Lidar com o luto já é difícil, mas em tempos de pandemia, em que se exige pressa de sepultamento, falta a despedida. Nesse quesito, duas perdas somam-se: da vida que se encerra e a do direito ao desfecho, causando danos emocionais aos que ficam. Erika Pallottino é psicóloga clínica e sócia-fundadora do Instituto Entrelaços, entidade especializada em luto, na cidade do Rio de Janeiro. Ela comenta as consequências da falta do apoio durante o luto nesse momento em que não há tempo nem espaço para chorar a morte de quem parte sem dizer adeus.

Imagem ilustrativa da imagem Dupla perda: morte em tempos de Covid-19

Os rituais de despedida têm lugar importante na assimilação da morte e no processo de luto. Quando esse direito é retirado, familiares e amigos sofrem as consequências. “Não ver o estado, mesmo em uma situação tão delicada que é dentro de um caixão, é uma perda também. Então, a gente tem as perdas simbólicas e a perda real da história, que é a morte de um ente querido”, comenta a psicóloga.

Se esse momento traz novos questionamentos sobre a vida, também traz sobre a morte. Os comportamentos sociais diante do risco de perder a vida, as alternativas de velório e orações on-line, os traumas causados por sepultamentos coletivos e a solidão do luto em isolamento são pontos esclarecidos pela psicóloga que atua no tema.

Qual a importância dos rituais de despedida no processo do luto?

O processo de ritualização fúnebre é uma autorização social para o pesar e a legitimação do processo de luto. Cada vez que a gente tem um rito, um espaço que a comunidade oferece suporte para a nossa dor, essa expressão emocional acaba sendo mais favorecida. É um espaço social de cuidado, acima de tudo, além de ser um espaço de despedida. É muito comum que nessa ritualização a gente também construa narrativas relacionadas ao luto que facilitem esse processo. Quando a gente olha para o ente querido no caixão e fala que ele está com o rosto sereno, por exemplo, a gente vai construindo uma história dessa narrativa também. Uma vez que, diante dessa questão da pandemia de Covid-19, esse espaço é retirado, sem dúvida alguma a gente tem repercussões emocionais mais complicadoras do processo de luto.

E quais seriam as repercussões emocionais dessa ausência?

A gente pode ter aí uma inibição dessa expressão de pesar, de sofrimento tão importante. E tem a ausência da rede afetiva, suportiva, da comunidade que nos abraça, que nos oferece o colo, que nos ajuda nas questões desde práticas, quando você pega uma cadeira, oferece um copo d'água, faz um bolo carinhosamente para levar para a pessoa, e até mesmo a possibilidade de você estar ao lado de pessoas queridas e afetivas para poder prantear a perda. Há uma inibição da expressão e, muitas vezes, a sensação de descrença e incredulidade de que aquela morte de fato aconteceu, quando você não olha, não vê, quando você não tem a comunidade que te ajude a entender que a realidade se transformou.

A perda de alguém e a perda do direito de se despedir é o que chamam de "dupla morte"?

A literatura chama isso de sobreposição de luto. A gente tem um luto primário, que é a perda do ente querido, e outros secundários. São pequenas mortes da grande morte: a ausência dessa rede; ausência da comunidade; se eu pertenço, por exemplo a uma comunidade religiosa em que eu tenha pessoas que fazem parte da minha rotina semanal, estar longe delas representa também uma perda; não poder vestir a pessoa ou não ver o estado dela, mesmo numa situação tão delicada que é dentro de um caixão, é uma perda também. Então, a gente tem as perdas simbólicas e a perda real da história, que é, sem dúvida alguma, a morte do ente querido.

As alternativas de velório, orações e grupos de apoio on-line suprem a necessidade da despedida e do reconhecimento da morte?

