Curitiba - Publicado desde 2013, o estudo do Instituto Trata Brasil sobre perdas de água no país traz novamente indicadores ruins em 2021. Quase 40% (39,2%) da água potável captada não chega oficialmente às residências brasileiras, de acordo com dados de 2019 do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento). O índice considera tanto as perdas físicas (vazamentos) quanto as comerciais (associadas a fraudes ou problemas de medição).

Imagem ilustrativa da imagem Em plena crise hídrica, Brasil desperdiça quase 40% da água potável
| Foto: iStock

Todo sistema de distribuição tem perdas, mas o índice assusta quando comparado ao de países com maior eficiência na área — caso de Japão, Dinamarca e Israel, onde as perdas ficam abaixo de 10%. E também não é lisonjeiro perto dos resultados de países latino-americanos com níveis de desenvolvimento mais próximos. O Brasil tem o quinto pior índice, ficando mais perto do pior colocado (Colômbia, com 46%) do que do melhor (Chile, com 31%), conforme destaca o instituto.

Mais grave: em plena crise hídrica, a situação só piorou nos últimos cinco anos do estudo. Desde 2015, o índice de perdas na distribuição aumentou 2,5 pontos percentuais (Veja Gráfico). Considerando apenas as perdas físicas (estimadas em 60% do total), o volume de água seria suficiente para abastecer 63 milhões de brasileiros em um ano.

Imagem ilustrativa da imagem Em plena crise hídrica, Brasil desperdiça quase 40% da água potável

FALTA DE INVESTIMENTOS

Conforme explica o economista Pedro Scazufca, pesquisador do estudo “Perdas de água potável (2021, ano base 2019): Desafios para a disponibilidade hídrica e ao avanço da eficiência do saneamento básico”, vazamentos são problemas inerentes a qualquer sistema de distribuição, que precisam de manutenção constante e se deterioram com o passar do tempo.

Isso significa que investimentos seriam necessários apenas para manter estável o índice de perdas, localizando e sanando vazamentos. Caso contrário, a tendência é sempre de piora.

“A particularidade do Brasil é que faltam investimentos de forma geral — principalmente por parte das companhias estaduais, que instalaram a rede, mas não fazem a manutenção e a gestão das perdas adequadamente”, diz.

Se países mais desenvolvidos — ou mesmo algumas cidades brasileiras — são capazes de administrar sistemas mais eficientes, a comparação é complexa para um país como o Brasil, em que 35 milhões de pessoas não têm serviços de água tratada. O dado é do "Ranking do Saneamento", também produzido pelo Instituto Trata Brasil em parceria com a consultoria GO Associados.

O déficit de saneamento, distribuído de forma desigual no país, ajuda a explicar por que investimentos em aumento de eficiência acabam ficando em segundo plano, mesmo que gerem ganhos no longo prazo. O Trata Brasil calcula que o retorno seria de R$ 27,1 bilhões líquidos em 15 anos caso o país reduzisse seu índice de perdas a 25% em 2033.

“É um investimento de longo prazo, que acaba concorrendo com um investimento mais básico, que é o de levar o serviço para lugares em que ainda não há rede de abastecimento”, explica Scazufca.

O instituto avalia, contudo, que os ganhos de receita trazidos pelo aumento da eficiência contribuiriam para financiar o próprio avanço do saneamento básico. “É um círculo virtuoso”, diz o economista. “Para reduzir o índice de perdas a 25% em 2033, que consideramos factível para o Brasil, há um custo. Mas, à medida que os vazamentos diminuem, atende-se mais com menos gastos com energia e produtos químicos, por exemplo. E quanto menores as perdas comerciais, maiores serão as receitas das companhias.”

Cultura de uso da água no Brasil precisa de mudanças

Ao mesmo tempo em que regiões como o semiárido nordestino sofrem com problemas crônicos de escassez hídrica e 35 milhões de brasileiros não dispõem de serviços de água tratada, ainda falta em boa parte do país uma cultura de preservação e uso racional da água.

Enquanto a ONU (Organização das Nações Unidas) calcula que cada indivíduo precisa de cerca de 110 litros de água por dia para atender a necessidades de consumo e higiene, o gasto chega a ser quase o dobro no Brasil.

Vários motivos teriam contribuído para esse comportamento. Em uma linha histórica e cultural, especula-se que há raízes na colonização: para portugueses e outros imigrantes europeus, quanto maior a disponibilidade de água, mais se podia desperdiçar, conforme conta o livro “A história do uso da água no Brasil – do descobrimento ao século XX”, publicado em 2007 pela ANA (Agência Nacional de Águas).

