Pouco discutida com os mais amplos setores da sociedade civil, a regulamentação dos chamados Depósitos Voluntários Remunerados vem sendo apontada como um "presente" do Ministério da Economia às instituições que controlam o sistema financeiro nacional. Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em julho, a medida deverá trazer muito mais do que pontos de interrogação para quem ouve falar do tema. Afinal, algo que possui os termos “voluntário” e “remunerado” em sua definição dificilmente não estaria imbricado em um paradoxal jogo de interesses.

Imagem ilustrativa da imagem Remuneração ao sistema financeiro dificulta redução de juros, aponta especialista
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Apresentada na forma do projeto de lei 3.877/20, do senador Rogério Carvalho (PT/CE), a medida visava reduzir o uso das chamadas operações compromissadas, quando o Banco Central remunera a sobra de caixa dos bancos através da entrega de títulos da dívida pública. A sobra de caixa é o montante que pertence às pessoas físicas e jurídicas e que, por lei, precisa ser mantido no caixa dos bancos para evitar que o mesmo valor seja emprestado duas vezes.

Quando da chegada do projeto no Senado, o volume financeiro negociado através das operações compromissadas já havia alcançado R$ 1,6 trilhão, o que representava 25% do PIB (Produto Interno Bruto). Só para se ter uma ideia sobre o quanto essas operações foram banalizadas no Brasil, o segundo país do mundo com o maior volume negociado - Filipinas - atingiu apenas 3% do seu PIB.

Para o senador, a proposta ajudaria o Banco Central a controlar a inflação, causando menos impacto sobre a dívida pública. Entretanto, após receber emendas que resultaram na revogação de pontos da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), a medida passou a obrigar o BC a remunerar diariamente os bancos através da figura dos Depósitos Voluntários Remunerados sem estabelecer parâmetros para esta remuneração.

O mecanismo faz com que as maiores instituições financeiras do país fiquem à vontade para continuar cobrando as mais altas taxas de juros do mundo na hora de conceder crédito, o que resulta na "esterilização" da economia. É o que avalia a ex-auditora Fiscal da Receita Federal e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fatorelli.

“Afinal, por que oferecer taxas de juros mais convidativas às pessoas físicas e jurídicas se os bancos poderão, agora, ser remunerados com recursos do Tesouro Nacional ao enviarem o dinheiro que pertence aos seus clientes ao Banco Central?", questionou. Em entrevista à FOLHA, Fatorelli também aborda propostas trazidas na Reforma do Imposto de Renda.

Como o governo e parte da mídia “venderam” a proposta das operações compromissadas?

Essa remuneração da sobra de caixa dos bancos, a “bolsa banqueiro”, a Revista Exame só publicou visões de que aquela operação é muito importante, que vai ajudar o Banco Central a controlar a inflação, o que é uma mentira absurda. A inflação no Brasil decorre do preço da gasolina, da energia, dos alimentos, não tem absolutamente nada a ver com essa operação de esterilização de moeda. Então, de quem é a Exame? O Banco BTG Pactual comprou a Exame. É descarado esse negócio e acaba que a mídia não cumpre o seu papel de informar, acaba passando a visão do setor mais rico e que mais explora esse país. É importante que as pessoas tomem conhecimento porque estamos vivendo no avesso do Brasil que merecemos. Diante de toda a potencialidade do nosso país, era para estarmos em outro patamar de desenvolvimento, cuidando dessa natureza maravilhosa que temos aqui, com agricultura familiar em todo ou próximo ao polo urbano, garantindo alimentação de qualidade, boas escolas públicas, com esporte. Agora, quantos gênios estão sendo impedidos de expressar suas potencialidades por conta dessa injustiça social violenta que é aplicada e, não por acaso, decorre desses assuntos?

É a chamada “escolha pública”?

É uma escolha, uma opção de privilegiar. São trilhões de reais sugados da sociedade, que impedem que os empregos sejam gerados, que as pessoas tenham vida digna. O que está acontecendo com o Brasil? Um atraso brutal, dano ambiental, massacre social. Esse jogo tem que virar. Essa é, aliás, outra campanha que está em destaque na nossa página, com 24 vídeos curtos. As pessoas vão entender o modelo econômico errado que atua no Brasil, sustentado pelo sistema da dívida, que em vez de ser uma dívida que serve para investimento, suga dinheiro público para financiar esses mecanismos financeiros. Por exemplo, o mecanismo da remuneração da sobra de caixa dos bancos é financiado por dívida pública. É sustentado pelo modelo tributário injusto, pela política monetária suicida do Banco Central, com esses juros exorbitantes, enterrando a economia do Brasil. O mundo inteiro está com juro zero, negativo, e o BC aqui subindo juros injustificadamente.

Isso sob a justificativa de que a inadimplência no Brasil é muito alta. A sra. acha que é plausível?

Não, de forma alguma. A inadimplência no Brasil decorre das taxas abusivas de juros.

Então, para a sra., primeiro vêm as altas taxas e depois a inadimplência?

