48 anos do HU: na luta pela saúde
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sábado, 31 de agosto de 2019
Viviani Costa - Grupo Folha
A Kombi parada em frente ao pronto-socorro municipal no imóvel que atualmente abriga a sede da Cohab-Ld (Companhia de Habitação de Londrina) retrata o início dos trabalhos do hospital-escola da UEL (Universidade Estadual de Londrina) que se tornou referência no Sul do País. Em 1º de agosto de 1971, o HU ocupou o prédio cedido pela Sociedade Evangélica de Londrina na rua Pernambuco, esquina com a Alagoas, região central da cidade.

O espaço ficou pequeno em razão do número de atendimentos. Improvisos na estrutura física evidenciaram a urgência por novas instalações. Quatro anos depois, em 1975, os atendimentos foram transferidos para o Sanatório Noel Nutels, com estrutura criada na zona leste da cidade para o tratamento de pessoas diagnosticadas com tuberculose. De lá para cá, foram mais de 2,4 milhões de atendimentos apenas no pronto-socorro, sem levar em conta as demais alas do hospital. No total, foram realizadas 4,3 milhões de consultas ambulatoriais e mais de 400 mil internações.

Quatro profissionais que fazem parte dessa história foram convidados a relembrar momentos vividos no Hospital Universitário.
DO SANATÓRIO AO HU
A tesoura e a calculadora usadas por Ana Rocker são guardadas como relíquias pela equipe administrativa do HU. Os objetos viraram símbolo da dedicação e do esforço com que a pioneira atuou antes mesmo do início do hospital. Rocker foi do sanatório ao HU sem pestanejar. A caçula de 11 irmãos saiu de um distrito rural de Braço do Norte (SC) em busca de uma sala de aula. Estudar era um sonho distante para a família que vivia no sítio. O desejo foi realizado aos poucos em colégios de freiras.


Rocker e uma irmã que já morava na Lapa (Região Metropolitana de Curitiba) foram convidadas a integrar uma comitiva criada para a implantação do Sanatório Noel Nutels, em Londrina. “O diretor do sanatório da Lapa era também o chefe da Divisão de Profilaxia de Tuberculose no Paraná. Ele viajava sempre para Londrina. Por aqui, o sanatório foi inaugurado em 6 de março de 1967”, recorda. Um grupo de irmãs claretianas atuou junto a equipe.

“Na época de inauguração do sanatório, o prédio era cercado de sítios. Já tinha a Vila Operária, o bairro Cervejaria e os barracões do IBC [Instituto Brasileiro do Café]. O asfalto ia até o Lar Anália Franco. De lá até aqui era um barro só. Nos dias de chuva, o ônibus parava por lá mesmo. A gente seguia a pé”, conta.
Em 1975, o HU passou a ocupar boa parte do local que antes abrigava apenas o sanatório. Com o passar dos anos, o hospital ganhou anexos para a ampliação do número de atendimentos e de especialidades. De acordo com a assessoria de imprensa, a quantidade de internações, por exemplo, saltou de 4.228 (em 1975) para 13.986 (em 2018). Em 1976, Rocker, que já era servidora pública, foi aprovada em um concurso realizado pela UEL e deu continuidade aos trabalhos no hospital.
A auxiliar de escritório, tesoureira, encarregada de seção, chefe da divisão de serviços administrativos, diretora administrativa e assessora técnica da superintendência vivenciou mais de 40 anos da rotina do sanatório e do hospital. A entrevista no HU foi concedida entre um abraço e outro de integrantes da equipe que, aos poucos, recebiam a notícia de que a ‘dona Ana do HU’, como era conhecida, estava no prédio.
“Tenho muito amor por esse hospital. Nós sempre trabalhamos muito aqui. Foi um crescimento ano a ano, mês a mês. A cada dia um desafio, mas o sentimento de equipe sempre foi muito forte nesse hospital. É como se aqui funcionassem várias empresas grandes e é preciso entender e exaltar a importância de cada um que atua nesse hospital. Todos, sem exceção, têm sua importância”, frisa.
Na UEL, Rocker cursou Ciências Contábeis e duas especializações. Ela se aposentou em 2007 após o nascimento da segunda neta. “Quando parei, parecia que tinha perdido parte da minha identidade. Aqui sempre foi tudo muito desafiador, mas muito gratificante”, resume.
VIDA E MORTE NOS LEITOS
O choro ouvido em um dos corredores do HU é de quem acaba de nascer. Durante 48 anos, 62 mil bebês conheceram o mundo a partir do Hospital Universitário de Londrina. O total se aproxima da estimativa populacional divulgada nesta semana pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para a cidade de Rolândia, 66.580 habitantes.
Nos últimos 18 anos, muitas dessas mães receberam os cuidados da enfermeira Maria José Teles de Oliveira que trabalha na maternidade do HU. Ao todo, são 39 anos de atividades no hospital iniciadas no setor de tisiologia voltado para o atendimento de pacientes com tuberculose. Tempos depois, a profissional foi transferida para o setor de pediatria.