Elas são alternativas importantes para que a gente não fique completamente ausente desses cenários de cuidado, porque, acima de tudo, quando você tem a rede de suporte, você está recebendo cuidado. Esses são processos que a gente vai criando, utilizando a tecnologia para nos ajudar a estar em rede, mas é o que tenho falado muito, tem alguma coisa da ordem da presença, do estar junto, da temperatura da mão, do cuidado com o outro, do colo, a gente tem uma conexão com o outro que ameniza também pelo encontro sensorial. Agora, a gente tem uma marca dessa ausência. Claro que a gente está aí construindo formas de estar juntos a partir da questão virtual e tecnológica, são saídas, mas fica, de alguma maneira, uma ausência, uma perda importante do encontro humano, já que até hoje, ainda bem, a gente não conseguiu ter nada que substituísse a força desse encontro humano.

As catástrofes, muitas mortes ao mesmo dia, sepultamento em covas coletivas, isso não gera traumas ainda maiores para quem fica?

Sim, a gente tem aí dois processos que acontecem concomitantemente. O luto coletivo, que é essa descrição que você traz, dessa realidade, da mídia, do horror, de mortes em massa, dos sepultamentos de forma coletiva, isso sim é especialmente traumático para quem tem uma perda recente ou para alguém que viveu um trauma recente, há a reatualização para essas pessoas desse conteúdo da dor que ainda está muito em carne viva e muito forte. Mas, paralelo a isso, a gente tem o que é individual, a gente tem um pesar pelo que está acontecendo com o mundo, com a humanidade, com as cidades, com o País, e a gente também tem essa nossa história de dor, que é individual, única, que às vezes não dá para ser compartilhada. Esse conteúdo traumático pode acontecer na esfera coletiva e também na individual.

Mas para os familiares a dor é maior quando se trata de sepultamento coletivo?

A gente não consegue mensurar essa ordem de grandeza, quando está falando de luto, é sempre muito delicado. Eu costumo dizer que o maior luto é o meu luto, é o luto que eu vivo, aí independe se é o luto de uma criança, de um animal de estimação ou do meu avô de 94 anos ou da minha mãe que tem 60. Perder uma pessoa que você ama profundamente é a maior dor. Com o enlutamento coletivo, às vezes há uma ideia de que todo mundo está sofrendo igual, mas não, a gente tem cada história, cada biografia, cada vínculo formado de uma maneira muito particular, então, cada história precisa ser personalizada, reconhecida, cuidada individualmente, porque tem alguma coisa da história de luto que é impossível ser igual para todos, mesmo que a gente tenha na mesma família. Isso é comum quando você perde um pai e você tem três filhos, cada um perde esse pai de um lugar diferente, porque tem com esse pai um vínculo e um laço afetivo diferente.

Qual o impacto das notícias negativas da Covid-19 para as pessoas que estão internadas no hospital pela doença e que precisam lutar pela vida?

É gigante! A gente está falando muito das pessoas sobreviventes, as histórias de perda, mas eu percebo que a gente está dando pouca ênfase nessas pessoas internadas, que estão solitárias, ameaçadas, com muito medo, passando por procedimentos invasivos e muitas vezes extremamente angustiantes, como posições melhores para o processo respiratório e que estão muito desconfortáveis. Trata-se de uma equipe de saúde que tenta de todas as maneiras minimizar esses efeitos, mas que também está ameaçada, com medo de se contaminar, com poucas pessoas e muitos profissionais adoecidos. Não temos ainda nas instituições protocolos estruturados para as visitas virtuais que seriam facilitadores emocionais. Com o tablet ou a câmera, [seria importante] que você pudesse ter pessoas específicas nas equipes, assistentes sociais, o pessoal da capelania, psicólogos, que ajudassem nessa ponte entre família e paciente para acolher a dor dessa pessoa que está solitariamente vivendo um momento de muita ameaça. A gente tem recebido alguns pedidos de ajuda de profissionais de saúde para pensar estratégias para minimizar o efeito dessas pessoas internadas, porque elas têm também um aumento, às vezes, de sintomas físicos, pelo processo de angústia e de ansiedade.

