Do colapso nos sistemas de saúde à ameaça de forte recessão econômica, são notórios os impactos negativos da pandemia do novo coronavírus na sociedade global. Mas o avanço da propagação da Covid-19 no mundo tem um outro lado. Ele revela os efeitos devastadores da ação do homem sobre o meio ambiente ao longo das décadas e serve de alerta para o fato de que passou da hora de os habitantes do planeta pensarem em maneiras de conter a devastação ambiental ao mesmo tempo em que revisitam hábitos, costumes e culturas.

Imagem ilustrativa da imagem Degradação ambiental está na origem da pandemia

A despeito de teorias criadas sem nenhum embasamento científico e disseminadas nas redes sociais acerca da origem da doença, pesquisadores e estudiosos explicam que vírus como corona não se originam do nada. Esses microrganismos sempre estiveram presentes nas florestas ou nos animais silvestres e por lá ficariam não fosse a desastrosa intervenção humana cujo principal resultado é a degradação ambiental.

O coronavírus é a bola da vez. Altamente contagioso e letal, por onde passa deixa um rastro de morte, como se viu na China e, posteriormente, na Itália. Mas antes dele vieram outros: HIV, ebola, SARS, MERS, o zika vírus e a febre chikungunya. Estudos apontam que desde 1940, centenas de micróbios patogênicos, que causam doenças, surgiram ou ressurgiram em novos territórios onde nunca haviam sido vistos e 60% deles se originam do meio animal.

Ainda não se sabe ao certo qual foi o transmissor do novo coronavírus, mas especula-se que o contágio ao ser humano tenha começado a partir de um pangolim, mamífero originário de países da Ásia e África, de uma espécie de morcego ou cobra, vendido em um mercado público da cidade chinesa de Wuhan, onde teve início o surto da doença. Em matéria publicada no último final de semana pelo jornal britânico The Independent, o pesquisador da Universidade de Harvard, Samuel Myers, lembra que nos mercados de Wuhan, na província central de Hubei, há um número extraordinário de espécies exóticas vivendo em gaiolas muito próximas umas das outras e dos humanos, de uma maneira jamais encontrada na natureza.

A perda da biodiversidade e o crescimento da população global, que deve passar dos atuais dois bilhões para 9,7 bilhões de pessoas em 2050, todas elas procurando por alimentos, não deixam dúvidas de que novas pandemias como a que estamos vivendo agora virão, afirmou Myers. A questão é: quando isso vai acontecer?

“Existe uma correlação entre o desmatamento e a destruição dos habitats florestais com o surgimento das doenças. Inclusive se sabe que as doenças causadas por mosquito (dengue, zika vírus, febre chikungunya, malária e leishmaniose, por exemplo) têm uma relação intrínseca com o desmatamento. Quando desmata mais, surgem os vírus. A fauna silvestre fica exposta e esses microrganismos se aproximam da gente”, explicou a doutora em Ecologia e professora da Universidade Federal do Mato Grosso, Ana Lúcia Tourinho.

Na China, houve um agravante que é a questão cultural. A população tem por hábito ingerir animais silvestres e provavelmente foi ao consumir um animal infectado pelo vírus que a transmissão da Covid-19 entre humanos teve início. Não se trata aqui de culpar os chineses pela origem da doença, mas de alertar a população mundial para o fato de que a preservação de alguns costumes em uma época de forte degradação ambiental pode pôr em risco todo o planeta.

Tourinho cita um fato impressionante. Um estudo de 2007 da Sociedade Americana de Microbiologia já questionava se a humanidade estaria preparada para o ressurgimento da SARS (sigla em inglês para Síndrome Aguda Respiratória Grave). “Sabe-se que os coronavírus sofrem recombinação genética, o que pode levar a novos genótipos e surtos. A presença de um grande reservatório de vírus do tipo SARS-CoV em morcegos-ferradura, juntamente com a cultura de comer mamíferos exóticos no sul da China, é uma bomba-relógio”, dizia o documento publicado há 13 anos. “A ciência não acompanha essa velocidade da mutação genética do vírus, que são microrganismos de estruturas muito simples, e por isso não consegue sintetizar um medicamento”, destaca a ecologista.

