Recentemente, haitianos tentavam se deslocar do Brasil para o Peru e foram impedidos na fronteira de fazer essa movimentação. Antes disso, na Colômbia, houve a aprovação por parte do governo do status de proteção de quase 1 milhão de migrantes sem documentos por até 10 anos. Assim como eles há muitas pessoas que tentam a sorte se deslocando entre os países.

Luiz Fernando Godinho, porta-voz da Acnur Brasil
Luiz Fernando Godinho, porta-voz da Acnur Brasil | Foto: Divulgação/Acnur Brasil

Segundo relatório de impacto elaborado pela Acnur (Agência das Nações ONU para Refugiados), cerca de 79,5 milhões de pessoas são forçadas a se deslocar ao redor do mundo, entre as quais 45,7 milhões de pessoas deslocadas dentro de seus próprios países. O planeta tem 26 milhões de pessoas refugiadas e 4,2 milhões de solicitantes da condição de pessoa refugiada. A agência calcula que 73% dos refugiados vivem em países vizinhos aos países de origem.

Alguns desses estados de acolhida são nações extremamente pobres que, ainda assim, abrigam um terço de todos os refugiados. A Acnur calcula que 68% de todos os refugiados saíram de apenas cinco países: Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar e que 40% dos refugiados do mundo são crianças. Diante desse quadro a reportagem da Folha conversou com Luiz Fernando Godinho, porta-voz da Acnur Brasil.

Imagem ilustrativa da imagem Refugiados buscam um lugar para chamar de lar
| Foto: Frepesil/TheNews2/Folhapress

Os refugiados ainda sofrem muito preconceito?

Eu acho que no Brasil a gente vê essa situação um pouco diferenciada. Parte do país tem um caráter mais cosmopolita e já convive com outras culturas, como é o caso de Londrina, que possui várias comunidades de outros países. Nesse caso a gente nota um menor grau em relação a isso. Já em locais mais isolados do país ou comunidades menos abastecidas, que passam por um processo de necessidade muito grande, muitas vezes as pessoas reagem de maneira diferente e não entendem o porquê dessas pessoas estarem lá. O Brasil como um todo é receptivo à população refugiada. Claro que a situação da Covid-19 tem exacerbado os ânimos e às vezes a gente nota um tom um pouco acima do normal. Mesmo assim a gente tem visto, por exemplo, o caso da chegada de refugiados da Venezuela. O Programa de Interiorização não foi interrompido, mesmo com a pandemia. Essas pessoas estão se integrando no Brasil e estão empregadas, tocando a vida delas. Infelizmente sempre vai ter questões de discriminação, mas são episódios pontuais, que às vezes tomam uma dimensão um pouco maior.

O sr. pode falar um pouco sobre o papel da Acnur nessa missão de ajudar migrantes e refugiados?

A Acnur tem um mandato voltado às pessoas que são reconhecidas como refugiadas, apátridas solicitantes da condição de refúgio e também aqueles que voluntariamente retornam aos seus locais de origem. O papel da Acnur é, antes de tudo, assegurar a correta implementação da Convenção da ONU de 1951 sobre refugiados e as condições também de apátridas. A Acnur pode prestar assistência humanitária direta e também acompanhando o trabalho dos governos e das autoridades no sentido de assegurar que as legislações nacionais sejam pautadas pela convenção internacional. E com isso permitam a proteção e assistência dessas pessoas no país.

Quais os programas que a Acnur mantém para ajudar essas pessoas?

Os programas são desenhados de acordo com as necessidades das pessoas. Em uma resposta de emergência você vai ter obviamente o que a gente chama de serviços essenciais que são o abrigamento, saúde, alimentação, atendimento emergencial psicológico. Existe uma série de questões que compõem o kit de atendimento emergencial que o Acnur provê ou diretamente ou por meio de seus parceiros.

Como é esse kit emergencial?

Hoje, no Brasil, a gente tem por exemplo a situação da chegada de refugiados e imigrantes da Venezuela no Norte do país. Ali está montada uma operação de emergência, ou seja, um atendimento emergencial inicial às pessoas, muitas das vezes em situação de grande vulnerabilidade. Atualmente a fronteira está fechada, mas a gente tem a presença de muitos venezuelanos e venezuelanas em Roraima. Muitos são abrigados e recebem documentação, encaminhamento dos casos mais emergentes de saúde e atendimento com orientação nos abrigos da Operação Acolhida. A Acnur trabalha não só fazendo um monitoramento de fronteira e apoiando no registro da documentação, mas também na gestão dos abrigos e até mesmo no programa de interiorização, que é um bom exemplo do que é desenvolvido e desenhado para uma necessidade específica. É uma estratégia do governo federal apoiada pelo Acnur que visa retirar pessoas venezuelanas do Norte do Brasil e levar para outras cidades do país, onde elas têm melhores condições de integração.

E como tem sido para custear todos os programas?

A Acnur é uma agência que depende exclusivamente de doações, seja dos países doadores, seja de indivíduos ou do setor privado. Apenas dois por cento do nosso orçamento vem das Nações Unidas, da Secretaria Geral das Nações Unidas. Noventa e oito por cento da nossa operação vem de doações. A Acnur tem unidades muito ativas de arrecadação de fundos tanto junto aos governos quanto ao setor privado ou aos indivíduos. É claro que a gente nunca consegue a totalidade desses recursos por uma série de razões. Outras agências também precisam de doações e infelizmente não é apenas a questão dos refugiados que exige uma ação humanitária por parte da comunidade internacional.

