Ao mesmo tempo em que vem sendo capaz de elucidar como se deram as negociações para a compra de imunizantes contra a Covid-19 no Ministério da Saúde, a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) formada no Senado pode ser considerada como mais um capítulo da história recente da política brasileira que precisa reverberar, uma vez que tem evidenciado a necessidade de aperfeiçoamento dos mecanismos de transparência acerca da relação entre agentes públicos e privados. Entretanto, mesmo tendo avançado e provocado a abertura de inquéritos pelo TCU (Tribunal de Contas da União) e PGR (Procuradoria-Geral da República), muitas idas e vindas deverão acontecer após o retorno do recesso parlamentar.

Carolina Venuto, presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais
Carolina Venuto, presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais | Foto: Abrig/Divulgação

Visando avançar com a pauta que regulamenta a atividade dos profissionais conhecidos no passado como "lobistas", a Abrig (Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais) vem almejando deixar para trás a imagem construída por lobistas denunciados em escândalos de corrupção.

Regulamentada em países da União Europeia, Estados Unidos e no Chile, a atividade dos profissionais de RIG, abreviatura para Relações Institucionais e Governamentais, ainda não encontra base legal no Brasil. O tema se arrasta há quase 40 anos e já foi alvo de 15 projetos. O mais avançado é de 2007.

Para a presidente da entidade, a advogada e profissional da área, Carolina Venuto, a ausência de uma regulamentação não impediu a categoria de buscar um amadurecimento a partir das experiências internacionais. Para ela, o segundo semestre deste ano poderá ser um "novo" bom momento para que o Poder Executivo, que possui cerca de 600 lobistas atuando em seu favor no Congresso, cumpra uma promessa feita no Plano Nacional de Combate à Corrupção e regulamente a atividade.

Por que a atividade ainda não foi regulamentada e o que prevê a proposta que está mais adiantada no Congresso?

De fato, a demora na regulamentação não é um privilégio do Brasil. É um tema muito complexo que envolve uma gama enorme de atores interessados, inclusive as autoridades públicas, então em todos os países do mundo onde já percebemos que há uma regulamentação, houve esta demora. No Brasil não foi diferente, o que, por um lado, não foi de todo ruim. Ainda não temos uma lei aprovada, mas avançamos muito nesta discussão. As propostas que tínhamos eram muito parelhas com o modelo norte-americano, o país mais antigo a ter uma regulamentação, e que depois se mostrou ineficiente e os próprios Estados Unidos reformaram essa regulamentação. Pudemos perceber a forma como foi feita a regulamentação na União Europeia, até mesmo no Chile, então hoje temos uma discussão muito mais madura. Inclusive, a própria categoria decidiu em assembleia geral pela defesa da regulamentação, então não há mais que se falar que os próprios profissionais não querem, temos isso muito transparente. Não só na Abrig, mas outras entidades importantes nesse debate, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), e outras que pensam a defesa de interesses, hoje já são tranquilas em ser favoráveis à regulamentação. Estamos, realmente, demorando. São muito assuntos, interesses envolvidos, mas pudemos evoluir nesta construção. Existem algumas propostas em tramitação no Congresso Nacional e também acompanhamos as discussões no Executivo Federal, onde sabemos que existem duas propostas sendo geridas. O que existe e consideramos mais avançado é o PL 1.202/07, do deputado Carlos Zaratini (PT-SP), que se encontra pronto para votação, já passou comissões de Trabalho e de Justiça, foi aprovado com maioria absoluta e é o texto que entendemos ser o mais avançado. Esse projeto aguarda votação e acreditamos que vamos conseguir avançar com ele no segundo semestre.

E o que ele prevê do ponto de vista da transparência e do controle social?

O PL 1.202 é o que entendemos ser o mais moderno porque ele não é um fim em si mesmo. Ele é um primeiro passo neste sentido e isso, inclusive, é a recomendação da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Não adianta fazermos uma lei carregada em burocracia porque isso só vai afastar pequenos profissionais da atividade, nem fazermos uma lei que não vamos conseguir cumprir. O principal fator deste texto é que ele coloca os pingos nos is. Ele diz quem é esse profissional de Relações Institucionais e Governamentais e isso é fundamental porque tem muita gente que confunde, por exemplo, o lobista com o representante comercial. Estamos até acompanhando essa discussão na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da pandemia. E lá no texto está bem claro que o lobista não vende nada para o Governo Federal, ele leva a informação qualificada para o tomador de decisões a partir do seu livre convencimento tomar a sua decisão. Existe uma diferença gigantesca entre esses dois profissionais. Além disso, também traz quais são as prerrogativas, o que ela pode fazer e como. Na questão da transparência, que é um princípio fundamental não só para a nossa segurança, mas para a segurança do agente público e da democracia de forma geral, o texto fala que precisamos solicitar as reuniões dizendo quem nós representamos e o assunto que vamos tratar. Isso precisa ser publicizado. O grande mérito do projeto é trazer essa moldura dessa atividade, dessa relação entre o setor público e privado sem impor burocracias, mas trazendo penalidades, como a suspensão do credenciamento daquele profissional que não sabe se comportar dentro de um local público, inclusive equiparando a aplicação de tipos penais ao agente público também ao agente privado. Então, é um texto bem redondinho e sem dúvidas contribuiria muito para o combate à corrupção no País.