“Ver a primeira criança entubada foi muito marcante. Teve outro caso de uma criança transferida para a UTI de Adultos e que acabou morrendo... Na época, não havia UTI pediátrica. Só UTI de Adultos”, lembra.
Já na maternidade, a partir de 1980, a enfermeira acompanhou diversas situações críticas. O hospital se tornou referência no atendimento a gestantes de alto risco. “Um caso que lembro sempre é de uma menina de 13 anos que teve infecção urinária. Ela ficou muito mal, foi para a UTI, foi entubada e depois voltou aqui para ter o bebê com a gente. Ela já estava grávida. Outra paciente, de 12 anos, fez parto normal e estava sozinha, sem acompanhante”, lamenta.
O crescimento de prematuros que nascem com apenas 400 gramas, a recuperação das mães no pós-parto e as cartas e visitas em agradecimento fortalecem a união da equipe. “Tenho amigos aqui que são mais que irmãos. A gente vira uma família, passa muito tempo do dia no hospital e precisa ser muito parceiro. Você pode até ser a melhor pessoa desse mundo. Sem a equipe, você não faz nada. Às vezes, a gente chora muito, mas depois toma um café e continua a lida. A gente sabe que vai enfrentar coisas difíceis. É um hospital. É uma maternidade de alto risco”, frisa.
Antes de concluir a entrevista, a enfermeira faz questão de exaltar a felicidade em encontrar mais negros entre os profissionais e os estudantes. “Hoje você vê que tem duas meninas ali, estudantes de medicina, negras. Quando eu entrei aqui, ninguém tinha esse perfil, nem de enfermagem. Fico feliz porque vejo que isso mudou. Sou negra e isso é representatividade! Ver estudantes negros de todas as áreas da saúde… Da medicina, da enfermagem, da fisioterapia… Isso me deixa muito feliz.”

A DITADURA DO SILÊNCIO
O Hospital Universitário foi inaugurado em plena Ditadura Militar. No governo de Emílio Garrastazu Médici, o hospital enfrentou um dos primeiros desafios: uma epidemia de meningite. “Nós éramos proibidos de falar nessa epidemia. Os militares não queriam que se falasse sobre isso porque iria depreciar a imagem do Brasil no exterior. O HU tinha apenas 39 leitos no Pronto-socorro. Com a meningite, a demanda ficou muito maior. Os casos aumentaram primeiro em São Paulo, depois rapidamente na região de Londrina e no Brasil como um todo”, revela o cirurgião pediátrico, Lucio Tedesco Marchese, primeiro diretor do pronto-socorro do HU.
Ainda em 1971, Marchese assumiu a superintendência do hospital, substituindo Humberto de Moraes Novaes. No primeiro ano de funcionamento do HU, o número de leitos aumentou de 39 para 150 em razão da epidemia. “Nós fomos atendendo como dava. Quando a meningite passou a afetar não só a população mais pobre, mas também a população de maior poder aquisitivo, houve então uma pressão no governo e tudo foi parar na imprensa. A vacinação começou em 1975, já no governo Ernesto Geisel”, lembra.

Um artigo escrito por integrantes do Departamento de Clínica Médica do Centro de Ciências da Saúde da UEL, publicado em 1979, aponta que foram registradas 689 internações no HU de pacientes com sintomas de meningite no período entre 1973 e 1975. Das 254 internações analisadas pelos profissionais entre 1972 e 1976, 26 pessoas morreram.

