A ausência de dados em processos criminais de mulheres encarceradas gera dupla punição para as detentas durante a maternidade, além da manutenção do ciclo de violação dos direitos das crianças e adolescentes. É o que aponta o levantamento realizado pelo Centro de Pesquisa Jurídica e Social da Universidade Positivo.

Imagem ilustrativa da imagem Pesquisa mostra falta de informações sobre a maternidade no sistema prisional
| Foto: Celso Pacheco/12-9-2013

A partir da análise de 177 processos referentes a 190 mães encarceradas na Penitenciária Feminina de Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba, a equipe verificou que 31% dos casos não apresentavam informações relacionadas à maternidade, o que dificulta o acesso a direitos como a prisão domiciliar que pode ser concedida, por exemplo, quando os crimes não foram praticados mediante violência ou grave ameaça ou contra os próprios filhos.

Para a coordenadora do Centro de Pesquisa Jurídica e Social da universidade e mestre em Direitos Humanos e Cidadania, Olívia Pessoa, o desconhecimento sobre essas informações reflete o descaso com as questões de gênero também no sistema prisional e impacta diretamente o futuro de milhares de crianças e adolescentes.

Qual o panorama hoje das mulheres encarceradas no Paraná obtido por meio desse recorte feito para a pesquisa relacionada à Penitenciária Feminina de Piraquara?

Atualmente no Paraná, as mulheres que estão encarceradas especificamente em Piraquara, que foi o recorte da nossa pesquisa, 46% estão devido a lei nº 11.343/2006 que diz respeito ao tráfico de drogas, 28% devido a roubo e pequenos furtos e uma margem muito pequena está encarcerada por feminicídio.

Uma grande quantidade dessas mulheres encarceradas é mãe, mas o Estado não tem esse número específico, inclusive, esse é um tema que a gente aborda na pesquisa, a invisibilidade da maternidade das mulheres que estão encarceradas. O Estado não tem informação de quem são essas mulheres, se elas têm profissão, se elas estudaram, qual é a renda delas, não temos essas essas informações.

Então, hoje, quando você faz uma pesquisa sobre mulheres encarceradas, especificamente no que a gente tá tratando no estado do Paraná, você sabe porque elas foram encarceradas. E aí, isso diz muito sobre para onde que o estado está olhando quando encarcera uma mulher. Ele olha para o tipo penal em que ela foi classificada e deixa para trás todas as outras variáveis que nos ajudariam a compreender esse contexto das pessoas que estão encarceradas nesse momento.

A falta de dados específicos sobre a maternidade ou a gestação, qual é o impacto disso tanto no sistema prisional quanto na sociedade como um todo?

Essa questão da ausência de dados [sobre a maternidade], sempre foi uma questão para quem trabalha com pesquisas sobre o sistema carcerário, mas isso passou a ser algo crucial quando a gente tem um habeas corpus coletivo de 2018 que foi impetrado pelo ministro Ricardo Lewandowski quando houve a prisão de um ex-governador do Rio de Janeiro e, na ocasião, a esposa desse ex-governador também foi presa. A defesa dela entrou no Supremo Tribunal Federal pedindo um habeas corpus para que ela pudesse ter uma prisão domiciliar em razão dela ter filhos menores de doze anos. O Supremo acatou esse HC e fez com que ele fosse um HC coletivo, ou seja, ele passa a valer para todas as mulheres encarceradas em que ela tem o benefício da prisão domiciliar se ela for gestante, se ela tiver tido filho recentemente ou se ela for a única responsável pelos cuidados dos filhos menores de doze anos.

Quando esse HC passa a vigorar essa questão de saber se aquela mulher é mãe passa a ser crucial porque ela pode ser beneficiada e ter uma prisão domiciliar. Então, passamos a olhar para essa questão pensando que isso pode ser um impacto, inclusive no processo judicial e no regime em que ela vai ser enquadrada para cumprir a sua pena.

