BBB 21 escancara política do cancelamento
Discriminação é problema comum na sociedade e ganha maior repercussão com reality show
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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021
Discriminação é problema comum na sociedade e ganha maior repercussão com reality show
Débora Mantovani - Estagiária
"Lá na terra dessa pessoa é normal falar assim.” Desta maneira, começou a declaração da rapper Karol Conká, no Big Brother Brasil 21, que a fez perder ao menos 500 mil seguidores no Instagram nos primeiros dias de fevereiro. "Eu sou de Curitiba. É uma cidade muito ‘reservadinha’ (...) Tenho muita educação para falar com as pessoas.” A cantora fez essa afirmação após se desentender com outra participante no programa da TV Globo, a advogada Juliette Freire, que é paraibana. A fala causou revolta nas redes sociais, impulsionando a queda na popularidade da rapper.
Comportamentos não apenas de Karol Conká, mas de outros participantes do BBB, evidenciam e trazem à tona a política do cancelamento, que segue muito forte na internet. Porém, se o modo de agir de alguns brothers e sisters choca e provoca revolta em quem está vendo tudo da telinha, também pode servir para levantar a reflexão sobre as próprias atitudes.
"Eu fiquei bastante chocado [com a fala de Karol Conká]”, conta o cantor e influencer das redes sociais Matheus Mozer, 25, do interior do Maranhão. "Eu acho que essa xenofobia é praticada por meio de microagressões que, se você não prestar atenção, passam despercebidas. Tem coisas que estão muito intrínsecas nos comportamentos”, pontua. Mozer mora na capital paulista desde 2016 e conta que frases que denotam preconceito contra nordestinos ainda são muito recorrentes, como referir-se a pessoas vindas do Nordeste, que tem nove estados, como "paraíba”, ou classificar algo brega como "coisa de baiano”. "E, às vezes, [os paulistanos] reproduzem isso sem nem pensar”, comenta.
O cantor alerta que essas frases carregam um discurso de discriminação, que deve ser combatido, e conclui que a xenofobia ainda existe, principalmente por não ser amplamente discutida. A mestra em Ciências Sociais e doutoranda em Sociologia Lina Ferreira explica de onde vêm tais comportamentos. De acordo com ela, a xenofobia, assim como outros tipos de discriminação, está baseada na ideia de uma superioridade moral de um grupo sobre outro. "Falas como essas revelam um valor muito específico, a crença de que as práticas e os costumes da comunidade socioespacial a que pertenço são superiores às outras”, afirma.
"Temos observado, historicamente, a construção estigmatizada do ‘nordestino’, que não condiz com toda a diversidade cultural e a riqueza simbólica e material produzida pelas pessoas que pertencem aos diferentes estados que constituem aquela região. Esta caricatura é recorrentemente acessada para justificar as desigualdades socioeconômicas ou mesmo reforçá-las”, explica a socióloga.
O empresário e influencer londrinense Gabriel Morente, que mora em Curitiba há cerca de cinco anos, acredita que Karol Conká foi injusta ao citar o povo curitibano numa declaração preconceituosa. "Sempre fui muito bem recebido [pelos curitibanos]”, afirma. Segundo Morente, alguns moradores da capital paranaense podem ser "reservados”, mas esse não é um comportamento que deva ser vinculado à educação. "É realmente triste ver que ela quis associar o povo de Curitiba, que é um povo tão querido, a uma fala tão xenofóbica”, pontua.
Militantes também incorrem em erros
Um aspecto dessa edição do BBB que chamou a atenção do público é que grande parte do grupo de participantes, principalmente entre os famosos, apoia e participa ativamente de movimentos sociais. Atitudes equivocadas que tiveram no reality show, entretanto, surpreenderam telespectadores.
"Acho muito engraçado o que está acontecendo nessa temporada do Big Brother, porque os participantes foram muito moldados para essas lutas sociais. Eles foram para problematizar – eu acho que com a intenção de ‘lacrar’ e ganhar o público – e acabaram perdendo a mão”, afirma o empresário e influencer londrinense Gabriel Morente.
É necessário ressaltar, porém, que, apesar das contradições nas atitudes dos participantes, pessoas que defendem pautas políticas como a luta por direitos LGBTQ+, feminismo e antirracismo, estão também sujeitas a cometer erros. A desinformação e as falhas em que participantes de um reality incorreram não devem deslegitimar a militância política como um todo, e muito menos reduzir essas lutas à busca por afirmação identitária.
Para o advogado e influencer Marcus Possenti, é importante conscientizar o público de que a conduta da cantora foi equivocada. Ele alerta, porém, que nem todos os curitibanos pensam daquela forma e ressalta a importância de se criar diálogos pelos quais as pessoas se conscientizem de preconceitos como o racismo, o machismo, a homofobia e a xenofobia. Possenti defende que características culturais regionais não devem ser hierarquizadas, da mesma forma como se preocupa com outra cultura que se propaga em tempos de redes sociais: a do cancelamento. "Não devemos legitimar a atitude [de Karol Conká], mas não gosto da ideia de massacrar uma pessoa”, opina.
