Anos atrás, virava e mexia, nos programas de auditório de domingo à tarde, aparecia um garoto de talento excepcional com sua flauta – que aprendeu a tocar sozinho – e encantava todos que o ouviam. Era Charles Pereira Gonçalves, um paulistano da gema, nascido em Vila Prudente, que ficou conhecido como Charles da Flauta. Já adulto, tocou com nomes famosos e conquistou prêmios, como um Sharp de Música. Com a fama, porém, vieram os conflitos e o jovem passou por maus bocados, envolveu-se com drogas e adotou as ruas como endereço.

Foi nelas que um amigo músico o encontrou dias atrás e lhe propôs um recomeço. Convite aceito, Charles da Flauta mudou-se para Londrina, onde pretende aproveitar a chance de mudar de vida. Vem apresentando-se na Chaplin Music Bar, dando canjas em bares da cidade e fazendo planos. Quer viver de música, ensinar crianças a tocar flauta, trazer o irmão para cá, reencontrar o pai e o filho. Quer a vida de volta, mas não esconde a guerra interna que trava diariamente. "Só por hoje", repete algumas vezes, durante entrevista à FOLHA.

Em um banco à beira do Lago Igapó, que ele ainda não conhecia, o homem de 40 anos conta sem rodeios a sua história. "Minha mãe morreu de pneumonia quando eu tinha 10 anos. Eu e meu irmão ficamos só com meu pai, que toca violão de sete cordas e flauta doce. Naquela época ele comprava discos de Altamiro Carrilho, Valdir Azevedo, Jacob do Bandolim, Pixinguinha. Isso me despertou para a música. Quando ele saía para trabalhar, eu pegava a flauta e ficava lá, tentando aprender." Quatro anos depois, aos 14 anos, o menino já tocava tão bem que gravava seu primeiro disco, Pinguinho de Gente, e impressionava até mestres como Altamiro. Certa vez o flautista famoso disse, referindo-se ao garoto Charles: "Isso é de Deus, isso é talento, isso é graça de Deus. E ele tem essa graça".

Mas o dinheiro que deveria ter vindo com o reconhecimento de seu talento não lhe chegou totalmente às mãos. Ele não sabe dizer para onde foi, e também não lhe interessa mais. Hoje o que Charles quer é recomeçar. "Estou encarando Londrina como uma nova jornada. Percebi que tinha que tomar uma atitude e não ficar mais esperando alguma coisa cair do céu."

O flautista revela que são cerca de 20 anos convivendo com as drogas, principalmente o crack. Até uma bolsa de estudo na Europa foi desperdiçada. Mas a vontade de livrar-se do vício é enorme. "São altos e baixos, caindo e levantando." Ainda assim, ele nunca deixou de tocar, nem que fosse em uma flauta doce das mais simples, de plástico. O prazer de voltar a dedilhar uma flauta transversal só foi possível graças à boa vontade de um médico que distribuía sopa a moradores de rua de São Paulo. Ao ganhar o presente, Charles passou a utilizá-lo como "travesseiro", única forma encontrada para não perdê-lo enquanto dormia.

Ele mostra os arranhados e pequenos amassados que o instrumento ganhou no período de vida nômade, mas assim que executa as primeiras notas, os machucados da flauta tornam-se um detalhe insignificante. Ele escolhe um choro gravado pelo mestre Altamiro – O Saci da Flauta, e o faz com maestria. É como se Charles fizesse do instrumento uma extensão de suas mãos, mesmo nunca tendo se debruçado sobre partituras ou feito aulas formais de música. "Uma vez o Toninho Carrasqueira (flautista considerado uma das referências do choro no Brasil) me levou para assistir aulas na ECA (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo). Eu ia de curioso, porque estudei só até a 7ª série", diz, explicando que embora tenha aprendido a ler partituras e a compor, normalmente faz tudo de ouvido. Charles é um daqueles casos conhecidos como ouvido absoluto – tem a habilidade de ouvir e, imediatamente, reproduzir o som ouvido.

Enquanto tenta se reerguer, Charles da Flauta embala o sonho de ensinar crianças de comunidades carentes a produzir música com o pequeno instrumento. "Assim como eu, quem sabe se alguma delas, de alguma família que não tem condições de pagar aula particular, não demonstra talento para a música?" Ele revela que nos tempos em que sobreviveu tocando em semáforos, eram as crianças que mais festejavam seus acordes. "Quando chegava uma van escolar, era uma alegria."