Quando a Lei de Segurança Nacional foi sancionada, em 1983, o filho “zero dois” do atual presidente Jair Bolsonaro, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos/RJ), mal havia completado o seu primeiro ano de vida. Já o youtuber Felipe Neto, acusado por ele de ter difamado o presidente ao chamá-lo de “genocida” com base na LSN nasceria somente cinco anos depois. Também em 1988, a Constituição Federal ficaria responsável por garantir a ordem, a democracia e o estado democrático de direito no País, trazendo garantias individuais, de liberdade de expressão e de manifestação, especialmente se forem endereçadas à gestão de políticas e programas de governo que servirão à própria sociedade. Embora tenha deixado de recepcionar a imputação de um crime contra um presidente da República como atentado à ordem, a Constituição Federal estabeleceu parâmetros para evitar a incitação do ódio e da violência ao mesmo tempo em que a Lei de Segurança Nacional não foi revogada.

Imagem ilustrativa da imagem 'Trazer a Lei de Segurança Nacional à tona tem muito a ver com o momento'
| Foto: Beto Barata/PR

O recente episódio envolvendo o “trio” Carlos Bolsonaro, Felipe Neto e a Lei de Segurança Nacional não serviu apenas para escancarar o vertiginoso crescimento no número de inquéritos abertos com base na LSN, cerca de 285% a mais nos dois primeiros anos de governo, revelou relatório apresentado pelo senador Cid Gomes (PDT-CE) ao Senado. Segundo ele, a maioria pelos chamados “delitos de opinião”. Antes um levantamento da Folha de São Paulo já havia mostrado que 18 inquéritos com base na lei foram abertos em 2018, 26 em 2019 e 51 no ano passado. Mais do que isso, o caldeirão de acontecimentos acerca do tema na última semana fez aumentar a pressão sobre o STF (Supremo Tribunal Federal) para uma resposta como a declaração de inconstitucionalidade sobre alguns artigos da lei.

Ao ser questionada sobre o tema, a AGU (Advocacia Geral da União) defendeu a validade da legislação dizendo que a LSN "mostra-se compatível com os direitos e preceitos fundamentais, inclusive com a liberdade de expressão", declarou. No entanto, a manifestação havia sido dada quando da invocação da LSN pelo STF para a prisão do deputado Daniel Silveira (PS-RJ) por ter ameaçado ministros e conclamado a instauração de um novo AI-5 (Ato Institucional nº 5), o mais duro instrumento de repressão aos opositores da ditadura militar. Ainda nesta semana, partidos de oposição ao governo Bolsonaro protocolaram uma ação conjunta contra a Lei de Segurança Nacional e cuja relatoria ficará sob responsabilidade do ministro Gilmar Mendes.

Para a professora de Direito Processual Penal da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e doutora em Direito, Clara Maria Roman Borges, a retomada da lei que remete ao período da ditadura militar é anterior ao governo de Jair Bolsonaro. No entanto, considera sua frequente utilização como mais uma característica do atual e conturbado período que o Brasil atravessa e flerta a todo o tempo com o seu próprio passado. Clara Maria Roman Borges é mestre e doutora em Direito pela UFPR e é pesquisadora convidada do Max-Planck Institute für europäische Rechtsgeschichte.

O que pode configurar um atentado à segurança nacional?

São vários crimes descritos nesta lei, mas basicamente esses crimes dizem respeito a atentados contra o estado democrático de direito, tanto no sentido externo quanto interno. Ou seja, quando se quer subverter essa ordem democrática e isso pode ser atacando territórios, a própria soberania. Vai depender muito da situação.

Houve a promulgação da Constituição Federal e nem todos artigos da LSN foram recebidos. Por que até hoje a LSN está em vigor?

Acredito que ela já deveria ter sido reformulada. Lógico que algumas condutas que estão ali tipificadas são atentatórias e têm que ser punidas, sem a menor dúvida, mas deveria ser reformulada e não foi. No Brasil tem muita coisa que é anterior à Constituição e continua vigente. Um exemplo clássico é o Código de Processo Penal, de 1941. Lógico que ele já sofreu uma série de mudanças e, principalmente com o Pacote Anticrime, tivemos uma reforma bem importante, mas é a mesma lei. Não foi feito um processo no sentido de constitucionalização de todas as leis que estavam vigentes, ou seja, de análise mesmo, se elas foram recepcionadas ou não pela CF. Elas foram sendo aplicadas e foi sendo declarada, eventualmente, a inconstitucionalidade, mas não foi feito um repensar dos motivos de existência desta ou aquela lei, por que ela está lá e quando deve ser aplicada. Aí é culpa do legislador, não vejo outro culpado.

Como a sra. avalia a utilização da Lei de Segurança Nacional pelo STF contra um deputado e a invocação dela pelo governo do presidente Bolsonaro contra pessoas que o criticam?

Acredito que essa lei veio à tona, foi retomada, no governo Dilma [Rousseff] com aquelas manifestações todas, na época da Copa do Mundo. Começaram a retomar esta lei, acharam que era algo interessante, porque ela ficou esquecida durante muito tempo, não era algo que era invocado. Ela ficou na gaveta durante muitos anos. Agora, tanto o presidente quando os inimigos do presidente invocam essa lei. O próprio STF naquele caso do atentado com fogos de artifício também. É um fenômeno meio recente, eu diria, porque ela ficou engavetada durante muitos anos e era difícil aplicar e agora qualquer coisa eles querem aplicar. Porque é uma lei que tem penas altas. Você tem tipos penais de um a quatro anos. Não é pouca coisa e essa pena ainda é uma das mais baixas.

