O mundo ainda tenta entender Simone Biles. A megaestrela olímpica que coleciona medalhas de ouro, fãs e contratos publicitários decidiu abrir mão de competir no torneio de equipes e no individual geral e deixou o mundo da ginástica em profundo choque.

Simone Biles decidiu abrir mão de competir no torneio de equipes e no individual geral
Simone Biles decidiu abrir mão de competir no torneio de equipes e no individual geral | Foto: Loic Venance/AFP

“Não somos apenas atletas. Somos pessoas, afinal de contas, e às vezes é preciso dar um passo atrás”, justificou a jovem de 24 anos, colocando um pouco da fragilidade nos seis anéis coloridos entrelaçados que remetem à glória, ao encanto, à força e à beleza que engrandecem a existência humana.

Outros casos de atletas hegemônicos em suas modalidades - do surfista brasileiro Gabriel Medina ao judoca francês Teddy Riner, passando pelo tenista sérvio Novak Djokovic e pela tenista japonesa Naomi Osaka - e que tiveram desempenhos decepcionantes em Tóquio reforçaram o debate sobre a preparação mental dos atletas, a crueldade das redes sociais e se, de fato, existe o direito de não competir ou de não vencer para um fora de série.

Afinal, qual é o peso do preparo mental para competições de alto rendimento? Existe prevenção para episódios como o de Biles? Alguma abordagem inovadora e promissora pode ser testada para os atletas que ainda estão em formação? Como lidar com o fracasso testemunhado por bilhões de pessoas? As redes sociais amplificaram a dor da derrota e a crueldade dos julgamentos?

A reportagem da Folha selecionou quatro pessoas que estudam ou vivem a rotina esportiva para tentar contribuir com o debate e reduzir a distância da realidade da expectativa, da vida real e da visão idealizada, discrepâncias que alimentam o lado mais obscuro da cultura esportiva. O primeiro depoimento é da londrinense Dayane Camillo, nome histórico da Ginástica Ritmica e atual treinadora. “A pressão na carreira de um atleta começa desde as primeiras competições. É um dos motivos que muitos ficam pelo caminho e não chegam ao alto rendimento”.

Ciclo de cinco anos

“Simone Biles encontrou o limite dela e foi muito corajosa em aceitar e expor isso. Com certeza, isso acontece com outros atletas, mas eles não expressam. No caso dela, talvez o fato do ciclo olímpico ter se prolongado por mais um ano, tenha influenciado no nível que ela chegou aos jogos. É uma possibilidade”.

Falha em Atenas

“Em 2004, nos Jogos Olímpicos de Atenas, minha última como atleta, eu errei. Eu era a capitã, a mais experiente. Fui muito criticada, fiquei muito chateada. E eu tinha todo o suporte, de treinadores capazes e psicólogos, mas eu errei. Era minha última Olimpíada, eu me pressionava. E o atleta já tem que lidar com a própria pressão porque é isso que o faz competitivo. Mas cometi um erro de principiante. Eu não consigo explicar o que aconteceu. Estava nervosa. Mas estive nervosa em outras grandes competições e não falhei como naquele dia”

Treinamento baseia competição

“No momento da competição você não pode querer mais desempenho do que aquele que você obteve nos treinamentos. Você tem que encontrar seu melhor de forma automática, o que é conquistado com treinos intensivos e realizados por um longo período da sua vida. Não pode ser mais nem menos. Se você tentar atingir um nível que você nunca atingiu nos treinos, pode se desconcentrar e o resultado ser muito abaixo da sua possibilidade.

Na hora da competição, o preparo mental é o mais importante. Quanto mais preparado você está como resultado da carga de treinamento, mais você vai estar confiante no momento da competição. Digamos que o treinamento vai garantir 80% da sua performance, enquanto o psicológico completa o restante”.

Tenista Naomi Osaka teve desempenho decepcionante em casa
Tenista Naomi Osaka teve desempenho decepcionante em casa | Foto: Tiziana Fabi/AFP

Especialização

“Não há mais como montar uma equipe esportiva de alto rendimento sem um profissional especializado em Psicologia. Dele depende a manutenção do foco nas competições. No caso de um atleta olímpico é importante todo o ciclo de quatro anos. Neste período, ele vai entendendo os gatilhos de ansiedade, depressão, confiança, reações à derrota, à vitória, às lesões”.

Frustração

“Há duas atitudes comuns após uma derrota. Uma é a de frustração extrema que leva à vontade do abandono. A outra é um processo de reorganização de forças para competir com mais confiança. Potencializar as vitórias também contribui para o desequilíbrio. O atleta não pode esperar muito nem pouco”.

Problemas acumulados

“A iniciação esportiva tem que observar os riscos da especialização precoce. O processo natural é o interesse por esporte de modo geral e um direcionamento mais espontâneo da criança ou do adolescente. No caso da Simone Biles, eu penso que ela não queria ir para os Jogos e que a pressão que ela reclama hoje já vem de algum tempo. É uma atleta que começou a treinar muito jovem e isso pode estar pesando agora, com problemas acumulados e potencializados”.

