Imagem ilustrativa da imagem American ‘taokei’ of life
| Foto: Isac Nóbrega/PR

De um lado está Boonville, uma cidadezinha de 8 mil habitantes encravada no coração do Missouri, no meio-oeste americano. Banhada pelo rio que dá nome ao estado, ela é cortada pela rodovia Interestadual 70, tendo Kansas City, a mais populosa do Missouri, a oeste; e a capital Saint Louis, a leste.

De outro, uma cidade que, apesar de estar localizada relativamente próxima a Colorado, Flórida e Califórnia, é separada por mais de 8 mil quilômetros da maior bacia hidrográfica dos Estados Unidos. Trata-se de Astorga, município de 26.209 habitantes, parecido com outros tantos erguidos na metade do século passado nas terras vermelhas do Norte do Paraná, como Colorado, Flórida e Califórnia.

A improvável ligação entre os dois pontos geográficos é um fuzil calibre 5.56 mm, fabricado pela CMMG Inc. em Boonville. O armamento de grande poder de fogo foi apreendido em uma operação policial na madrugada de quinta-feira (11), na PR-218, em Astorga. O fuzil, dois carregadores, 46 munições e mais 1.325 quilos de maconha estavam escondidos em um caminhão carregado de farinha. Assim como outras mulas do tráfico, o homem que dirigia o caminhão foi o único preso na história.

Com a prisão registrada, a arma foi encaminhada para a custódia da Justiça e virou “objeto de disputa” entre as polícias Civil e Militar do Paraná. A polícia judiciária, em Londrina, foi a primeira a manifestar o desejo de ficar com o armamento. No documento, expõe “a carência de poder de fogo adequado para fazer frente às armas comumente utilizadas por cidadãos em conflito com a lei”. Dias depois, o 5° Batalhão da Polícia Militar também protocolou pedido de “depósito antecipado do armamento em favor da Agência Local de Inteligência, até decisão final”.

O episódio escancara alguns pontos nevrálgicos para a segurança pública brasileira, entre eles a porosidade das fronteiras e a falta de estrutura das polícias no enfrentamento às organizações criminosas. Não são poucos os casos de ataques de quadrilhas de roubo a banco fortemente armadas que aterrorizam cidades de pequeno e médio portes. Por muitas vezes, investem com rajadas contra as unidades policiais, sem dar chance a qualquer reação, tamanha a diferença do poder de fogo entre as pistolas e os verdadeiros arsenais de guerra dos criminosos.

A reportagem tentou ouvir a Sesa (Secretaria Estadual de Segurança Pública) sobre o cenário de deficit de armas de maior poder de fogo para as polícias, mas não obteve retorno até o fechamento da edição.

PÁTRIA ARMADA

Além de enfrentar a disparidade de forças em relação às organizações criminosas, policiais também terão que lidar com mais civis armados nas ruas. No entanto, o fenômeno está longe de ser considerado um problema no meio policial. A cultura armamentista, uma das obsessões do presidente Jair Bolsonaro, capitão da reserva do Exército, é muito popular entre as fileiras das tropas. Algumas poucas vozes dissidentes, porém, preveem uma tragédia anunciada.

Entre a maioria dos estudiosos de Segurança Pública, a flexibilização do Estatuto do Desarmamento é considerada uma temeridade. “É lamentável que quanto mais decretos e portarias o governo Bolsonaro edita, mais fica clara a sua intenção de armar a população brasileira. Ao mesmo tempo, isso corrói a capacidade do estado brasileiro, das polícias brasileiras, sobre a maneira de fiscalizar e controlar essas armas de fogo”, alerta o membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Ivan Marques.

Ele cita a facilidade com que armas registradas vão parar no poder de criminosos. “Já está mais do que provado por diversos estudos, diversas pesquisas de organismos brasileiros e internacionais de que essa arma legal, essa arma que entra muitas vezes na mão de um cidadão bem intencionado, ela acaba invariavelmente caindo na mão de criminosos, seja por desvio, seja por roubos, furtos, e até perdas dessas armas para o mercado ilegal”, expõe.

