A educação sobre raciocínio clínico, desde o início da graduação em Medicina, pode ajudar a prevenir erros diagnósticos e promover a segurança do paciente. A análise é do médico Pedro Gordan, ex-reitor da UEL (Universidade Estadual de Londrina), fundador e decano do grupo do Raciocínio Clínico. Nefrologista, Gordan tem mais de 50 anos de experiência como clínico e educador médico. Ele ressalta que é preciso promover a conscientização de profissionais e educadores da saúde sobre a importância de se ensinar e aprender raciocínio clínico, já que, segundo ele, o assunto não faz parte do currículo da maioria dos cursos de Medicina e outras áreas de saúde. O tema será debatido nos dias 27, 28 e 29 de julho no 1º Congresso Brasileiro de Raciocínio Clínico, que será on-line e realizado em Londrina.

O médico nefrologista Pedro Gordan
O médico nefrologista Pedro Gordan | Foto: Luiz Alberto/Divulgação

Qual é a melhor definição para essa expressão “raciocínio clínico”?

É a análise dos processos que norteiam o diagnóstico.

Este é o primeiro congresso brasileiro sobre o tema?

É um assunto do qual não se fala muito, mas que na verdade deve ser falado muito mais. Porque o raciocínio clínico é um tema que não é muito abordado nas escolas de Medicina e essa é uma preocupação nossa. Todo médico acha que recebe todas as informações sobre raciocínio clínico que estão disponíveis nas faculdades, mas não é sempre assim. O que acontece é que a estruturação do raciocínio clínico não sai completa nas faculdades e isso cria uma série de problemas depois na prática médica.

Qual a diferença do que se ensinava antes na semiologia ou propedêutica?

Na verdade, o que se ensina na semiologia e na propedêutica são algumas bases do raciocínio clínico, mas não o suficiente, porque a propedêutica e o raciocínio clínico normalmente são ensinados no terceiro ou quarto período do curso de medicina, quando a pessoa ainda não está suficientemente madura para receber esses ensinamentos. Nós propagamos que o raciocínio clínico tem que ser ensinado desde o começo do curso até o fim do curso, de modo longitudinal.

Por que os médicos cometem erros? Por que acontecem esses erros de diagnóstico?

O cérebro das pessoas é feito para errar. Normalmente a gente acha que está correto, mas existem vários vieses, que são alterações do pensamento que levam a gente a errar um diagnóstico. Por exemplo, se o médico examinar um doente e achar que o diagnóstico é Covid, é um viés de disponibilidade, porque todo mundo tem Covid atualmente. As pessoas fecham o diagnóstico sem examinar, sem conversar e sem ter uma estruturação do raciocínio bem feita.

Qual é o percentual de casos que resultam em erros de diagnóstico?

O que a gente pode dizer é que 30% dos óbitos são causados por erros de diagnósticos, seja por não ter sido feito o diagnóstico ou por não ter vindo no momento correto. Pelo menos isso é o que ocorre nos Estados Unidos, que é onde tem estatística grande.

E como se prevenir? Como tentar evitar e aprender com os erros?

É por isso que existe uma estruturação do raciocínio. Você deve tomar algumas precauções de não fechar o diagnóstico da primeira vez e questionar o que mais poderia ser. Você acha que seu raciocínio sempre está correto, mas o fechamento prematuro do caso ocorre quando você acha que o diagnóstico está feito, mas não está. Ainda há outras etapas de diagnósticos diferenciais que você poderia fazer.

Mas o atraso no diagnóstico também pode ser considerado um erro, não?

Sim, por isso que no pronto-socorro, principalmente a assuntos relacionados com o atendimento de urgência, você não pode atrasar um diagnóstico. Há algumas maneiras de fazer isso ao afastar as causas de maior possibilidade de óbito, o pior cenário. Se chega um indivíduo no pronto-socorro com dor precordial (dor no peito) existem duas coisas que você não pode deixar de considerar no diagnóstico: o infarto do miocárdio e o tromboembolismo pulmonar, ou seja, a trombose da circulação pulmonar. Você não pode deixar passar porque levam à morte iminente, então existem técnicas de pronto-socorro em que você tem que procurar de qualquer forma esses dois diagnósticos.

O senhor mencionou tromboembolismo - embolia pulmonar - e com a Covid tem muita gente que acaba tendo esse problema.

A Covid leva muitas vezes a diagnósticos que são muito semelhantes. O indivíduo chega no hospital com febre, tosse e diz que é Covid, mas na verdade ele pode ser uma pneumonia que pode levar ele a óbito. E, por azar, a Covid simula igualzinha uma pneumonia, então você precisa sempre ter bases de pensar. Pode haver uma possibilidade mais grave que você tem que analisar. Então nem tudo que é diagnosticado como Covid hoje é Covid, certo? Tem embolia pulmonar e infarto do miocárdio que nós já chamamos de Covid, mas que não é.