O objetivo da nossa pesquisa foi analisar os processos de 190 mulheres que se encontravam encarceradas na penitenciária entre 2018 e 2019 e se declararam mães. Em uma pesquisa anterior foi perguntado se elas eram mães ou não. Então, nós encontramos essas mulheres que se declararam mães, elas poderiam ser beneficiadas por esse HC coletivo, mas elas não estavam sendo beneficiadas porque continuavam encarceradas.

É no processo judicial que essa discussão deve ser feita. Quando nós analisamos os processos, verificamos que não há essa informação de que a mulher é mãe. Não tem essa informação porque o juiz não pergunta, o defensor público que a defende muitas vezes não pergunta, os advogados que a defendem também não perguntam, o Ministério Público não pergunta. Então, essa questão da maternidade, ela não é levantada como uma possibilidade de garantir a prisão domiciliar para essa mulher porque essa questão não é tratada ou é pouquíssimo tratada ao longo desse processo.

Para a sociedade, as consequências disso são imensuráveis porque essa invisibilidade no processo, o que ela quer dizer? Ela quer dizer que hoje o estado brasileiro e o estado do Paraná, eles não sabem o que acontece com as crianças menores de doze anos e com quem estão essas crianças quando uma mãe é encarcerada. E isso é público e notório, temos vários estudos nesse aspecto que apontam que a mulher costuma ser a principal responsável pelos cuidados das crianças. Então, se essa mãe está encarcerada e declara que tem um filho menor de doze anos, quem está cuidando dessa criança? Quem se responsabilizou pelos cuidados? O estado não sabe. Se sabe, isso não está manifestado dentro desse processo daquela mulher que se declarou mãe.

Sobre a falta de dados, a sra. considera que além da questão de gênero, há uma falta de preparo dos advogados, juízes e falhas na formação acadêmica?

Com certeza. A formação dos operadores do direito costuma ser uma formação extremamente normativa em que ele olha para a aplicação da lei. E, às vezes, existe um descolamento entre esse aprendizado que é instrumental para a aplicação de uma lei e um contexto social mais amplo. O judiciário, às vezes, não se responsabiliza, não olha que ele está inserido em um contexto social mais amplo em que ele não pode simplesmente delegar a outros poderes ou a outras instituições o olhar pra esse contexto. Isso acontece dentro do curso de formação dos alunos na graduação de direito. Isso depois é reproduzido dentro dos concursos. Então, quando você olha para os conteúdos que são exigidos ali, seja no concurso da magistratura, seja no concurso do Ministério Público, seja na prova da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], não há essa preocupação ou é abordada de forma muito superficial a necessidade do Poder Judiciário entender que precisa olhar para uma sociedade dentro de um contexto sistêmico em que a aplicação de uma lei, a aplicação dura e fria de uma lei, e não estou falando que não tem que aplicar a lei, mas, às vezes, isso é insuficiente para atuar em prol de uma sociedade. Isso é insuficiente e pode inclusive gerar outras consequências.

Grande parte dos crimes cometidos pelas mulheres encarceradas está ligada ao tráfico de drogas. Nesses casos, no geral, são crimes cometidos por iniciativa própria ou são mulheres envolvidas pelos companheiros porque enfrentam situação de vulnerabilidade? É possível fazer uma análise em relação a isso?

Há vários estudos que analisam o gênero e a lei de drogas e eles já têm apontado, nos últimos anos, essa relação que o gênero tem sobre o encarceramento do tráfico de drogas. Tem uma questão que muitas vezes essa mulher foi colocada em uma situação de risco por um terceiro, geralmente vinculada a uma questão afetiva. Então, às vezes, ela foi presa porque o seu companheiro era traficante e ele fazia o tráfico dentro da casa dela, onde ela morava com seus filhos. Ela foi presa porque ocupava ali dentro da cadeia do tráfico um trabalho periférico. Ela, às vezes, transportava, entrava na penitenciária e foi presa porque tentou levar drogas para o companheiro ou para os pais. Em parte esmagadora desses processos, você não tem uma mulher que está na ponta do tráfico. Geralmente, o delito foi provocado por conta de um terceiro e, geralmente, esse terceiro era um companheiro ou tinha alguma relação afetiva seja de paternidade, sempre neste aspecto, e ela não era ali a maior responsável por aquele crime.