Também é comum colocar o hábito na conta dos povos indígenas, que teriam influenciado uma cultura sanitária nacional afeita a banhos diários e uso de água pura. Já uma explicação mais descomplicada estaria no fato de as tarifas de água no Brasil serem baixas na comparação com países onde o recurso é mais escasso.

“Às vezes é até difícil explicar para pesquisadores estrangeiros, com quem temos contato, que há inadimplência no pagamento de contas de água e que precisamos pedir para que as pessoas economizem”, conta Ricardo Chahin, gerente do Programa de Uso Racional da Água da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo).

Ao longo da experiência do programa, criado em 1995, Chahin conta que, embora o baixo poder aquisitivo e a baixa escolaridade tenham se mostrado determinantes para a falta de adesão a tecnologias economizadoras, não foram poucos os que se negaram a reduzir o consumo pelo simples fato de poderem pagar.

“Torneiras de fechamento automático, arejadores e redutores de vazão ainda são caros no Brasil, o que poderia ser melhorado com redução de impostos”, diz. “Mas há pessoas poderosas e artistas, por exemplo, que têm cachoeiras de água corrente e se negam a mudar, porque se acham no direito de usar quanta água quiserem”, conta.

As três principais frentes da estratégia para a construção de uma cultura de uso racional, segundo Chahin, estão associadas a medidas facultativas. A companhia paulista recomenda a utilização de produtos homologados por programas de qualidade em reformas e construções, faz campanhas de rua e em meios de comunicação e briga pela revisão da normalização, na tentativa de garantir produtos hidrossanitários que gastem menos. “Mas não conseguimos impor nada como obrigação”, explica.

Para o pesquisador do estudo do Instituto Trata Brasil, Pedro Scazufca, o incentivo para reduzir o desperdício de água pode ser menor em locais com grande disponibilidade hídrica, mas a escassez entrou na ordem do dia e precisa gerar mudanças, tanto por parte das pessoas quanto das empresas de saneamento.

O economista lembra que, desde 2014, situações graves de escassez hídrica vêm trazendo impactos concretos no dia a dia da população — a exemplo do que ocorre hoje em Curitiba e Região Metropolitana, que estão em rodízio de abastecimento de água desde março de 2020.

“A percepção de abundância de água é equivocada para muitos locais, principalmente nos grandes centros urbanos. Em um contexto em que há situações de escassez hídrica a cada quatro ou cinco anos, é importante que a cultura mude”, diz. “Com o combate a perdas, certamente será mais fácil enfrentar situações de crise hídrica, porque haverá margem de manobra.”

Imagem ilustrativa da imagem Em plena crise hídrica, Brasil desperdiça quase 40% da água potável

Paraná mantém índice de 35% de perdas na distribuição


O índice de perdas na distribuição de água do Paraná se manteve estável entre 2016 e 2019. Com 35% de perdas totais, o Estado tem resultados semelhantes aos de Santa Catarina. Na Região Sul, o índice é de 37,5%, melhor apenas que nas regiões Norte (55,2%) e Nordeste (45,7%) do país.

Três cidades paranaenses estão entre as 20 com melhores índices no ranking dos cem maiores municípios do país, cujos índices de perda de água foram demonstrados no estudo: São José dos Pinhais (22,7%), Maringá (24,3%) e Curitiba (26,1%). Londrina teve o índice calculado em 34,45%.

Também no estado, foram apresentados os índices de perdas na distribuição de Cascavel (37,3%) e Ponta Grossa (42,33%). Procurada, a Sanepar (Companhia de Saneamento do Paraná) declarou, em nota, que atua constantemente para reduzir perdas, priorizando sistemas que apresentam as maiores ocorrências. “Para otimização dos processos, a Sanepar busca constantemente a qualificação do seu quadro funcional por meio de treinamentos e aprimoramento contínuo das ferramentas de gestão, assim como fomenta parcerias e novas modalidades de contratações de serviços e obras, por performance e desempenho”, afirma.

A companhia diz que sua rede percorre 57,5 mil quilômetros de tubulação para ser distribuída a 3,27 milhões de ligações. “Com tamanha extensão, a rede de distribuição que atravessa as cidades sofre muitos impactos, de obras de toda natureza, desde infraestrutura a grandes construções, e até mesmo reformas em calçamentos de residências ou condomínios”, justifica a nota.

O texto pondera, ainda, que são contabilizados como perdas volumes de água usados na limpeza e manutenção do sistema e no combate a incêndios pelo Corpo de Bombeiros, além da água não faturada, consumida por meio de fraudes e ligações clandestinas ou medida incorretamente por hidrômetros danificados. “Estes fatores em conjunto podem representar até 30% do total de perdas”, diz a companhia.

Imagem ilustrativa da imagem Em plena crise hídrica, Brasil desperdiça quase 40% da água potável