E existem doenças em que podem ocorrer mais casos de erros de diagnóstico?

Existem condições. Quando vem um politraumatizado, a fratura em que mais se erra o diagnóstico é a segunda, porque o sujeito chega traumatizado ao pronto-socorro com uma fratura nítida no braço, mas você pode ter deixado passar uma fratura na vértebra. Então o maior erro diagnóstico é a segunda fratura, aquela que você não vê. Você presta atenção só na que é mais evidente.

E em relação às outras doenças, como o câncer e como o AVC?

São doenças que têm síndromes bem definidas, então, se você tem dúvida quanto ao diagnóstico, deixe “passar o filme”. Não tire apenas “uma foto” do momento. Se você tem um doente que está com um quadro clínico que você não tem certeza absoluta o que é aquilo, então deixe passar o tempo e, se você conseguir afastar o pior cenário, a história vai contar o seu diagnóstico. Lembrar sempre que uma das coisas mais importantes nos erros diagnósticos é não ouvidos verdadeiramente para o paciente, porque ele sempre quer contar a história para você. Se você não o ouvir por um tempo suficiente, pode errar o diagnóstico com muita frequência.

Quando chega um paciente doente, muitas vezes os médicos recorrem a exames, como os de imagem, não? Mas e quando o número de exames é muito alto? Há um limite?

Isso é o fechamento prematuro de você não pensar em algumas doenças e solicitar um grande número de exames com a finalidade de fazer diagnóstico. Esse é um erro muito comum. Os médicos esperam que alguns dos resultados indiquem o diagnóstico, mas isso faz com que o paciente perca tempo, gaste uma quantidade grande de dinheiro e possa não ter seu diagnóstico realizado. Existem os fundamentos do raciocínio clínico pela coleta de dados, se você colheu os dados convenientemente e teve uma experiência clínica. É uma coisa que não dá para ensinar na faculdade, mas dá para treinar ao ver muitos casos. Nós sempre dizemos no jargão médico que um médico que “toca bastante fichas” é um sujeito que tem chance de fazer melhores diagnósticos, porque ele tem na cabeça os scripts como se fosse um filme das doenças e ele pode lançar mão disso, mas ele precisa saber buscar isso na cabeça dele.

É o que ocorre muitas vezes em hospitais que não têm laboratórios e nem acesso a esses exames?

Muitas vezes os diagnósticos em cidades cujo limite de exames é muito grande o médico tem que ter muito mais tempo e muito mais cuidado ao examinar o paciente, porque o diagnóstico vai vir muito provavelmente com o desenrolar da história e da evolução. Tem diagnósticos que só se fazem depois de algum tempo que você convive com o paciente.

A maioria dos diagnósticos errados envolve mais de um erro. Por que isso acontece?

São vieses de pensamento. Por exemplo, a Covid é um exemplo típico, porque se chega ao hospital um paciente com dor de garganta e sinais como tosse e febre você pode fazer um fechamento prematuro de diagnóstico ou usar a disponibilidade de ter Covid, mas por outro lado você pode deixar passar outros diagnósticos que estão por trás disso, como, por exemplo, uma embolia pulmonar. Como a testagem para a Covid é muito lenta, você deixa passar muitos casos de Covid também. Aí é que se acumulam erros. No pronto-socorro, por exemplo, pode ter vários erros no mesmo paciente. Isso acontece em politraumatizados com muita frequência. O médico fixa num ponto do paciente e deixa passar outros pontos que são muito importantes. Em uma ruptura de baço, que é muito comum em politraumatizados, se deixar passar é uma situação mortal.

Muitos erros acontecem também por falhas no preenchimento dos prontuários. Como o senhor vê isso?

Esse é o maior problema, porque diante da pressão diária do médico em um atendimento que ele tem que fazer 15 ou 20 atendimentos em duas horas, a chance de ele errar é muito grande, porque ele não consegue preencher com calma e pensar em todos os dados do diagnóstico e não ouve o paciente convenientemente. Os erros de diagnóstico não acontecem só por causa do médico. São erros do sistema de saúde que levam você a errar muito, porque você está apressado e sem possibilidade de conversar com o paciente. E há ruído. Imagine um ambulatório de uma clínica de pronto atendimento, com o movimento que tem lá, você tem muitas chances de errar, porque há pouco tempo para poder examinar cada paciente com cuidado.

Hoje há muitos pacientes que pesquisam na internet sobre alguns sintomas e chegam com um diagnóstico pronto para apresentar ao médico. Como o senhor vê esse tipo de atitude?

