Entre o primeiro semestre da graduação em Ciências Sociais, em 2006, e o segundo doutorado, este ano, Alexsandro Eleotério Pereira de Souza afirma nunca ter deixado de acreditar que é necessário se relembrar quais foram os principais argumentos contrários à implantação da política de cotas. “Justamente para desmentir isso”, explica.

Para Alexsandro Eleoterio, os cotistas tiveram a capacidade tornar a universidade ainda melhor
Para Alexsandro Eleoterio, os cotistas tiveram a capacidade tornar a universidade ainda melhor | Foto: Marcos Zanutto

A UEL (Universidade Estadual de Londrina) foi a quarta instituição do País a adotar o sistema de reserva de vagas para negros, além de estudantes de escolas públicas, medida colocada em prática no vestibular de 2005. Anteriormente, a UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) saiu na frente entre as estaduais e, entre as federais, a primeira a implantar o sistema foi a UNB (Universidade Federal de Brasília), em 2004.

Um destes argumentos defendia que o estudante estaria entrando “pela porta de trás” da universidade, lembrou o pesquisador que acaba de defender o segundo doutorado. Eleotério foi o primeiro cotista negro da UEL a defender uma tese de doutorado na própria instituição em que iniciou a carreira acadêmica. No estudo “As políticas de ação afirmativa no contexto acadêmico: influências das cotas raciais na Universidade Estadual de Londrina”, entrevistou membros dos coletivos de estudantes negros dos cursos de Medicina e Psicologia da UEL.

O principal “mito” nascido com a discussão ainda em meados de 2004, lembrou a pró-reitora de Graduação da UEL, Ana Márcia de Carvalho, era que a nota geral da universidade cairia a partir da adoção do novo sistema e que os estudantes cotistas não conseguiriam acompanhar o desempenho dos outros estudantes. No entanto, nada disso se comprova com a análise dos dados do Índice Geral Contínuo do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). “Nós temos nesses anos inciais de implantação um crescente dos nossos índices da UEL. Há uma pequena queda em 2015 e 2016 que eu acredito que esteja relacionada a outros fatores. Já em 2017 temos um índice elevado novamente. A universidade mantém-se como uma universidade de excelência, é a primeira estadual do Paraná”, comemora.

Para Eleotério, os cotistas tiveram a capacidade “tornar a universidade ainda melhor”. “Além de apreenderem o conteúdo das disciplinas, eles questionam os professores. No curso de psicologia, um estudante relata que a professora estava falando sobre os efeitos psíquicos do aborto, mas ela não problematiza isso. Se esse aborto foi praticado por uma mulher negra da periferia ou por uma mulher branca de regiões nobres, é totalmente distinto e até a possibilidade de tratamento psíquico que essa mulher vai receber”, exemplifica.

Outro exemplo prático do enriquecimento trazido com a maior diversidade social na UEL foi percebido pelo pesquisador ao ter contato com estudantes que não se contentaram com uma determinada abordagem trazida por um professor de história quanto à “coisificação” do negro no auge da escravidão no Brasil. “Nós temos historiadoras negras, Beatriz do Nascimento e outras tantas, que mostram que o processo de resistência, o sincretismo religioso, ou seja, vários feitos da população negra, demonstram o negro enquanto sujeito ativo. Ou seja, esses estudantes estão trazendo novas perspectivas para a universidade”, destaca.

Questionado se acredita ter inspirado outros alunos negros ou oriundos da periferia a almejarem carreiras de ponta tanto no mercado de trabalho quanto no serviço público e na academia, Eleoterio avalia que sim, uma vez que muitas pessoas o inspiraram e “continuam inspirando”. “Eu consigo entender que é uma troca”, avalia. “Ao mesmo que fico feliz, fico muito triste porque essas pessoas se inspiram em mim porque eu sou uma exceção”, lamenta em seguida.

Hoje em dia, a realidade que depara nas duas universidades em que dá aulas, uma estadual de Apucarana e outra particular de Londrina, é bem diferente da que conheceu na Howard University, em Washington, nos EUA, enquanto cursou parte do doutorado. Considerada uma das melhores instituições de ensino superior dos Estados Unidos, a Howard faz parte de um grupo de cem chamadas HBCUs, sigla para “historically black colleges and universities”, ou universidades e faculdades historicamente negras. Possui 96% do corpo docente formado por professores negros. Avanços que só foram possíveis com a aprovação da Lei dos Direitos Civis que colocaram fim ao sistema de segregação racial imposto em escolas e transporte público, entre outros espaços, as chamadas Leis Jim Crow, em 1964.

