Em um passado não tão distante, obter a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) aos 18 anos poderia ser considerado um momento grandioso na vida de muitos jovens, cujo núcleo familiar contava com pelo menos um veículo na garagem. No entanto, diversos fatores ao longo dos anos, especialmente de ordem econômica e posteriormente cultural, acabaram afetando o interesse em obter o “passaporte” para a liberdade das caronas dos pais, por exemplo.

Habilitação e carro próprio já não representam tanto uma marca de identidade pessoal como para as últimas gerações
Habilitação e carro próprio já não representam tanto uma marca de identidade pessoal como para as últimas gerações | Foto: pexels.com

De acordo com o Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), houve queda de 20,61% entre 2014 e 2017 na emissão de CNHs (Carteira Nacional de Habilitação) para a jovens entre 18 e 24 anos - de 1,2 milhão para 939 mil. No Paraná, não foi diferente. O Detran-PR (Departamento de Trânsito do Paraná) emitiu 49,4% menos CNHs de primeira habilitação nos últimos quatro anos. Em 2014 foram emitidas 179.640 novas CNHs, contra 120.280 em 2017. Já em 2018, o pé no freio na emissão do documento foi de 24,4% para novos motoristas em relação ao ano anterior.

Vitória Nayara Borgo pretende dar início ao processo para obter a CNH em função de estar quase terminando a graduação
Vitória Nayara Borgo pretende dar início ao processo para obter a CNH em função de estar quase terminando a graduação | Foto: Gustavo Carneiro

Estudante de pedagogia da UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná), Vitória Nayara Borgo pretende dar início ao processo para obter a CNH em função de estar quase terminando a graduação, além de ter vontade de mudar para outra cidade. Enquanto esperava uma carona via aplicativo no centro de Londrina, a jovem revelou que o alto custo da habilitação categoria AB – carros e motos – e a possibilidade de utilizar o transporte coletivo no trajeto entre a universidade e o trabalho colaboraram para que tomasse essa decisão aos 21 anos.

“Pretendo mudar de cidade no ano que vem. Tenho outros objetivos. Então tirar a carteira ajuda mais no meu trabalho. Vai ser mais fácil me deslocar se precisar ir de uma escola para outra e tudo mais. Mas é aquela coisa, tem que tirar um pouquinho daqui e dali, mas fazer o quê?”, brinca. Hoje em dia o custo pode chegar a R$ 2,4 mil quando se inclui, também, taxas de exames médico e psicotécnico, além das taxas do Detran.

Para o vice-coordenador do programa de pós-graduação em psicologia da Universidade Federal do Paraná, Carlos Augusto Serbena, além da questão financeira, no mundo de hoje a CNH e o carro próprio já não representam tanto uma marca de identidade pessoal como na época dos pais desses jovens. “O Brasil parece que está retomando aquela emoção da década de 1980, então temos uma parcela da população que trabalha com modelos do primeiro mundo e outra com modelos passados. Para uma, o carro tem uma identidade e para outra, digamos, não é um elemento que define identidade”, avalia.

OUTROS INTERESSES

A queda no interesse pela habilitação, no entanto, vem de carona com outros índices que revelam como os mais jovens estão encarando a ideia de ter um veículo próprio nos dias de hoje e como pretendem alcançar a felicidade. Em pesquisa encomendada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas, SPC Brasil (Serviço de Proteção ao Crédito) e Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), a vontade de comprar um carro foi mencionada por apenas 6,7% dos entrevistados, o penúltimo item citado como mais importante em uma lista de 22.

Quando questionados sobre suas prioridades para alcançarem a felicidade na vida adulta, ter uma casa própria (20,5%), sucesso no trabalho (18%), trabalhar naquilo que gostam (17,9%), terem paz interior (16,8%) e serem felizes na profissão (14,5%) foram os itens mais citados.

A pesquisa revelou que ficar rico, viajar e aproveitar a vida com amigos e familiares foram objetivos pessoais apontados por 14% dos participantes e ficaram à frente de itens como casar (11,1%), ter poupança ou outra reserva financeira (10,6%), ter estabilidade no trabalho ou trabalhar na mesma empresa (10,3%) e encontrar um grande amor (8,7%).