Marchese teve participação em fatos importantes do hospital como a realização do primeiro transplante de rim em 1973. “Construímos uma UTI em um galpão de madeira para fazer o primeiro transplante de rim do Sul do Brasil. O HU já tinha todas as bases para esse transplante, mas faltava a estrutura da UTI e o material cirúrgico vascular. O doutor Ascêncio Garcia Lopes [reitor da UEL] me mandou para São Paulo e disse o valor que podia gastar. Fui lá, comprei o material e trouxe debaixo do braço no avião. Não havia tempo para construir uma UTI. Construímos uma estrutura de alvenaria por dentro de um galpão de madeira ainda no prédio da Cohab e o transplante foi realizado”, conta. Um portador de insuficiência renal crônica recebeu o rim do próprio irmão e viveu por mais de 30 anos após a cirurgia.
Entre idas e vindas por razões políticas, o médico atuou diretamente no HU durante 42 anos e se aposentou em 2010. No ano seguinte, ainda trabalhou como voluntário no hospital que hoje possui 291 leitos. “Nós poderíamos ter um hospital universitário com 400 leitos. No início, foi feita uma comissão de licitação pela UEL. O mesmo projetista do campus universitário planejou um hospital com, aproximadamente, 400 leitos, com área de 80 mil a 100 mil metros quadrados de construção, completo e todo equipado. Era onde está o Hospital das Clínicas hoje. Foi feita a licitação e duas concorrentes participaram e apresentaram preços bem distintos. Demos um parecer pelo menor preço”, detalha.
“No dia seguinte, representantes de um dos consórcios internacionais que participou da licitação me procuraram dizendo que souberam do resultado antes da publicação oficial. Uma semana depois veio o diretor-geral do consórcio na América. Ele falou: ‘Vou ser objetivo. Nós perdemos aqui e ganhamos em três cidades [em São Paulo]. Já tem verba definida para os quatro hospitais [incluindo Londrina]. Se nós não ganharmos, o hospital daqui não sai’. Eu perguntei: ‘Como não sai se nós temos a licitação e temos a verba?’. Ele repetiu: ‘Se nós não ganharmos, não vai sair’. Depois ainda falou claramente: ‘Estamos dispostos a colaborar com 4% em Londrina’. Expulsei ele da minha sala e o hospital não saiu. Os outros hospitais ficaram muito bonitos... É o preço que se paga pela honestidade aqui nesse país”, conclui.
APRENDIZES EM CAMPO
O hospital-escola da Universidade Estadual de Londrina conta com o reforço de estudantes da graduação e pós-graduação na área da saúde que atuam de forma direta no atendimento aos pacientes. O infectologista Jan Walter Stegmann, servidor há 34 anos no HU, iniciou o curso de Medicina na UEL em 1973. “A primeira vez que fui ao HU foi em 1975. Nós fazíamos a aula de introdução à clínica no prédio do sanatório”, afirma.


Um episódio inusitado permanece fresco na memória do então estudante. “Quando eu ainda era interno, no final do curso, um colega da minha turma que jogava futebol marcou uma partida contra pacientes com tuberculose. Ele era interno na tisiologia. Foi tudo no improviso, mas todos chegaram uniformizados. Ganhamos de 12 a 1. Deixamos eles fazerem um gol. Os pacientes se animaram muito. Ficavam muito tempo em isolamento”, lembra Stegmann.

Após a formatura, o médico retornou ao HU em 1981 para cursar residência. O infectologista trabalhou como plantonista no pronto-socorro logo depois de ser aprovado em concurso público. “A estrutura é a mesma. Antigamente, os funcionários todos eram de carreira. Hoje tem muitos terceirizados. Havia uma união muito grande entre funcionários, médicos e docentes já naquela época”, relata. Stegmann se divide hoje entre os plantões no pronto-socorro e as atividades nos ambulatórios de Aids e de Hepatites no campus da UEL.
Antes da implantação do SUS (Sistema Único de Saúde) no final da década de 1980, o especialista conta que o Hospital Universitário atendia apenas pacientes vinculados ao Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural) e indigentes. O aumento da demanda, porém, não acompanhou os investimentos.
“A medicina mudou muito nesses 30 anos. Infelizmente, houve por parte dos governos um descaso com a saúde. O HU já sofre cronicamente com a superlotação e a situação está piorando cada vez mais. No começo havia pacientes em macas, mas não tanto quanto hoje”, critica.
“O sentimento é de tristeza. A saúde pública, não só o HU, deteriorou. A gente nota um empenho grande dos residentes e funcionários, mas muitas vezes eles trabalham em condições adversas… Enfermeiros, médicos, residentes e docentes. O fato de ser um hospital-escola é uma das coisas boas. É um hospital que tem uma tecnologia avançada, recursos de exames, bons laboratórios, radiologia e excelentes profissionais em todas as áreas extremamente dedicados. Mas, este ano mesmo, tivemos problemas com o pagamento da bolsa-auxílio dos residentes. A questão foi resolvida até dezembro. Mas e no ano que vem? Sem residentes o HU para”, finaliza. O hospital acumula deficit de, aproximadamente, 600 funcionários.
*Agradecimentos:
Hospital Universitário, Museu Histórico de Londrina e Eduel (Editora da Universidade Estadual de Londrina)