Seria mais pelo “espírito” dos tempos atuais?

Acredito que resolveram invocar essa lei muito para chamarem a atenção. Porque se você traz a calúnia, injúria e difamação para o direito penal comum, isso é esquecido porque é um crime menor. Todo mundo acha que nem deveria ser crime e acho que estamos em um momento muito conservador, de restrições de liberdade de expressão. Por um lado, eu entendo, porque temos visto abusos por parte do governo, dos seus seguidores, você vê do presidente Jair Bolsonaro coisas absurdas. É lógico que isso atenta contra a democracia, ou seja, eles vão pressionar e coagir o STF e ameaçar os seus ministros, isso é muito sério. Mas, ao mesmo tempo, ou seja, quando você usa a LSN contra esses fatos, você está dizendo que eles podem também usar quando nós nos manifestarmos e chamarmos o presidente da genocida, ou coisa que o valha. Quando você invoca essa lei e você começa a achar que ela é aplicável, ela é aplicável em qualquer situação que se encaixe no tipo penal. Trazer essa lei à tona veio muito por esse momento, por essa onda conservadora que vivemos, com restrições de liberdade de expressão que acontece dos dois lados. Lógico que o que o presidente está fazendo é muito mais sério porque ele ocupa um cargo muito mais importante. Ele deveria estar no comando da nação, liderando a vacinação e a proteção e não está fazendo isso, então as pessoas se revoltam. Mas vejo que a aplicação da lei está tanto de um lado quanto do outro sendo aceita, sendo naturalizada, e é em decorrência desse momento conservador que a gente vive. Ainda que eu ache que existe limite para tudo, não sei se a aplicação dessa lei é o mais adequado. Tanto existem limites que eles estão postos. Não se pode fazer apologia ao nazismo, proferir palavras e incitar a discriminação. Isso tudo tem que existir, mas a aplicação de uma lei da ditadura militar, que servia para calar opositores, a aplicação e a invocação dela são muito graves. Significa você trazer um passado ditatorial, conservador e opressor. Não acho que seja o caminho mais adequado para combater os excessos, nem de um lado nem de outro.

Há um pedido de investigação de suposto abuso de autoridade do então ministro da Justiça, André Mendonça. Nesses casos, se comprovado o abuso, é ele quem deveria responder? O retorno dele para a AGU seria relevante nesta discussão?

Teria que ver quem realmente aplicou essa lei de forma indevida. O abuso de autoridade seria em decorrência da aplicação dessa lei de forma indevida, abusando da sua função. Se foi o ministro, é ele sim, abuso de autoridade é um crime. E se foi a mando do presidente, não interessa. Ele como ministro tem o direito de não obedecer a ordens que são ilegais. É uma das poucas situações em que ele pode se rebelar. Salvo na esfera militar, na esfera civil qualquer servidor público pode dizer “não” para ordens ilegais e sustentar o seu posicionamento. Lógico que teria que provar que o presidente deu essa ordem, aí ele poderia responder junto. É a velha história do nazismo. Todo aquele pessoal que buscou a absolvição dos crimes disse que estava cumprindo ordens. Não, eles estavam matando gente, não estavam "só cumprindo ordens". E os crimes que ele eventualmente tenha praticado como ministro não mudam. Se considerarmos a competência para julgar os crimes dos ministros, vamos chegar ao STF e se analisarmos a competência para julgar advogado da União, também vamos chegar ao STF. Então não muda muito em relação à continuidade das investigações, não vejo nenhum óbice nisso.

Por outro lado, a AGU disse ao STF que a lei é constitucional e pediu que a corte rejeite ações contrárias à LSN.

Enquanto ninguém declarar a inconstitucionalidade dela, ela é constitucional. Aí dependerá de uma atuação judicial ou do Congresso. Por exemplo, essa iniciativa no sentido de revisão da lei, eles podem? Podem. Mas o Judiciário pode declarar a inconstitucionalidade tanto no caso concreto quanto no nível do STF para todas as esferas. Mas, lógico, tem que ser provocado para isso.

O ministro do STF Gilmar Mendes já recebeu pedidos de revogação de alguns trechos. Qual é a sua expectativa sobre esse julgamento?

É tudo muito imprevisível. Lógico que o que temos notado é uma postura do Poder Judiciário numa reação às restrições de direitos que têm ocorrido e, principalmente, nestas políticas governamentais que têm cerceado direitos. Então eles estão reagindo e não só o STF, o STJ [Superior Tribunal de Justiça] também. Quando você tem essas políticas que são absurdas, que restringem direitos, especialmente das minorias, você tem uma atuação destes tribunais cada vez mais garantista. É isso que temos assistido porque nem eram tão garantistas assim. É uma reação a esse contexto que vivemos. Talvez nesse caso, o STF decida pela não aplicação indiscriminada da LSN, declare alguns dispositivos inconstitucionais. Porque tem alguns que eu acredito que não precisa declarar inconstitucional, são coisas bem sérias. Situações em que o sujeito incita a violência através de grupos armados, entrar em negociação com governos ou grupos estrangeiros para provocar guerra ou atos de hostilidade contra o Brasil. Isso não precisa sair daqui.