E quais são as políticas sobre refugiados que devem ser aprimoradas pelo Brasil e outros países que podem mudar a vida dessa população?

O Brasil tem uma legislação considerada muito avançada para a proteção de pessoas refugiadas. A lei brasileira assegura o reconhecimento da condição de refugiado, o acesso à documentação e a serviços como saúde e educação. Você pode ter CPF e carteira de trabalho. São ferramentas muito válidas para a integração dessas pessoas no país. Claro que a integração se dá de maneira mais rápida em momentos em que a economia está mais aquecida e na pandemia há uma redução dessas oportunidades de emprego. Mas a legislação brasileira em geral é muito positiva e obviamente que a Lei de Migração, que entrou em vigor em 2019, também foi bastante modernizada em relação ao antigo Estatuto do Estrangeiro que existia no Brasil.

Recentemente, aqui na América do Sul, a Colômbia aprovou que quase 1 milhão de migrantes sem documentos receberão status de proteção de até dez anos. O que essa medida representa para esse povo?

Essa medida foi extremamente parabenizada pelo Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi. Quando essa medida foi anunciada pelo governo, ele estava na Colômbia fazendo uma avaliação das necessidades humanitárias da população. A Acnur aplaudiu o gesto e considerou de extrema generosidade e um compromisso em assegurar a proteção daquelas pessoas que estão deslocadas. É uma decisão que serve como modelo de pragmatismo e de humanismo em relação a essa população.

Os refugiados venezuelanos que estão no Brasil estão regularizados, como já mencionado anteriormente. Em que eles diferem do caso colombiano?

Nessa questão da documentação. Como a gente sabe, o documento é uma questão importante para o dia a dia das pessoas. A Colômbia, por diferentes razões, possui um fluxo muito maior de refugiados do que o brasileiro e grande parte dessa população estava sem a documentação. Mais ou menos metade de um 1,7 milhão de venezuelanos que vivem na Colômbia não tinha qualquer status regular documental migratório. Isso afetava a habilidade deles de acessar serviços essenciais, serviços de proteção e assistência. No Brasil, desde a adoção da Operação Acolhida em 2018, há um sistema de controle fronteiriço, ou seja, todo mundo que entra no país é registrado e documentado. E essas pessoas quase que automaticamente solicitam o reconhecimento da condição de refugiado ou aplicam um visto de residência humanitária. Mas agora a fronteira está fechada por causa da Covid-19.

Em uma situação de pandemia muitos refugiados não têm acesso aos cuidados de saúde. Teve aquele caso do surto de sarampo no Norte do país e agora com a Covid-19 há também a preocupação dessas pessoas não terem acesso a muitos serviços de saúde. Como os governos podem ajudar as pessoas nessa situação?

Primeiro eu queria dizer que não há nenhuma evidência demonstrando que o surto de sarampo que houve no Brasil está associado à chegada de pessoas venezuelanas no país. O surto de sarampo foi resultado de um descuido da população brasileira em relação às campanhas de vacinação. No caso da população refugiada, o exemplo que nós temos é um pouco diferente do cenário da sua pergunta. Todas elas estão documentadas, sejam como solicitantes da condição de refugiado, sejam como refugiados já reconhecidos pelo governo brasileiro. Elas têm acesso a todos os serviços de saúde por força da legislação brasileira. No caso dos abrigos para os refugiados e migrantes da Venezuela, em Roraima foi construído um hospital de campanha com a Operação Acolhida, para cuidar dos casos de Covid-19 na população abrigada e também para as comunidades que não conseguiam ter acesso aos serviços de saúde do estado. No caso da Covid-19, não deixamos ninguém para trás. As mais vulneráveis receberam kits de higiene e limpeza. Também fizemos muitas campanhas de informação, não só de prevenção à Covid-19, mas também de acesso aos programas emergenciais do governo aos que se enquadraram nos critérios dos programas. No Brasil as pessoas refugiadas não foram deixadas para trás no contexto da pandemia.

É difícil para um refugiado integrar um novo país?

Eu tinha um chefe que tinha uma resposta muito curiosa em relação a isso. Refugiados não são aparelhos eletrônicos, que vêm com manual. Eles vão reagir de maneiras totalmente diferentes àquelas situações pelas quais estão passando. Posso dizer que não é fácil ser refugiado. Você é forçado a deixar o seu país e, de um dia para o outro, é forçado a abandonar sua casa, seus bens, sua rede de conhecimento e de amizades por causa de um conflito que muitas vezes não tem nada a ver com você. Não é fácil. A velocidade dessa integração depende muito da legislação no país, do que essa pessoa passou e das circunstâncias em que ela se encontra. O que a gente nota é uma grande força de vontade das pessoas para poderem se integrarem e se tornarem autossuficientes.

Vocês lançaram a plataforma Refugiados Empreendedores. O que é isso? Como isso funciona?

Com o advento da pandemia, muitas dessas pessoas tinham suas atividades baseadas na economia informal ou tiveram seus empregos cortados. Havia a necessidade de se reinventar como empreendedores. O Acnur fez um mapeamento de refugiados de diferentes nacionalidades e criou essa plataforma para permitir uma troca de informações, permitindo que as pessoas façam negócios entre eles. E também permite que quem queira iniciar seus próprio negócio tenha ali informações para entender como pode ser essa estratégia de autossuficiência por meio de um negócio próprio.

OUÇA ENTREVISTA