Exatamente, se fossem cobradas taxas normais, não existiria essa inadimplência. Então, eles colocam juros exorbitantes e, claro, as pessoas vão ter dificuldades para pagar. E mesmo nas estatísticas do próprio Banco Central, a inadimplência aqui no Brasil é considerada baixa. Então, não tem justificativa. O juro é alto, primeiro no Banco Central porque ele pratica deliberadamente uma política monetária suicida ao subir a Selic sem justificativa técnica. Ele fala que é para controlar inflação, mas a inflação decorre desses outros preços, combustível, alimentos. Eu te pergunto, subir juros vai fazer baixar o preço da gasolina, carne, arroz e verduras? Claro que não, é insano. Esse modelo econômico é projeto para amarrar o Brasil.

Bancos são capitalistas na hora de obter lucros e socialistas na hora de repartir a conta?

Exatamente. E, ainda, com isenção dos seus lucros. É uma injustiça brutal, por isso tem concentração de renda. O setor tem empréstimos beneficiados, não paga a conta, não paga tributo sobre lucro distribuído, depois joga a conta para a dívida pública, é benesse de todos os jeitos, tem incentivos fiscais. Com tudo isso, vamos somando e entendendo por que o Brasil é um país tão rico sob todos os aspectos e é um dos mais injustos. Estamos agora com mais da metade da população em situação de insegurança alimentar e eu não gosto desta expressão porque é sinônimo de fome. Olha a população de rua como tem aumentado, o desemprego, o desespero, o atraso socioeconômico. É revoltante e isso decorre destes privilégios de pouquíssimos. Tem uma tabela que está na página da Receita Federal que mostra que 26 mil pessoas aqui no Brasil recebem acima de 320 salários mínimos ao mês e quase não pagam imposto.

Sobre a taxação dos lucros proposta na Reforma do Imposto de Renda, seria interessante estipular uma faixa desse lucro para a tributação? Como seria interessante fazer essa distinção na lei?

Primeira coisa é acabar com a “pejotização” de quem não é pessoa jurídica, de quem é trabalhador. Se a pessoa é um trabalhador, ele tem que ser contratado como trabalhador. Para ter direito a férias, aposentadoria. Primeira coisa é resolver essa distorção. E aí, quem quer ser pessoa jurídica, está dizendo que é empresa, que vá buscar lucro e distribuir para os sócios. Agora empresa de um tem a Microempresa Individual. Para continuar isso, se não for enfrentada essa distorção, a solução é o que você falou, faixas. O substitutivo que foi apresentado no Congresso já prevê uma faixa de isenção para micro e pequenas empresas, mas em tese a isenção precisa ser revogada.

A sra. vê risco de haver cancelamento ou perdão de juros dos grandes devedores?

Infelizmente, não foram poucas as vezes que dívidas de grandes empresas, inclusive multinacionais, foram perdoadas. Inclusive pelo BNDES. Empréstimos já com juros beneficiados a grandes empresas foram cancelados várias vezes. Essa renegociação, em princípio, é uma coisa benéfica, porque, como falamos, o juro é extorsivo. Então quem contrai algum tipo de dívida, paga essa dívida várias vezes. Agora, precisa ver de quem estamos falando. Dívidas das pessoas? Das empresas? De que setor? Essa situação precisa ser olhada de forma muito criteriosa. Quando se fala de dívidas públicas, que é o nosso tema, o que vimos nas renegociações de dívidas públicas é contrário do que se aplica no setor privado. No setor privado, os sucessivos Refis, os programas de refinanciamento, invariavelmente, trouxeram alguma anistia, perdão. Quando vemos refinanciamento de dívida pública, vemos o contrário. Primeiro, dívidas privadas são transformadas em dívidas públicas. Os bancos não levam prejuízo. Este é um dos aspectos que precisa ser olhado neste refinanciamento que está sendo discutido: quem vai ficar no prejuízo, o setor bancário? Não, nunca é assim. Ou seja, um grande empresário tem um empréstimo, se beneficia dele, não paga, e depois isso é transformado em dívida pública e socializado com todos nós. E a dívida grande passa a ser justificativa para privatizações, contrarreformas. A sociedade é prejudicada mais uma vez.

Quem são as pessoas que elaboram e financiam a Auditoria Cidadã da Dívida?

Mais de 99% do nosso coletivo é de pessoas voluntárias. Sou voluntária há 21 anos. Se você entrar na nossa página, em “quem somos”, temos núcleos em quase todos os estados. Todos os coordenadores, todas as pessoas que atuam nos núcleos, são 100% voluntários. Temos uma secretaria mínima de pessoas contratadas, porque temos que ter alguém que leia os e-mails, que cuide da parte burocrática, site, faça algumas pesquisas, ao menos uma pessoa. Todo o restante, voluntários. Contamos com doações. Por exemplo, quando sou convidada para dar palestras, as pessoas perguntam qual é o meu honorário, mas eu não cobro. Eu digo, faça uma doação para garantir a manutenção da secretaria, quem pode, faz, quem não pode, eu faço a palestra do mesmo jeito. Recebemos muitas doações de pessoas físicas e só aceitamos doações de pessoas identificadas. E é impressionante, outro dia, recebemos uma doação de R$ 2 mil de uma senhora de Brasília. Eu cheguei a ligar para ela para agradecer. Ela falou que assistiu uma live nossa e disse que é isso que o Brasil precisa, e que queria contribuir com esse movimento. É impressionante quantas pessoas estão enxergando que o que falamos tem lógica, nexo e amparo em documentos. Só trabalhamos com dados oficiais. Se isso fosse levado a sério, modificaria completamente a situação do país.