VILMA SANTOS

Aplausos de um lado e vaias do outro. Típico cenário de uma audiência pública na Câmara Municipal de Londrina. Em meio ao caos provocado pelo choque de ideias que, até então, eram apenas suposições contrárias e favoráveis à implantação do sistema de cotas na Universidade Estadual de Londrina, dona Vilma Santos, a Yá Mukumbi, eternizaria a noite do dia 20 de junho de 2004 como um momento maiúsculo da luta do povo negro na cidade. “A vaia eu agradeço”, ironizou. Nas galerias da CML, alunos de um colégio particular de Londrina convencidos de que o sistema de cotas dificultaria sua chegada ao ensino superior público, ouviram em seguida o lamento de uma mãe que presenciou o filho desistir de sonhar e cometer suicídio. “É pelo meu filho, é pelo meu povo, meus netos e filhos dos meus amigos que eu estou aqui nesta luta, porque com 55 anos eu não vou para a universidade não”.

As professoras Maria de Fátima Beraldo, Jamile Baptista, Marleide Rodrigues e Ana Márcia de Carvalho: reverência a Yá Mukumbi
As professoras Maria de Fátima Beraldo, Jamile Baptista, Marleide Rodrigues e Ana Márcia de Carvalho: reverência a Yá Mukumbi | Foto: Gilberto Abelha/UEL

Dona Vilma, cujo assassinato completará seis anos no início de agosto, não foi à universidade e viu a política de cotas demorar para ter o efeito almejado. Só para se ter uma ideia, entre 2005 – primeiro vestibular com a reserva de vagas para negros e estudantes de escolas públicas – e 2012, o percentual de entrada dos estudantes alvos da política afirmativa ficou pouco acima de um terço do desejado.

O docente da UEL e pró-reitor de graduação na época da implantação das cotas, Jairo Pacheco, apontou a ausência da sensação de “pertencimento” à universidade como fator fundamental da baixa procura por vagas em um primeiro momento. “A questão da inclusão é complexa mesmo. Não basta você dar acesso, isso tem que ser possível como plano de vida. Às vezes as condições de capital cultural dessa pessoa são tão precárias que ela não se enxerga com pertencimento a uma coisa que considera 'templo do saber'. Tem esses aspectos muito subjetivos até de cunho psicológico. Não basta olharmos números e acharmos que as coisas vão responder”, lamenta Pacheco.

Dessa forma, após a primeira avaliação da efetividade da medida, em 2011, nasceu o Prope (Programa de Apoio à Permanência). Por meio de visitas a escolas públicas do município, alunos negros da UEL criaram uma aproximação que ajudou a aumentar a entrada de negros na universidade a partir de 2013.

Em 2017, além de firmar o compromisso com a vigência das cotas por mais 20 anos, o Conselho Universitário da UEL e o Cepe (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão) aprovaram uma resolução para garantir a reserva de 5% das vagas para alunos negros de qualquer percurso escolar. “Era uma tristeza ouvirmos 'olha, o meu filho é negro, estudou em colégio particular, mas eu nunca paguei um real, ele era bolsista, aí não poderia participar. Esses 5% elevam a qualidade da universidade”, avalia a professora do Departamento de Ciências Sociais da UEL, Jamile Baptista.

A partir de então, se um candidato que se inscreveu como cotista negro tiver desempenho suficiente, ele é “migrado” para a cota universal e outro candidato cotista negro fica com a vaga, “o que favorece essa política de afirmação”, aponta Ana Márcia Carvalho.

Já para a professora Maria de Fátima Beraldo, gestora municipal de Promoção da Igualdade Racial de Londrina, militante do movimento negro e amiga de dona Vilma, os resultados mais significativos podem ser vistos na biblioteca da UEL. “Até os estudantes negros cotistas começaram a escrever não havia uma linha sobre a história do negro na cidade. Hoje nós temos só de uma autora seis livros produzidos, toda uma produção desses acadêmicos que entraram na Universidade Estadual de Londrina”, ressalta.

A história de políticas afirmativas na UEL acabou sendo novamente “coroada” no dia 21 de março deste ano, com a assinatura pelo reitor Sérgio de Carvalho de um compromisso internacional de combate ao racismo.

POLÍTICAS AFIRMATIVAS

Atualmente, entre 38 universidades públicas, 35 têm políticas afirmativas. Em números, os avanços podem ser percebidos mesmo quando analisados dentro de um arcabouço de medidas educacionais tomadas entre 2000 e 2017. Só para se ter uma ideia, de acordo com o Censo do Ensino Superior elaborado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), em 2000, 9,38% da população branca possuía diploma de ensino superior, contra 2,22% de negros autodeclarados pretos e pardos. Já em 2017, eram 22,9% de brancos e 9,3% de negros. Também segundo o Inep, em 2011, de 8 milhões de matrículas no ensino superior, 11% eram de estudantes negros. Em 2016, eram 30%.

Já na tese de doutorado “Desafios da inclusão: o olhar dos jovens negros sobre a política de cotas na UEL”, o professor Jairo Pacheco voltou a ouvir estudantes de turmas de terceiro ano do ensino médio para entender como está a visão desses jovens sobre ingressarem na universidade por meio de cotas, bem como trazer sugestões.