A internet veio para ajudar, mas ela atrapalha bastante. Quando o paciente vem com a lista toda de diagnósticos, não há problema nenhum desde que ele conte exatamente o que está se passando. Nesse ponto tem que haver uma cooperação fundamental entre o paciente e o médico. E o acompanhante é importante também. A gente tem que ouvir. O grande problema, não só do médico, mas das pessoas também, é não ouvir o outro. Uma coisa é escutar e a outra é ouvir. É importante que o paciente discuta com você e que você dê uma abertura suficientemente grande para argumentar com o paciente qual o diagnóstico e qual o caminho que você deve seguir. Mas é fundamental que o doente dê as informações corretas para você.

E em alguma outra coisa a tecnologia pode ajudar ou atrapalhar?

A tecnologia veio para ficar e para ajudar. A gente só não precisa confiar totalmente na tecnologia, porque existem vários erros de diagnóstico que aparecem. Vou dar um exemplo muito comum de quando aparece um tumor na suprarrenal. Nós chamamos de tumor fantasma, que é um diagnóstico que é extremamente raro, mas que aparece em uma tomografia. Você gasta um tempo enorme, mas não há relação alguma com a história ou com o exame clínico do paciente e você acaba errando o diagnóstico por causa do avanço da tecnologia. Mas não é sempre assim. A tecnologia tem que ser usada a seu favor.

E a adoção da telemedicina? Desde o ano passado o Conselho Federal de Medicina e o Ministério da Saúde liberaram a telemedicina para alguns casos, não?

Acho que a telemedicina tem uma finalidade muito importante. Eu acho que ela serve para o primeiro contato, mas ela é muito mais importante na revisão do caso. Se você vai ao médico e solicita os exames, o retorno muitas vezes não é necessário que seja feito presencialmente. Ele pode ser feito por telemedicina com uma segurança muito grande. O que não pode é transferir todo o tratamento médico para a telemedicina. Mas existem condições, por exemplo, na dermatologia, em que a visão da imagem pode ser transmitida para o médico através da telemedicina e possibilita o diagnóstico perfeitamente, porque o médico está acostumado a ver aquelas imagens. Nesse caso o exame físico pode ser substituído, mas normalmente o exame físico tem que ser feito pelo médico presencialmente.

Em julho será realizado o 1º Congresso Brasileiro de Raciocínio Clínico - O Futuro do Diagnóstico. Qual a importância desse evento?

O 1º Congresso Brasileiro de Raciocínio Clínico será dividido entre brasileiros e convidados internacionais. Terá brasileiros que têm conhecimento e militam na área do raciocínio clínico e que são de várias áreas, inclusive da área tecnológica, e por isso se chama “o futuro do diagnóstico”. São palestrantes como o doutor David Livingston, que é de Guarapuava, e que tem um laboratório de genômica espetacular e que vai discutir o diagnóstico genético em raciocínio clínico. Nós temos o Wilson Shcolnik, que é o presidente da Abramed (Associação Brasileira da Medicina Diagnóstica), que vai conversar com a gente principalmente sobre erros diagnósticos em laboratório. Tem gente que vai falar sobre exames de radiologia, sobre testes radiológicos no diagnóstico. Tem um grupo que é de Minas Gerais que estuda a reflexão no diagnóstico, que é uma coisa abstrata, mas que faz com que os diagnósticos sejam mais elaborados. Eles são coordenados por uma pessoa que é brasileira, mas trabalha em Roterdã (Holanda), que é a doutora Sílvia Mamede. Nós temos também as pratas da casa, como o doutor Leandro Diehl e vai conversar sobre os fundamentos do raciocínio clínico. Nós temos o doutor Fabrizio Prado, que vai falar sobre a maneira de ensinar raciocínio clínico para os estudantes de Medicina, que se chama a fórmula do raciocínio clínico, que é uma coisa mais prática para os estudantes. Entre os convidados internacionais temos gente como o professor Pat Croskerry, que trabalha no Canadá e é um especialista em erros diagnósticos em pronto-socorro. Ele é psicólogo e depois se tornou médico e agora trabalha com erros médicos em urgência.

Imagem ilustrativa da imagem Raciocínio clínico para evitar erros diagnósticos
| Foto: iStock

O mais importante é que temos que falar sobre empatia. São três coisas que estamos levantando no diagnóstico, que é a empatia de ouvir o paciente, se colocar no lugar do paciente; uma outra coisa que a gente precisa estimular nos médicos e estudantes é a curiosidade, porque se você não for curioso você fica só no diagnóstico mais superficial; e uma outra coisa importante para todos os médicos é saber lidar com a incerteza, porque na medicina temos que lidar diuturnamente com a incerteza e se a gente tiver uma baixa tolerância à incerteza a gente vai pedir um monte de exames desnecessariamente.

SERVIÇO

I Congresso Brasileiro de Raciocínio Clínico

Formato digital

Dias 27, 28 e 29 de julho de 2021

Informações, lotes abertos e inscrições:

http://raciocinioclinico.com.br/congresso/