A sra. acredita que seria razoável que houvesse uma diferenciação ou um cuidado ainda maior na questão da transparência no caso de profissionais que representam os setores bancário, energia elétrica, gás e água, justamente por serem muito abrangentes?

Um fator interessante que inclusive observamos em países da União Europeia que fizeram uma legislação mais recente sobre assunto é que o ônus da transparência e da publicidade deve recair sobre o agente público porque ele tem o múnus público. Então se a régua da transparência estiver no agente público ela tem que ser aplicada para todo mundo, o grande, o pequeno e o médio. E isso também é importante, observamos isso na UE, porque contribui com o enforcement. O que é isso? É ter um órgão controlador dessas atividades. Não adianta todo mundo divulgar suas agendas e essas divulgações não estarem centralizadas de uma forma capaz dos órgãos de controle fiscalizarem essa atuação. A publicização da transparência desta relação tem que ser uma obrigação, um múnus do agente público porque aí a régua fica igual para todo mundo.

Esses episódios que estão sendo divulgados na CPI da Covid sobre o oferecimento de vacinas aos agentes ligados ao Executivo teriam ocorrido de outra forma se o Brasil tivesse regulamentado a atividade?

Acredito que combate à corrupção é algo que não podemos abrir mão, relativizar, não é um probleminha. É uma meta que tem que ser perseguida por todos, não só pelo setor público, mas pelo privado também. Sem dúvidas, quando o país assume esse compromisso com o combate à corrupção, inclusive eu acho até interessante dizer que faço esse paralelo da regulamentação do lobby com o combate à corrupção não porque eu quero, mas porque o próprio Governo Federal, em outubro de 2020, lançou um Plano Nacional de Combate à Corrupção em que se comprometeu em apresentar até março de 2021 uma proposta de regulamentação do lobby e uma proposta de decreto de publicização das agendas das autoridades. Então, veja, se ele tivesse cumprido esse compromisso, teríamos muita clareza nas agendas realizadas da compra e venda de vacinas.

E olha que em dezembro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, agora reconduzido ao cargo, fez uma fala em defesa da regulamentação.

É, exatamente. Entendemos que a pandemia, de fato, foi a ordem do dia do último semestre, do último ano de forma geral. Sem dúvidas, muitas matérias importantes para o resgate não só da crise sanitária, mas da economia e da ordem social, muitos problemas eram prioridade. Por isso, acreditamos que o segundo semestre é a oportunidade que o governo tem de mostrar que é aliado na perseguição do combate à corrupção e comprometido com práticas mais transparentes na relação entre o setor público e o privado.

Através da Abrig, quais são as principais práticas que os associados precisam cumprir?

Fizemos o dever de casa também. Primeiro, temos um Código de Conduta que todos os profissionais que se associam a nossa entidade ficam vinculados. Temos um Conselho de Ética atuante e fortalecido, embora, graças a Deus nunca tivemos nenhuma crise neste sentido, mas temos este Conselho de Ética fortalecido. E, para além disso, desenvolvemos uma diretoria de capacitação porque entendemos que era nossa responsabilidade preparar estes profissionais para o mercado. E também lançamos no ano passado uma Prática Recomendada para a Atividade de Rig. Foi um projeto feito em parceria com a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), principal entidade de normalização das regras, e este documento foi realizado através de estudos comparados de legislações sobre o assunto no mundo inteiro, inclusive levando em consideração a legislação já existente no país, onde trouxemos quais são as formas mais seguras de se relacionar com o Poder Público. É um documento simples, de fácil compreensão, e hoje disseminamos não só para os nossos associados pessoas físicas, mas para os associados pessoas jurídicas, porque é a forma que entendemos ser mais segura, ética e íntegra de realizar a nossa atividade.

Se os deputados e senadores já representam interesses de determinados setores da sociedade, ou seja, os do seu eleitorado, então por que os profissionais de RIG são necessários?

É uma ótima pergunta porque é quase ilusório imaginarmos que um deputado saiba tudo sobre tudo em termos de legislação. Só para se ter uma ideia, por semana são aprovadas quatro novas leis no País. Por dia são publicados no Diário Oficial da União mais de 300 atos normativos. Então, quer dizer, é impossível alguém conhecer profundamente tudo e, por mais que um parlamentar represente um determinado setor, ele também precisa votar em assuntos que ele não compreende ou não foi eleito a partir deste setor. É importante que este profissional de RIG, capacitado para fazer esta articulação, que possui conhecimento técnico sobre o assunto e sobre o processo legislativo, como pode ser apresentado, quem tem competência para apresentar. Então é super importante para a democracia representativa que esse profissional tenha condições de levar o conhecimento técnico para esse tomador de decisões fazer o seu livre convencimento e votar. Ele pode até discordar do lobista, mas é importante que ele ouça e saiba como que aquela lei vai impactar naquele setor ou na sociedade. Não há que se falar em democracia representativa sem uma forte atuação dos profissionais de RIG de uma forma democrática, transparente e segura.

Folha de Londrina · ENTREVISTA | Regulamentar lobby é um caminho para a combate à corrupção