Casos como o da menina capixaba de 10 anos, que foi estuprada pelo tio e precisou ter a gravidez interrompida, são histórias que jamais deveriam se repetir. Infelizmente, fatos assim são mais comuns do que se imagina. É o que afirma a pedagoga Cecília Landarin Heleno, especialista em assistência social e analista de projetos de defesa da infância no Centro Marista de Defesa da Infância. Ela ressalta que as estatísticas apontam que uma a cada três meninas antes dos 18 anos passa por uma situação de violência sexual. Já entre os meninos, a incidência é de um em cada dez.

Imagem ilustrativa da imagem Pedagoga ensina a enfrentar a violência sexual contra menores
| Foto: Divulgação

Atos de violência sexual contra crianças e adolescentes são tema recorrente do noticiário nacional e não acontecem, necessariamente, longe de casa. É muito comum que os atos aconteçam com membros da própria família ou por pessoas próximas. “Isso porque temos uma cultura que diz que a criança pertence ao adulto e que ele faz o que quiser”, alerta Heleno, que aponta que os casos independem de fatores culturais, políticos ou socioeconômicos. Assim como é difícil identificar um perfil padrão de um potencial agressor.

Apesar de existirem políticas públicas que combatam a violência sexual contra menores, a participação da população e de organismos da sociedade é fundamental para a construção de uma rede de apoio capaz de enfrentar tão grave problema. Neste sentido o Centro Marista de Defesa da Infância criou a campanha “Defenda-se”. O trabalho oferece vídeos e material didático com dicas fundamentais para a prevenção de atos tão bárbaros. Todo material está disponível para visualização e download no site do projeto: www.defenda-se.com. Convidada pela FOLHA, Cecília Landarin Heleno orienta como cada cidadão pode ser peça fundamental para combater as agressões.

Como tantos outros crimes, a violência sexual contra crianças e adolescentes sofre com uma enorme subnotificação e uma consequente incapacidade de mensurar o tamanho do problema a ser enfrentado. De que forma a própria sociedade civil pode reverter esse panorama?

A contribuição da sociedade começa na prevenção e vai até o acolhimento da vítima quando ocorre alguma situação de violência. As estatísticas mostram que, na maior parte dos abusos, por exemplo, o agressor é conhecido da vítima e faz parte da família. Isso porque temos uma cultura que diz que a criança pertence ao adulto e que ele faz o que quiser. Precisamos começar desconstruindo isso, porque uma criança que entende que não tem segredo possível que precise ser guardado tem mais possibilidades de identificar uma situação de perigo com agilidade. Assim, ela pode entender que o que está acontecendo é uma situação abusiva e procurar por ajuda. Para se ter uma ideia, menos de 2% dos casos de abuso no mundo são revelados ou descobertos no tempo em que eles acontecem. Isso porque a vítima se sente parte daquela situação da qual foi provavelmente seduzida.

Os índices socioeconômicos estão diretamente relacionados à incidência de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes?

A violência sexual é influenciada por múltiplos fatores como os culturais, políticos e socioeconômicos. Não é verdade que ela acontece mais em lugares mais pobres. Quando se olha os processos judiciais estabelecidos, esse dado não se confirma. O que acontece é que os números de denúncia nesses espaços são maiores porque existe uma tutela maior do Estado em função da criminalização da pobreza. Por exemplo, se você identifica que há uma situação de violência sexual contra uma criança em um ambiente economicamente favorável, a primeira coisa a ser feita é chamar os pais e conversar sobre isso e, provavelmente, isso não será comunicado às autoridades. Já numa escola pública, a probabilidade é que a primeira medida seja a comunicação, que é o correto, à instância de denúncia ou ao Conselho Tutelar. É por isso que existe essa falsa ilusão. Quando falamos que a violência sexual se constrói por meio da assimetria de poder que existe entre o agressor e a vítima, muitas vezes ela é gerada, por exemplo, pela falta de informação. A vulnerabilidade econômica potencializa e facilita situações de exploração sexual.

De que forma uma pessoa pode ajudar uma criança ou família que foi vítima de tais agressões? Para onde deve-se levar para os primeiros cuidados?

É importante lembrar que a violência sexual contra a mulher atinge a família toda e com as crianças não é diferente. Por isso, precisamos tratar da vítima e sua família, inclusive o agressor. Todas as pessoas devem ser acompanhadas e devidamente atendidas. Existe uma rede de atendimento e um sistema de garantias de direitos estruturados para isso. Quando percebemos que há uma situação de violência, ou uma suspeita, ela já precisa ser comunicada, isso está no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) desde 1990 e agora foi reforçado pela Lei do Depoimento Especial e da Escuta Especializada (nº 13.431/2017). É uma responsabilidade de todos, da família, sociedade e Estado de comunicar caso haja a suspeita ou de fato uma violência contra crianças e adolescentes.