Há muitos casos também em que os companheiros utilizavam veículos que estavam no nome dela para fazer o tráfico e, aí quando ele ‘caía’ e chegava a ser preso, ela acabava sendo presa também. Então, essa questão é uma questão que precisa ser muito debatida com relação à lei de drogas, precisa ser analisada por esse contexto também. O quanto que muitas mulheres estão vulnerabilizadas dentro dos seus relacionamentos, dentro dos seus lares e elas acabam também sendo punidas por uma questão em que elas foram, de certa forma, levadas. Elas não têm que ser punidas? Têm, elas cometeram um crime. Há a ilicitude, mas talvez esse encarceramento, talvez essa questão de gênero precise ser levada em conta dentro de um processo judicial.

Como seria possível quebrar esse ciclo de violação dos direitos das mães encarceradas e dessas crianças e adolescentes?

É uma situação extremamente complexa que exige um olhar para a situação de vulnerabilidade que essas mães estão inseridas. O estado não pode olhar para essas pessoas só pelo viés da polícia e pelo viés do sistema de Justiça. Temos alguns estudos que mostram moradores de comunidades muito vulneráveis em que o único contato que essas pessoas têm com o estado é pela polícia. Em entrevistas, quando eles são perguntados sobre quais serviços acessam, eles respondem 'Ah, a polícia já teve aqui'. Quando perguntam 'o que é o acesso à Justiça para você?'. Eles respondem 'ah, o acesso à Justiça está vinculado com o fato de eu conseguir me defender dentro de um processo'. Então, é sempre esse olhar processual e que passa ali por essa questão do contato via mecanismo de repressão.

Precisamos de mais que isso. Precisamos que essas mães tenham acesso à creche, a programas que garantam uma independência financeira, a gente precisa de um olhar para esses lares. Um olhar que garanta que essas mães não sejam submetidas às violências e, se forem, que elas tenham uma saída dessa violência.

Agora, especificamente sobre o momento em que ela é encarcerada. Primeiro, é preciso quebrar essa invisibilidade com qual a maternidade é tratada dentro do sistema de Justiça. Quando uma mulher é encarcerada e ela vai para uma audiência de custódia, quando ela vai ser ouvida, ao meu ver, teria que constar na capa do processo 'mãe', 'filhos menores de 12 anos'. Outras informações aparecem no processo. Aparece 'réu preso', por exemplo. 'Réu com alguma deficiência'. A questão da maternidade nos processos que envolvem mulher, tem que constar.

Uma outra questão que poderia ser adotada seria a comunicação com os conselhos tutelares. A partir do momento em que o juiz identifica que há essa mãe e que há essa criança, ele tem que comunicar o conselho tutelar e perguntar quem que vai ser o responsável pela criança na ausência dessa mãe. Uma outra questão que poderia ser implementada também nesses casos é a integração do sistema de registro de nascimento dos cartórios ao sistema da vara para checar se a mulher está dizendo a verdade que ela já é mãe. Já algo parecido para tantas questões, por exemplo, quando uma pessoa é encarcerada, você consegue ver que se ela tem um carro no nome dela, você consegue saber se ela tem algum bem no nome dela. Por que não fazer também uma integração desse sistema e aí, quando uma mulher for encarcerada, no mesmo momento o juiz já busca se há uma certidão de nascimento para verificar se ela tem filho ou não?

Enfim, acho que tem a necessidade de uma união coletiva de esforços no sentido de trazer à frente essa questão da maternidade dentro do cárcere para que a gente evite que tenham crianças sem os responsáveis enquanto essas mães estão cumprindo pena e também evite que a gente tenha crianças dentro do cárcere com as suas mães porque aí você fortalece esse ciclo de violência em que muitas mulheres e crianças estão submetidas.