Enquanto reitores, docentes e estudantes de instituições de ensino superior públicas do País ainda não sabem quando poderão retomar as atividades nas salas de aula e laboratórios, uma experiência forçada pela pandemia de Covid-19 ao longo do ano deverá impactar a universidade pública para sempre. Com o ensino remoto emergencial, uma avaliação mais concreta e local sobre avanços e prejuízos à aprendizagem dos estudantes de graduação poderá ser realizada. Entretanto, a migração para uma modalidade de ensino híbrido na universidade pública, o chamado B-Learning (sigla para blended-learning) em países como Portugal e Estados Unidos, já era considerada uma questão de tempo muito antes da chegada do vírus Covid-19.

Conforme um relatório da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais), 80% das federais aderiram ao ensino remoto emergencial, caminho também adotado nas estaduais. Na UEL (Universidade Estadual de Londrina), as discussões sobre a retomada do calendário acadêmico de forma virtual foram acaloradas devido ao possível risco de cerceamento do direito à educação de uma parcela de estudantes, excluídos digitalmente. Em seguida, tiveram início políticas de inclusão a partir da doação de equipamentos e aquisição de pacotes de internet. Porém, o cenário é ainda longe do ideal especialmente para alunos indígenas ou excluídos do processo de letramento digital. O consenso na comunidade acadêmica se materializa na metáfora repetida à exaustão em reuniões e entrevistas, de que a instituição é um "veículo que precisa trocar os pneus em movimento", dizem.

Imagem ilustrativa da imagem 'Vamos caminhar para um ensino híbrido'
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Em novembro, docentes e alunos do Departamento de Educação puderam participar de uma pesquisa conduzida pelo projeto OLAF (Online Learning and Fun), da Open University de Londres e que tem como colaboradora a professora Diene Eire de Mello. Pós-doutora em Educação com foco em e-learning pela Universidade Aberta de Portugal, doutora em Educação pela UEM (Universidade Estadual de Maringá) e mestre em Tecnologia pela UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná), a pedagoga vem pesquisando um fator que considera fundamental na aprendizagem: o prazer. À frente de pesquisas na área há pelo menos dez anos, a docente acredita que o modelo de ensino remoto que vem sendo praticado no Brasil pelo setor privado não deve ser um parâmetro de comparação em discussões sobre as possibilidades trazidas com o ensino híbrido na educação superior pública.

Quais são os desafios para que no ensino híbrido não se reproduza essa lógica do ensino tradicional do professor ser apenas um expositor de informações, para que ocorra a busca pelo prazer na aprendizagem?

Não vamos conseguir fazer essa mudança brusca da noite para o dia e eu também não gosto muito dessa crítica à escola como se a culpa fosse exatamente daquele professor que está lá. Temos que olhar uma perspectiva. A perspectiva que eu trabalho que é do materialismo histórico-dialético, que quer dizer que existe uma condição, um material histórico do contexto na qual esse professor aprendeu e foi ensinado a ser professor em determinada instituição que tem um papel social. Da noite para o dia ele é cobrado para dar esse conteúdo e talvez ele não tenha sido preparado adequadamente porque as instituições que formam professores também vêm na mesma esteira. Eu penso que o vem aí pela frente, que acreditamos que vai ser mesmo o ensino híbrido, ou B-Learning, é o grande desafio. Eu poderia citar vários desafios, mas o principal é a cultura. Para você utilizar adequadamente toda a potencialidade da rede, você precisa ser preparado para isso. Penso que a cultura do digital nas práticas docentes não foi ainda incorporada. Há uma diferença muito grande entre o uso para si e o uso pedagógico. Estamos falhando enquanto formadores de professores para lidar com esse contexto, que não tem relação com a pandemia, porque as tecnologias estão aí. O desafio de formar professores é enorme e o outro é termos infraestrutura adequada. Na pandemia percebemos o quanto estamos atrasados. Não tivemos uma gerência do Ministério da Educação para dar um norte. Temos escassez de um aparato tecnológico para a população, mas tem coisas mais simples que chegam à população, mas ficam esquecidas.

Quais práticas positivas merecem destaque?

Em uma universidade da Bahia eles fizeram uma formação para os professores e criaram um banco de monitoria com estudantes de graduação. O monitor de graduação ajuda o professor com todas estas questões da tecnologia. Esse aluno recebia como se fosse um bolsista de extensão, ganhava um valor mínimo, mas contava carga horária e essa experiência tem sido muito rica. E no curso de Design da UEL eles conseguiram colocar um monitor para cada disciplina apoiando o professor. Porque às vezes você tem um professor que é muito bom no conteúdo, mas talvez ele nunca tenha trabalhado com nenhuma plataforma on-line.

Em relação aos alunos mais vulneráveis, que acabam passando por esse processo de negação do direito de participação em várias etapas, por conta de problemas que vão desde a falta de equipamentos e conexão até ao "letramento digital", como não aumentar ainda a distância entre os que já "voam" sozinhos e os que precisam de mais apoio?

Esse aspecto é muito importante. Deve ser um direito de todos. Participei de muitos debates e essa questão da exclusão, realmente, é importante. Se não tivermos um projeto, vai excluir aqueles que não têm tanto um dispositivo quanto a conectividade. Se você quiser implementar, precisa cuidar disso também. Mas quando eu digo que "o ensino remoto é excludente", deixemos de olhar um pouco o ensino remoto e olhemos a universidade pública. Na minha opinião, a própria universidade pública é excludente e talvez nós tenhamos naturalizado isso. Porque se eu tenho um vestibular que tem 21 mil pessoas que fazem a prova e só duas mil entram, ela já começa a ser excludente aí. Talvez sejamos um dos últimos países da América Latina a fazer o vestibular.