Para Jairo Pacheco, ideal seria fazer a homologação da candidatura antes da realização das provas
Para Jairo Pacheco, ideal seria fazer a homologação da candidatura antes da realização das provas | Foto: Marcos Zanutto

Foi então que se deparou com visões divergentes entre alunos e professores da rede estadual sobre o objeto de estudo. “Esse senso comum de considerar as cotas questionáveis quanto à forma de promover a inclusão é irrelevante enquanto opinião no segmento dos estudantes, mas é relevante entre os professores. Eu não quantifiquei, mas os professores relatavam que colegas muitas vezes falavam contra o sistema de cotas. Os estudantes não pensam assim, foram dois ou três em 31, nem 10%”, explica.

Já como reflexão para o aprimoramento e efetivação de medida, Pacheco aponta que seria importante antecipar a avaliação do candidato pela comissão responsável pela homologação da candidatura para antes da realização das provas. Ele aponta que parte significativa de negros com características fenotípicas de pardos apresenta dúvidas quanto a terem sua candidatura homologada e assim não usufruem da política pública. “Isso possibilitaria que o candidato que tivesse sua inscrição recusada, fizesse uma nova opção sem resultar em sua eliminação da disputa”, aponta. No entanto, Pacheco reconhece que a principal dificuldade para se implantar essa medida de avaliação de candidaturas em massa seria de ordem financeira.

Já para a coordenadora do Neab (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros), a professora Marleide Rodrigues, o foco deve ser na formação dos professores da educação básica. “Tem uma discussão bastante presente que diz que não nascemos negros, nós nos tornamos negros. Então nós precisamos ainda desenvolver um trabalho de reconhecimento desta identidade de ser negro como uma questão positiva, conhecer sua história, sua cultura e seus valores. Isso precisa ser trabalhado principalmente nas escolas”, avalia.

Já fora do ambiente acadêmico, como no mercado de trabalho, lembra o professor Alexsandro Eleoterio Pereira de Souza, o campo para se buscar equilíbrio é “muito profundo”. "Somos poucos em ambientes elitizados. É por isso que tento trabalhar, militar na medida do possível, para que isso se torne uma coisa comum e você não precise mais entrevistar um sujeito negro. Não vejo a hora que as cotas acabem. Só vão acabar quando tivermos equilíbrio", ressalta.

MOVIMENTOS CONTRÁRIOS

Logo no início de agosto de 2004, semanas após a aprovação da reserva de vagas no Conselho Universitário da UEL (Universidade Estadual de Londrina), o procurador da República Mário Ferreira Leite entrou com uma ação civil pública que pretendia suspender a medida alegando inconstitucionalidade. Para ele, haveria uma violação do princípio da igualdade previsto no artigo 5º da Constituição Federal.

Em setembro daquele ano, a procuradoria jurídica da UEL apresentou manifestação na 1ª Vara da Justiça Federal de Londrina em que defendia a constitucionalidade do sistema. Mas, logo em seguida, o então juiz da 1ª Vara, Oscar Alberto Tomazoni, decidiu extinguir o processo aberto pelo procurador federal sem nem mesmo analisar o mérito. Tomazoni alegou que a Justiça Federal não tinha competência para julgar uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, pois sendo a UEL vinculada ao Conselho Estadual de Educação, sua jurisdição não seria da União.

Após a extinção, Leite prometeu recorrer ao TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) porque o fato “criava uma situação de insegurança jurídica a todos os estudantes”, disse então à FOLHA.

Em 2019 houve uma nova investida, agora de uma deputada federal e apenas contra as cotas raciais A autoria é da deputada federal Dayane Pimentel (PSL-BA), cujo projeto de lei protocolado na Câmara dos Deputados em março previa a revogação das “cotas raciais” nas instituições federais regulamentadas com a chamada Lei de Cotas, de 2012, mas preservando o direito dos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita e pessoas com deficiências. Para a deputada, as cotas raciais têm “potencialidade de criar conflitos sociais desnecessários”, justificou o PL.

A FOLHA entrou em contato no gabinete da deputada e foi informada de que a assessoria de imprensa da parlamentar não poderia atender antes do retorno das atividades legislativas, marcado para o dia 1º de agosto. Ainda em abril, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão emitiu uma carta contrária à tramitação do PL. O órgão, vinculado ao MPF, contestou que os argumentos apresentados não possuem “qualquer lastro empírico”.

Conforme apurou a reportagem, a própria deputada entrou com um requerimento ainda em março pedindo a retirada de pauta do projeto de lei por conter vícios de iniciativa. No entanto, outro PL foi apresentado em seguida e altera três artigos da lei 12.711/2012 também com o objetivo de subtrair as cotas raciais. Este projeto encontra-se aguardando o parecer do relator, o deputado Rogério Correia (PT-MG), na Comissão de Direitos Humanos da Câmara.