“Nesse sentido, o governo Bolsonaro tem corroído a capacidade de investigação das polícias brasileiras, no que se refere à arma de fogo e munição. Enquanto de um lado entram muitas armas na sociedade, de outro deteriora-se a capacidade desse mesmo estado de tirar armas ilegais da mão de criminosos. Ou seja, é a receita para o desastre.”, completa.

O mesmo fuzil disputado entre as polícias do Paraná teve o porte liberado para civis em junho do ano passado, por decreto presidencial. A primeira investida de Bolsonaro, a liberar fuzis, foi em 2019. Na época, ele voltou atrás após pressões. Porém, em julho do ano passado, liberou a venda de armas calibres 5.56 e 7.62 para os CACs (Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores), além de outras situações específicas. Agora, mais flexibilizações causam reações na sociedade.

Em artigo publicado no site da revista Piauí, na última terça-feira (16), Ivan Marques e Renato Sérgio de Lima, também do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirmam que “os mesmos policiais que, em uma análise rasa, se veem beneficiados por essas medidas, serão os primeiros a sentir na rotina de seu trabalho todo o impacto que essas armas apresentarão na sociedade brasileira por anos a fio”. Entre vários argumentos apresentados, um deles chama a atenção: a licença para a fabricação de munição caseira, o que tornaria praticamente impossível de se chegar ao autor do disparo, dada a impossibilidade do exame de balística”.

ONDE SÓ TIPOS COMO JOHN WAYNE TÊM VEZ

As relações entre o meio-oeste americano e o interior do Brasil vão muito além do tráfico de armas. Ao sonhar com o porte de armas, compram o pacote da propaganda armamentista do país de Donald Trump. Toda uma geração que cresceu assistindo a filmes de faroeste sonha com um passado romântico, quando uma “arma na cinta” era a solução para todos os problemas. Alheios às mudanças que tornaram o mundo do século 21 esse lugar tão complexo, a visão dicotômica divide a sociedade em mocinhos e bandidos. Pelo prisma do radicalismo, só tipos como John Wayne têm vez.

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| Foto: iStock

A inspiração para os defensores das políticas armamentistas vem justamente do “american way of life”, principalmente do interior dos Estados Unidos. Em fevereiro de 2019, um legislador estadual do Missouri apresentou projeto para armar todos os cidadãos maiores de idade de seu estado. Pelo texto, todos moradores teriam que comprar uma pistola ou um revólver, além de um rifle semiautomático.

Segundo informações da agência espanhola EFE, o republicano Andrew McDaniel propôs oferecer crédito tributário para ser utilizado para reduzir os impostos da compra em até 75%. O projeto não seguiu adiante na Câmara dos Representantes daquele estado, mas a iniciativa de McDaniel não soou nem um pouco estranha em um país onde a posse de armas é um direito constitucional garantido pela Segunda Emenda. A tentativa da obrigatoriedade não “colou” no Missouri, mas em pelo menos cinco povoados americanos, ter uma arma é exigência: Virgin, em Utah; Gun Barrel City, no Texas; Kennesaw e Nelson, na Geórgia, e Nucla, no Colorado.

A popularidade das armas de fogo é tamanha nos EUA que uma empresa de telhados da Virgínia chegou a anunciar uma promoção que oferecia um fuzil AR-15 grátis em cada instalação de telhado, noticiou o jornal The Washington Post. Ao mesmo tempo que políticas anti-armas parecem impensáveis nos Estados Unidos, sangrentos atentados, principalmente em escolas, trazem à tona a necessidade de se debater medidas de enfrentamento ao problema.

Querer emular no Brasil uma política de armas semelhante ao dos Estados Unidos pode trazer consequências perigosas, adverte Ivan Marques. “As realidades socioeconômicas são muito distintas entre os dois países e, ainda que seja bastante comum essa comparação, os efeitos de armas de fogo nessa sociedade são muito diferentes. Trazer essa realidade americana para o Brasil é um desastre para a sociedade brasileira”, critica.