Professor Helio Serassuelo Junior, autor do livro “Esporte: Muito Além das Competições”, coordenador do Grupo de Estudos em Atividade Física, Psicologia e Saúde do Centro de Educação Física e Esporte da Universidade Estadual de Londrina

Detalhes

“Muitos atletas de alto rendimento dizem que o aspecto psicológico representa 90% do desempenho deles. Com isso, eles querem dizer que os detalhes fazem toda a diferença em competições de alto rendimento. E que a parte psicológica rege o cuidado com estes detalhes mais que os aspectos físicos ou estratégicos. O detalhe de uma ansiedade além da conta, uma desconcentração, uma distração pesa mais no alto rendimento porque todos competem no limite das suas possibilidades”

Hegemônico na modalidade, Gabriel Medina saiu sem medalha de Tóquio
Hegemônico na modalidade, Gabriel Medina saiu sem medalha de Tóquio | Foto: Olivier Morin/AFP

Características implícitas

“Todo o treinamento é um treinamento mental. O próprio profissional de educação física deve ter noções de Psicologia do Esporte e entender quais aspectos ajudam ou atrapalham o desempenho. No entanto, em certo nível, o acompanhamento de um psicólogo especializado em esporte pode ser decisivo. Ele pode identificar características implícitas que favorecem ou desfavorecem o bom desempenho de uma modalidade”.

Derrota não é tragédia

“A derrota é inerente à prática esportiva. A derrota não é um fantasma. É um ponto de partida para estabelecer o processo de melhora. O que deve ser retirado para o bom desempenho fluir pode ser identificado numa derrota. Quando o mundo do esportista se reduz no que ele está fazendo, o desempenho melhora. Isso não quer dizer que a vitória esteja garantida. A atitude determinada deve buscar a melhoria de desempenho, não a vitória. Buscar a vitória sem mirar o desempenho pode gerar uma frustração incontornável. Um esportista não pode se desenvolver pensando na derrota como uma tragédia. O processo de aprendizagem inclui a aceitação da derrota como parte do processo de melhoria do desempenho. Qualificar a pressão com atitude ética deve ser inerente ao alto rendimento

Epidemia de depressão

“Atletas olímpicos são as pessoas públicas mais preparadas psicologicamente no mundo para lidar com pressões extremas. O que se passa nos casos como o de Simone Biles é outra coisa. Fala mais sobre o tempo que nós vivemos, o que transcende o universo esportivo. Vivemos uma epidemia de ansiedade e de depressão. A sociedade vem expropriando nossa capacidade de usufruir do bem estar e os super atletas podem revelar que é preciso ser a resistência, em algumas situações”.

Cristiano Barreira, professor e diretor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e orientador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP)

“Cabeça boa”

“Podemos dizer que tão importante quanto o preparo físico é o preparo mental. Sabemos que um atleta e sua equipe precisam estar preparados emocionalmente para as pressões, não apenas de uma competição, mas também para a rotina de treinamento. Além disso, o preparo mental visa a saúde emocional dentro do alto rendimento. Quando uma equipe é composta por psicólogos do esporte, ou tem o suporte deste profissional, é desenvolvida toda uma rotina de treinamento mental para esse atleta ou mesmo equipe, da mesma forma que se tem o treinamento físico, estrutura-se um preparo emocional pensando nas necessidades de tal ambiente”.

Situações e contextos

“Existem muitas maneiras de se trabalhar com o atleta sobre o resultado final, não apenas a derrota. É preciso entender que a medalha ou o pódio é parte de um processo e que é importante olharmos o todo, como, por exemplo, o desempenho na competição (independente do resultado), as novas habilidades adquiridas, as dificuldades, enfim, muitas vezes o atleta precisa estar preparado para a não classificação ou mesmo o resultado esperado. O trabalho é realizado em muitas frentes, para que o competidor saiba lidar com diversas situações e contextos”

Conhecimento dos limites

“Autoconhecimento é importante ferramenta para que se encontre esse equilíbrio, todos os excessos são perigosos, entre o oito e o oitenta existem muitas possibilidades e no preparo mental busca-se esse autoconhecimento para que o atleta entenda excessos e déficits e aprenda a lidar da melhor forma com isso, incluindo respeitar seus limites”

“Muita coragem”

Não acredito em um despreparo emocional de Biles ou Osaka, por exemplo, pelo contrário: entender seus limites e o que estão enfrentando e se posicionarem frente ao mundo é um ato de muita coragem. Apesar de estarem no alto rendimento, onde os limites são superados, estamos falando de seres humanos que enfrentam muitas situações e que tem se compreendido cada vez mais, justamente por olharem e se importarem com a saúde emocional. É difícil afirmar que um sente mais que o outro, podemos dizer que os enfrentamentos são feitos de maneiras diferentes, justamente porque estamos falando pessoas, que têm histórias de vidas diferentes, culturas diferentes, então seria impossível esperar que todos eles, por terem o esporte em comum, se comportassem de maneira igual.

Redes sociais

“Precisamos insistir na mudança de cultura das redes sociais também e não apenas preparar um atleta para enfrentar situações de muito desrespeito e agressão. Precisamos mudar o comportamento agressivo das redes sociais também”.

Priscila Sakuma, psicóloga do Núcleo Evoluir