Os jovens entrevistados também apontaram não ter saúde física (28%), não conseguirem se sustentar (25%) e não trabalharem naquilo que gostam (23%) como principais fontes de medo e causas de preocupações.

Ao todo, 801 jovens em todas as capitais brasileiras foram ouvidos no levantamento, no entanto, a representatividade deste público no Brasil chega a 15%, ou seja 24 milhões de habitantes segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

TENDÊNCIA

Para a Secretaria Especial de Produtividade, Emprego e Economia, do Ministério da Economia, a diminuição no interesse pela propriedade de automóveis, o aumento da procura por compartilhamento de veículos e uso de outros modais de transporte, como bicicletas e patinetes, são uma tendência para os próximos cinco anos.

Ao final deste prazo, a pasta aponta que o tema pode fazer parte da primeira revisão do Programa Rota 2030 – Mobilidade e Logística, uma política para o setor automotivo, em vigor desde dezembro do ano passado, que contempla incentivos a novas tecnologias de propulsão e soluções estratégicas para a mobilidade em “consonância com novos modelos de negócio”.

É algo que vem pedindo passagem no trânsito das grandes cidades há bastante tempo. Só para se ter uma ideia, Curitiba já conta com 1,42 milhão de veículos, sendo 68% carros, o que resulta em um índice de 0,740 veículo/habitante. Proporção ainda maior do que a de São Paulo, que é de 0,735. Os dados foram publicados no Caderno Técnico sobre Mobilidade Urbana elaborado pelo Crea/PR (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Paraná), que revelou um crescimento de 47% no número de veículos entre 2007 e 2019.

Mas Londrina não fica atrás no índice de veículos por habitantes. De acordo com a Secretaria de Estado da Infraestrutura e Logística, o município contava em 2017 com 357.179 veículos, o que resulta em um índice de 0,671 veículos/habitante.

NOVE CARREIRAS

Psicóloga especializada em recursos humanos e gestão de carreiras, Nicole Tomazella avalia que muitos destes jovens viram seus pais trabalharem muito para manter um padrão de vida seguro, o que, em alguns casos, resultou no sacrifício de bons momentos em família e até em doenças graves. Para ela, isso pode ter colaborado no desenvolvimento de uma visão bastante negativa sobre o trabalho, no qual a remuneração financeira é o único ponto positivo.

Questionada sobre como esses jovens podem se preparar para um mercado de trabalho ainda desconhecido, com carreiras e profissões que ainda nem existem, Tomazella elenca a capacidade de manterem-se atualizados e o fortalecimento das relações humanas como habilidades importantes a serem desenvolvidas.

“Estima-se que um aprendizado de hoje tenha 'duração' de três anos. Ou seja, o que sabemos hoje, em três anos, será 'museu'. Não é preciso saber tudo de tudo, mas compreender como os pontos estão interligados pelas mais diversas áreas de estudo, quais as necessidades do mundo e como unir conhecimentos distintos para conquistar seus objetivos. O mundo atual é o mundo da conexão. E para isso é preciso ir em busca, perguntar, arriscar, criar, deixar ideias de lado para colocar as dos outros em ação. É preciso confiar no outro. Conectar-se não apenas pelo virtual, mas gerar realmente conexões humanas”, aponta.

Ela compara que, enquanto os "Baby Boomers", nascidos no período pós-Segunda Guerra Mundial até a década de 1960, tinham uma carreira a vida toda, pesquisas apontam que a geração atual terá em média nove carreiras diferentes ao longo da vida. "Então, precisam estar abertos para o movimento estudar/buscar/conhecer/conectar-se com quem pode lhe ajudar com a ideia/colocar em ação/errar, reaprender/refazer", aponta.

Entretanto, Tomazella ressalta que, de maneira geral, essa geração não deixa claro o quanto está disposta a arriscar – e até mesmo errar - para atingir os objetivos elencados na pesquisa. “Por mais que eles busquem "o caminho certo", precisam compreender que, para acertar, podem precisar errar. E o erro faz parte do caminho do acerto. Em vez de ficarem irritados e desistirem do que estavam fazendo, precisam identificar o mais rápido possível onde erraram e pensar em novas formas de fazer o que querem. Para isso, podem precisar de novas conexões humanas e novos conhecimentos".