Ele prossegue ao listar alguns efeitos. “É aumentar ainda mais as desigualdades existentes no Brasil, dado o nível de violência e agressividade da nossa sociedade. Somada às mazelas socioeconômicas, nós temos um verdadeiro caldeirão de distúrbios, de desordem e de violência que acabam sendo fruto dessa mistura de armas de fogo e indicadores sociais e econômicos tão desiguais”.

Marques também faz observações sobre a própria realidade americana. “Os Estados Unidos, se comparados com outros países de mesmo nível sócio-econômico, mostram um número 15 vezes maior de abuso dessas armas de fogo no mercado civil em comparação com países da mesma categoria. Ou seja, os Estados Unidos, justamente por serem a sociedade mais armada do mundo, acabam sofrendo de maneira muito desmedida quando as consequências quando comparado com outras nações, países de mesma categoria”.

QUANDO A SALIVA ACABA

Se hoje, a realidade armamentista americana - pelo menos por enquanto - ainda parece distante da nossa, ela nem sempre foi assim. As primeiras iniciativas efetivas em relação a políticas de desarmamento só ocorreram em 1997. Com o assunto em destaque nas pautas de discussões de autoridades, estudiosos e agentes de segurança pública, a sociedade começou a relacionar a facilidade de acesso às armas de fogo ao aumento de homicídios.

Mas o grande marco nessa transformação data de 2003, com a sanção do Estatuto do Desarmamento, em dezembro daquele ano. A lei regulamenta o registro, a posse, o porte e a comercialização de armas de fogo e munição no Brasil. Além disso, o governo organizou campanhas que incentivavam as pessoas a entregarem suas armas à Polícia Federal. Nos anos seguintes, o país registrou redução na taxa de homicídios por armas de fogo.

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Após a derrota de Donald Trump nas eleições americanas, no final do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro foi um dos últimos chefes de estado a reconhecer a vitória de Joe Biden. Ainda durante a campanha, quando o então candidato democrata mencionou a possibilidade de sanções ao Brasil por omissão na destruição da Amazônia, Bolsonaro disparou: “Quando a saliva acaba, tem que ter pólvora”, em uma velada ameaça à maior potência mundial.

A “lei” da saliva e da pólvora marcou muitas gerações do Brasil pré-internet. Até a primeira metade dos anos 1990, ainda era possível ver cidadãos comuns a andar faceiros com armas na cintura, geralmente os valentões do pedaço. Quando se retrocede um pouco mais na história, a incidência aumenta. Revólveres, garruchas e espingardas eram elementos presentes na cultura do homem sertanejo, seja na caça ou até para a proteção, em áreas rurais distantes da vigilância das frágeis forças policiais. Esta ainda persiste até os dias atuais.

Para boa parte da geração nascida no final do século passado, as armas estão presentes apenas nas histórias contadas pelos mais velhos. Nas reuniões familiares mais saudosistas, há sempre um parente a lembrar que os rincões eram terras de coronéis; mandava quem tinha mais dinheiro e armas.

Uma das figuras mais icônicas da região era o usineiro Serafim Meneghel, dirigente do extinto clube União Bandeirante, de Bandeirantes, no Norte Pioneiro do Paraná, que morreu aos 88 anos, em novembro do ano passado. Entre histórias e causos, reza a lenda que teria dado um tiro na bola para intimidar o juiz e evitar a marcação de um pênalti contra seu time. Perfil publicado na revista Veja, em 1993 estampou: “Ele resolve tudo com seu Smith & Wesson 38”.

O maior rigor no controle das armas do final do século passado, de certa forma, pode ser considerado mais um ponto de ruptura nos padrões comportamentais da sociedade brasileira, que a tornaram mais complexa. De um lado, os que consideram fraca e mimada a geração que vem por aí, e, de outro, o jovem cancelador com suas certezas absolutas. Nesta e em outras relações antagônicas e conflituosas, há momentos em que é preciso baixar as armas e dialogar.