Nesse cenário de restrições social, o que faz com que pessoas encarem de forma tão diferente a ameaça da morte diante da doença?

Eu costumo dizer que a gente é o que é, doente ou não, frente à morte ou não. Tem alguma coisa que fala da nossa personalidade, da nossa dinâmica psíquica, social, emocional, familiar, de comunicação, que vai continuar sendo a mesma, mesmo em tempos de pandemia. A gente pode ficar com mais medo, no entanto, somos as pessoas desafiadoras, desbravadoras, que não acreditam na realidade. O que a gente sabe é que, mundialmente, não só no Brasil, os efeitos são muito ruins quando a gente não segue as recomendações (das autoridades de saúde). A gente tem pouco controle sobre a Covid-19: tem o distanciamento físico e respeitar grupos de risco, é o que a gente pode fazer nesse momento e algumas pessoas não conseguem, porque isso faz parte de suas características de personalidade e que muitas vezes pioram, inclusive em momento de crise pelo aumento da angústia. A sensação da falta de controle de si mesmo é muito grande aí acaba se colocando em risco.

Em Manaus, familiares se indignaram com o empilhamento de caixões em valas comuns, pedindo mais respeito. Há um limite do aceitável quando se trata de luto?

Acho que quando você fala de limite, eu entendo que a gente está pensando qual é a possibilidade de negociação dentro de uma coisa tão difícil que a gente está vivendo, porque eu não sei muito bem se nesse momento, com toda essa catástrofe, com um aumento exponencial da curva de infectados e mortos, se a gente consegue falar de limites, porque todos os limites e possibilidades que a gente tinha já foram esfacelados. Eu acho que a gente tem que pensar o que é possível negociar ou não, o que é possível em cada cidade, ser pensado e negociado com a sua população. Hoje, o que a gente tem de grande facilitador para estresse emocional, para questões de luto, é a comunicação. Eu posso dar a pior notícia do mundo para alguém, mas se eu falo de forma empática, com compaixão, se falo de forma cuidadosa, se dou orientação de maneira acolhedora, eu minimizo o impacto da notícia ruim. Então, talvez, o que a gente tenha que pensar é que em situações como essas de múltiplas mortes, com sepultamentos de forma nunca antes pensado e vivido pela gente, as instituições e órgãos tenham que comunicar esses entes queridos de forma compassiva, acolhedora e cuidadora, porque talvez não seja possível na realidade transformar essa história tão difícil, mas é possível transformar a maneira com que a gente se comunica afetivamente com alguém que está vivendo uma dor profunda.

Nesse momento, mesmo distantes fisicamente, o que a gente pode fazer por uma pessoa que acabou de sofrer uma perda?

A gente tem o distanciamento que é físico, mas não é social, não é afetivo, e tem hoje a tecnologia a nosso favor, com maneiras de escrever uma boa mensagem para aquela pessoa que está passando por um momento difícil, pedir notícia se ela puder, se fazer presente do ponto de vista virtual, fazer um bolo e deixar na casa dessa pessoa... Oferecer algum tipo de cuidado, mesmo que a distância, eu tenho como ajudar a pagar uma conta a levar o café da manhã ao longo dessa semana, não sei, a gente vai ter que ser criativo, lúdico e saber que o distanciamento é físico, não estamos isolados, desconectados das pessoas. Uma das coisas mais difíceis das pessoas que estão em processo de luto é o silenciamento da sua rede afetiva. Muitas vezes, se eu não sei o que eu falo, aí eu não falo nada e me afasto. A gente tem que estar junto, falando ou mandando notícia, pensando maneias para se fazer presente e oferecendo algum tipo de cuidado através de um poema, de uma música, de uma mensagem carinhosa, mas não silenciar e desaparecer, porque já está difícil demais essa ausência que a gente tem que manejar.