Tourinho faz ainda uma associação da pandemia do novo coronavírus com a crise climática de 2019. “Vimos no ano passado a crise climática chegando com tudo, para ficar, e surpreendeu, cientificamente, porque se achava que teríamos mais tempo, que isso ocorreria em uma ou duas décadas. E agora, vemos essa pandemia gigante”, ressaltou.

Quarentena trouxe ganhos ambientais

A ecologista Ana Lúcia Tourinho explica que os vírus são mecanismos ecológicos existentes na natureza e que agem como controladores populacionais ao infectarem um organismo. Não que a Terra esteja ativando seu sistema imunológico, como tem circulado na internet, mas esse mecanismo, ao lado dos seres vivos predadores, como o homem, são responsáveis por evitar um crescimento exponencial dos animais, humanos ou não. “Esses organismos agem como uma resistência, achatando nossa curva populacional e, no caso do novo coronavírus, está restringindo a nossa locomoção. Fomos forçados a parar”, explicou.

Como resultado da quarentena imposta pela Covid-19, houve ganhos ambientais já perceptíveis. Na China, onde mesmo quando não há surtos de doenças a população se habituou a sair de casa usando máscaras para reduzir os efeitos da poluição da atmosfera, há relatos de que o ar está mais puro e os chineses agora conseguem ver o azul do céu. O aquecimento também diminuiu. Na Itália, a ausência de turistas contribuiu para uma melhora significativa da qualidade da água dos canais de Veneza. “(O vírus) mostrou que para reverter os danos da mudança climática não é preciso tantos anos. A natureza está mostrando que tem um poder de resiliência muito maior do que os cientistas imaginavam”, disse Tourinho.

“Essa situação de crise nos mostra que temos, sim, condição de mudar hábitos. Um exemplo são as pessoas em home office, as pessoas se locomovendo menos pelo País e pelas cidades. A gente faz muito dessas atividades que geram impactos ambientais, como gases de efeito estufa, mas a gente teria alternativas”, observou o gerente de Economia da Biodiversidade da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, André Ferretti.

Há mais de 20 anos se discute mudanças de hábitos e se busca alternativas para controlar o gasto demasiado de energia fóssil no planeta, mas em um momento de crise fica claro que isso seria perfeitamente viável. Além disso, Ferretti aponta que do momento que estamos vivenciando agora devem surgir inovações. “As pessoas já estão pensando outras alternativas e, no futuro, a gente vai olhar para trás e ver que conseguimos pensar em outras formas de se comunicar e trabalhar.”

A pandemia do novo coronavírus deve deixar como lição a necessidade de termos um ecossistema equilibrado e que para isso podemos adotar uma série de medidas. “Temos que entender que nem os ricos vão estar protegidos disso e é o tipo de coisa que vai ser mais frequente, incêndio, glaciação, tsunami e pandemias. Se a gente não parar e começar a cuidar, com seriedade, com os governos e as instituições de ensino e pesquisa, de políticas de contenção ambiental, de saúde epidemiológica”, ressaltou Tourinho.

Efeitos do isolamento devem colaborar para decisões futuras, diz pesquisadora

Mais importante que entender os efeitos do isolamento social no curto prazo, é quanto os dados irão colaborar para dar luz ao problema futuramente, observou Camila Acosta Camargo, pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo) na área de Ciências da Comunicação e responsável pela Comunicação da ONG Instituto Saúde e Sustentabilidade. “A China teve redução (de poluentes), a Itália também e isso acaba revelando que o modelo de cidade não expõe uma crise sanitária, mas uma crise ambiental.”

Acosta aponta para a reflexão sobre o quanto as crises revelam mudanças que deveriam vir à tona para melhorar a qualidade de vida da população, mas sem cair na conclusão simplista de que é uma escolha do trabalhador. “A maior parte da emissão de poluentes na cidade de São Paulo vem dos ônibus, a diesel. Não dá para responsabilizar o cidadão. Tem que vir política pública que incentiva a mudança privada. O trabalho remoto se revelou econômico para as empresas e isso precisa ser considerado, mas tem que ver se a saúde e a qualidade de vida do trabalhador não estão em segundo plano”, defendeu.

Muito se fala em estimular o uso do transporte público coletivo de energia limpa em substituição ao veículo individual. “Mas é preciso investir em transportes que levem as pessoas para mais lugares e viabilizar a caminhada e o uso de outros modais, como a bicicleta.”