Como isso pode ser feito?

Primeiro, se formos procurados pela vítima, devemos acolher e ouvi-la sem julgamentos, sem reações exageradas, sem uma preocupação com o que vai ser respondido. Sua obrigação não é dar uma resposta, sua obrigação é acolher e agradecer por ter sido escolhido, porque normalmente essa vítima demorou para encontrar alguém com quem ela pudesse falar, então ela confiou em você. Agradeça e enalteça esse momento e a coragem dela em te contar. Esse é um dos papéis mais importantes na revelação espontânea. Agora, há outras situações em que apenas suspeitamos e não temos certeza. Nesse caso, a primeira coisa a se fazer é comunicar um dos órgãos responsáveis do sistema de garantia de direitos. Seja pelos canais de denúncia 181 ou pelo Disque 100, mas aí o fluxo é mais longo, então é preciso avaliar o quão urgente é essa suspeita. Se for, pode ir até o Conselho Tutelar e passar a situação diretamente para eles, mas todos os órgãos têm obrigação de fazer algo e receber denúncias. Não é necessário ir com a vítima até o lugar, basta apenas fazer a denúncia.

Há um prazo determinado para que a denúncia ocorra?

Em via de regra o que acontece é: se a agressão aconteceu com contato físico e há menos de 72 horas, é superimportante que haja um protocolo estabelecido por uma comissão intersetorial ou pelas redes de proteção, para tomar todas as medidas profiláticas necessárias e para fazer os exames para comprovação do crime. Se aconteceu há mais tempo ou acontece sistematicamente há mais tempo, então acontecerão atendimentos de escuta especializada em órgão a ser definido por cada município de forma individual, com profissionais capacitados para realizar a escuta. Em algum momento, vão acontecer o depoimento especial, com a finalidade de dar prosseguimento ao processo judicial e responsabilização do agressor, e a escuta especializada, com a finalidade de garantir esforços coordenados da rede de proteção para garantir que a vítima e toda a sua família sejam acompanhadas.

A violência sexual, muitas vezes, é tratada como se ocorresse na casa dos outros. De que forma uma família deve agir para estar sempre vigilante para possa proteger o seu entorno de tal brutalidade?

Entendemos como se isso fosse algo muito distante, mas não é. As estatísticas mostram que uma a cada três meninas antes dos 18 anos passa por uma situação de violência sexual. No caso dos meninos, o número é de um em cada dez. É uma estimativa que contempla um número muito grande de crianças, então não é só na casa do outro. É um crime bastante comum e precisamos nos manter atentos de diversas formas. Primeiro, pelo aspecto preventivo, como manter as crianças informadas, dar a elas espaços de fala, não as colocar em situações em que elas precisem se submeter a qualquer custo às vontades de um adulto. Tratar as questões de prevenção é importante para a proteção. Agora, identificar o agressor é muito difícil porque não existe um perfil psicopatológico que possa ser identificado. Isso tem a ver com a sensação de poder que ele acredita ter sobre a criança e com a satisfação que pode realizar com ela. Muitas vezes, isso vai acontecer sem contato físico, inclusive.

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Como funciona a campanha “Defenda-se”? De que forma o trabalho pode ser multiplicado para o maior número de pessoas?

A campanha promove a autodefesa de crianças contra a violência sexual através de uma série de vídeos educativos com linguagem acessível e amigável, apropriados para meninas e meninos entre 4 e 12 anos. As histórias apresentam situações em que as crianças têm condições reais de agir preventivamente, especialmente pelo reconhecimento dos seus direitos sexuais e de estratégias que dificultam a ação dos agressores. Ela foi criada pelo Centro Marista de Defesa da Infância e tem como base o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual de Crianças e Adolescentes. Reconhecendo a diversidade, a campanha apresenta vídeos com audiodescrição, libras, traduzidos para o espanhol e o inglês, além de spots para rádio e versões para cinema. Além disso, professores e educandos também contam com livros paradidáticos desenvolvidos com a Editora FTD Educação. Pelo site do projeto, é possível baixar todos os vídeos, ter informações sobre os livros, conhecer práticas educativas em desenvolvimento e encontrar informações sobre o enfrentamento à violência sexual.