande e é um sofrimento psicológico, mental e, mais fundo que isso, é um sofrimento espiritual, a dor total, que não é só física”, menciona.

icon-aspas “É preciso que a gente tenha um olhar claro diante dessa realidade de que a ciência é importante, fundamental, mas tem que dialogar com a espiritualidade"

Espocartte aponta que o grupo de estudo não visa discutir religião e diferenças de doutrinas religiosas, mas de atender a demanda de um paciente que tem e deseja um apoio espiritual, além de buscar entender como a espiritualidade pode influenciar no tratamento e como aplicá-la na prática médica. “Existem estudos mostrando que pessoas que tem frequência religiosa maior têm menos doença cardiovascular, menos câncer, taxa de suicídio menor, melhor controle de pressão arterial, melhores taxas metabólicas, melhor controle das variáveis”, enumera.

Um ponto importante é que, naturalmente, pessoas que possuem a espiritualidade aflorada têm a tendência de se cuidarem mais, bebem e fumam menos, e têm hábitos saudáveis, porque a fé e crença têm impacto comportamental, mas o presidente aponta que as pesquisas realizadas sobre o assunto demonstram também os efeitos direto que a espiritualidade tem na saúde. “Por exemplo, a meditação, os estudos demonstram que a prática reduz o estresse, ansiedade e pressão arterial”, afirma. O site do Gemca disponibiliza artigos científicos sobre o assunto.

PRÁTICA

Os profissionais de saúde devem estar atentos ao todos os aspectos que englobam as dimensões do ser humano: biológico, psíquico, social e espiritual. Além da parte técnica, os pontos mais intrínsecos do ser pode ser acessado por meio de uma conversa. “Uma abordagem simples, não é nada rebuscado, todo profissional deveria estar apto a fazer esse rastreamento”, defende o presidente do Gemca, Roberto Espocartte. Diante dessas questões, o médico consegue sacar auxílios multiprofissional que podem intensificar o processo de recuperação.

Segundo o médico, não é necessário um treinamento técnico. Existem ferramentas, questionários prontos, que podem dar respaldo ao profissional para que consiga atribuir uma anamnese espiritual elaborada, porém, aquele que já se utiliza da abordagem detalhada sobre a vida do paciente já tem subsídios suficientes para encontrar as particularidades de cada paciente.

icon-aspas “Na educação médica é fundamental introduzir esse conteúdo humanista. O portador da doença é um ser humano que sofre"

Ponto defendido pelo professor de bioética José Eduardo Siqueira independente de anamnese espiritual. “Na educação médica é fundamental introduzir esse conteúdo humanista. O portador da doença é um ser humano que sofre. Uma das coisas mais difíceis é mudar a percepção de que a medicina cura, nós temos que sair do paradigma do curar para o cuidar e cuidar inclui o plano físico e espiritual da pessoa”, defende. Nesse ponto, ele argumenta que é necessário e urgente formar egressos com “cabeça bem-feita", como ele aponta. “Eu acho que a academia do mundo todo despertou para isso, o que está se verificando é que estão entrando na grade curricular disciplinas como, bioética e espiritualidade, entre outras, para atender o ser humano na sua integralidade.”

NA PANDEMIA

Durante as incertezas da pandemia, muitas pessoas recorrem à fé. “Agora é um momento que nos obriga a pensar, acho que uma das coisas que o isolamento faz é te obrigar a olhar para dentro”, afirma Siqueira.

Para o médico do Gemca, esse momento crítico que estamos vivendo traz novas reflexões sobre o contexto da vida humana como um todo, mas que trouxe muitos pontos de desequilíbrio também. “As pessoas estão revendo seus valores morais, espirituais, éticos, uma ressignificação dos seus propósitos de vida. Por outro lado, houve um aumento do alcoolismo, violência domiciliar, aumento da taxa de suicídio, mas acho que ter fé é uma coisa importante”, afirma.