Política do cancelamento: a nova cultura da internet
O termo cancelamento está em alta nas discussões em redes sociais, não somente com referência ao Big Brother. Mas o que, afinal, é isso? A socióloga Lina Ferreira explica que o termo pode ser entendido como uma reação coletiva ao posicionamento ou à ação de uma determinada pessoa, marca ou estabelecimento, a partir de um conjunto de concepções morais compartilhadas por um grupo.
Este comportamento, entretanto, não é propriamente uma novidade. "Podemos traçar um paralelo com umas das formas mais extremas e violentas que conhecemos desse tipo de reação: o linchamento. Faço esse paralelo porque, de certo modo, esse é o espírito que move os cancelamentos”, indica.
A socióloga estabelece, entretanto, algumas particularidades da prática nas redes sociais. "Além da ferramenta, eu diria que há outro elemento que caracteriza o cancelamento: os temas acionados pelo coletivo reativo”, aponta. Ferreira observa que a prática tem sido aplicada nas plataformas da internet, em geral, para defender as questões conhecidas como pautas identitárias.
O método, porém, segundo Ferreira, não convida ao diálogo sobre essas questões e é pouco democrático. "Ainda que o ambiente virtual seja palco para boa parte do desenvolvimento do cancelamento, tanto a motivação quanto algumas consequências podem extrapolar a virtualidade”, explica, citando os relatos de ameaças físicas ao ‘cancelado’ e à sua família ou pessoas próximas. "Por isso, é importante discutirmos sobre o quão justas são as formas de punição promovidas pelo cancelamento”, afirma.
Para o psicólogo clínico Sylvio do Amaral Schreiner, colunista da FOLHA, o cancelamento pode ser entendido de diferentes maneiras. "Eu não vejo como valores absolutos. Cada caso é um caso e tem que ser avaliado de forma diferente. Tem pessoas que falam bobagem mesmo e elas precisam, vamos dizer assim, ser canceladas”, diz. Schreiner cita como exemplo o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que teve sua conta no Twitter banida após utilizar a plataforma para convidar seus apoiadores a invadirem o Capitólio, sede do Congresso norte-americano.
Outro assunto que causou revolta na edição atual do Big Brother Brasil foi a exclusão do ator, dramaturgo e poeta Lucas Penteado. Após desagradar outros participantes do programa, Penteado passou a ser marginalizado por alguns membros da casa. Mesmo após pedir desculpas, ele continuou sendo isolado, chegando ao ponto de ser impedido de fazer as refeições junto com os outros participantes, espelhando uma espécie de cancelamento ao vivo. A situação levou o jovem a pedir para deixar o programa.
"Ele foi eleito para ser o inimigo. Isso é muito comum em movimentos de grupo, onde se elege alguém ou algo que passa a ser combatido. Então, todas as coisas ruins são projetadas nele”, explica o psicólogo clínico Sylvio Schreiner. Ele comenta que, por mais que isso ocorra também em outras circunstâncias sociais, quando o público vê, de forma escancarada, essa marginalização em um programa de grande alcance como o Big Brother, pode ser incentivado a refletir sobre práticas sociais semelhantes.
"É um ponto de partida, porque é aprendendo a falar sobre aquilo que nos incomoda que as coisas podem começar a ser entendidas e mudadas, transformadas”, pontua, alertando também para os perigos da discussão irrefletida. "Aquilo que se inflama demais, não pode ser aprofundado. As pessoas querem simplesmente se livrar, definir o que é certo e o que é errado, e não é assim que precisa funcionar”, conta.
A socióloga Lina Ferreira também atenta para o alcance do programa. "A capacidade de mobilização que um reality show como o Big Brother Brasil tem não deve ser subestimada”, afirma. "O programa tem mostrado como o cancelamento é uma metodologia que gera injustiças e sofrimentos, em um processo em que o ‘cancelado’ não tem direito a resposta e que a única solução é o seu extermínio daquela comunidade”, diz.
"Mas, além disso, acho que o programa tem mostrado um lado dos ‘cancelados’ e dos ‘canceladores’ poucas vezes conhecidos por nós. Temos visto, então, que as duas figuras são pessoas reais, com belas e tortuosas trajetórias de vida, com famílias e amigos queridos, detentoras de carreiras de sucesso e reputações bem constituídas. Não são monstros, como pintam e são pintados”, explica a socióloga.
Outro problema do cancelamento é que mascara uma falsa sensação de mudança social. "Parece-me que o violento processo de exclusão impulsionado pelos cancelamentos, além de antidemocrático, nos dá uma falsa sensação de resolução do problema”, aponta Ferreira.
Schreiner também aponta para o risco desse extermínio arbitrário de perfis nas redes sociais, quando a medida não leva à transformação. "Mais do que definir o que é certo e o que é errado, é importante discernir aquilo que nos faz crescer, que nos faz expandir como pessoas, dentro de nossas casas, nossas cidades, nossas sociedades, daquilo que no fundo vai criando miséria, não só no sentido econômico e social, mas também em relação à qualidade de vida. É preciso que haja esse diálogo, mas não discursos inflamados”, conclui.
Supervisão: Fernando Rocha Faro - Editor