Como a sra. defende que seja o ingresso?

Pra mim deveria ser um direito. Você precisou fazer prova para entrar no Ensino Médio? Não é um direito? Talvez você devesse ter prova para ter um score para ir para o curso que você quer. Então acho que o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) caminharia para essa dinâmica. Mas, como os governos não querem mais investir nas universidades públicas, seja nas federais ou nas estaduais, muito pelo contrário, eles estão sucateando as universidades, então temos uma demanda que as universidades não dão conta. Então ela é excludente quando deixa 18 mil todo o ano para trás. Aqui na América Latina existem sistemáticas diferentes. A minha perspectiva teórica é olhar a totalidade, então não venha me dizer que o problema é o ensino remoto e que o aluno não tem prazer porque a aula é remota, porque já tínhamos esses dados antes. Eu torço para que todos entrem para a universidade, tenham prazer em aprender, que as avaliações sejam mais inclusivas do que excludentes. Percebe que toda a dinâmica da escola é meio que uma linha de produção? Essa é uma coisa que precisávamos reinventar, talvez essa seja a questão do prazer. São coisas para pensarmos que vão além do ensino remoto. É que o ensino remoto escancarou algumas coisas, deu visibilidade para a nossa falta de equipamentos, à escassez de formação de professores, aos alunos que estão em bolsões de pobreza e que não têm seus direitos assistidos.

Em quanto tempo teremos um ensino híbrido mais consolidado?

Vamos caminhar para um híbrido, isso é fato, mas precisamos discutir que tipo de híbrido. A discussão que eu faço no campo da educação on-line é que você utilizar a plataforma para enviar material, não ter comunicação, diálogo, momentos assíncronos e acolhida, isso não é híbrido. É envio de material que posso enviar por e-mail. Transferimos para o ensino remoto esse ranço e esse preconceito com a EaD (educação a distância), porque a EAD no Brasil já começa errada, como mercadoria. Hoje está 90% nas mãos das privadas e as privadas podem ser boas. Mas, a partir do momento que eu coloco o professor que dá aulas e não tem contato com os alunos, aí tenho um tutor daqui e outro dali. Esses dias uma aluna disse que tinha 300 TCCs para corrigir. O que é isso? Assim é um engano, ela não terá condições de fazer mediações pedagógicas. Temos uma diferença muito grande entre o que é EAD no Brasil e o que é EAD no mundo. Quando abriu essa possibilidade, a partir da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 9.394/1996), da abertura do ensino a distância, as públicas não tinham condições e as privadas correram na frente.

É isso que explica essa resistência de muitos?

Exatamente. Isso está no imaginário da população, essa coisa que é mal feita, de segunda linha. Porque no nosso modelo de EAD temos um professor conteudista, quem faz o material, o que dá aula e o outro que tem contato com o aluno, é uma fragmentação do trabalho docente. Por quê? Voltamos no problema anterior, há uma demanda reprimida, as pessoas precisam desse diploma para entrar no mercado de trabalho e compram esse curso. Vejo esses aspectos que ultrapassam as questões pedagógicas. Eu não sei quanto tempo, mas acho que estamos caminhando. Mas vou ser bem sincera, vi muita gente aprendendo este ano, muitos professores que querem fazer.

Como funciona esse modelo que se desenha?

Estou atuando há dez anos e sempre fui muito ridicularizada por tentar estudar uma coisa de “segunda linha” porque as pessoas não entendem a dinâmica e perceberam como é complicado e dá mais trabalho. O nível de planejamento precisa ser muito superior. Um dos problemas é transformar a aula síncrona na sala de aula desse professor. Isso é uma transposição da pior espécie. Temos que entender que a pessoa está na sua casa, em outro tempo, espaço, tem a família ali com ela, principalmente em um momento como esse de pandemia. O aluno já recebeu o material, ele já leu, esse momento do síncrono não é para ser aula expositiva. É o momento de diálogo, participação. É que muitos professores dizem que os alunos não participam, não abrem as câmeras. Tive dias que não consegui terminar as aulas pois os alunos não paravam de falar. Depende de como você organiza isso. Mas se eu me coloco num pedestal, pensando numa universidade do século passado, de que o professor é o senhor do saber e o aluno não articula, eu estou naquela aula expositiva lá mesmo da época dos jesuítas. Não é fácil. Se você tem quatro horas por dia, não queira fazer agora quatro horas de aula. Acho que quando chegarmos num modelo, vamos ter uma dimensão maior, e confesso, não é fácil mudar a cabeça do aluno também. Porque ele tem um imaginário do que é a aula e qual é o papel do professor e mesmo assim nem sempre quer participar. O presencial deve ser o momento de articulação das ideias, da orientação focada, o que tem muito a ver com metodologias ativas, a sala de aula invertida, que já são algumas teorias. Mas não é fácil.

Como não imaginarmos que o distanciamento poderá fragilizar a formação humana desses alunos?

Acho que vamos ter que ter esse cuidado. Esse foi um ano para aprender sobre tudo isso. Mas também acho que tem a ver com a perspectiva de cada docente, porque também posso estar na sala de aula e ter relações desumanas, nunca olhar para o meu aluno. Uma coisa que senti muito é que no ensino remoto, apesar de todas as fragilidades, conseguimos estar juntos. É uma coisa que precisamos cuidar e não é fácil. Mas conheço professores que estão se lixando com a vida dos alunos. Tive duas turmas de primeiro ano esse ano e fazíamos um sarau um pouco antes das aulas. Tinha aluno que tocava piano, escrevia poesia e era um momento para as pessoas se sentirem parte. É possível humanizar esse espaço, dar abraços virtuais e criar essa acolhida.