Existem pessoas do bem e pessoas do mal? Quem está certo na guerra entre Ucrânia e Rússia? O que significa a polarização da política no Brasil? O que gera o conflito entre torcidas nos estádios de futebol? O que é o maniqueísmo? Qual a correlação entre o maniqueísmo do século 4 e o atual? Há espaço para o diálogo?

Em buscas de respostas, a reportagem da Folha procurou o professor Moacyr Novaes, do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo) para falar sobre o tema. Novaes tem graduação (1988), mestrado (1993), doutorado (1997) e livre-docência (2011) em Filosofia pela Universidade de São Paulo. É autor do livro “A Razão em Exercício- Estudos Sobre a Filosofia de Agostinho”. A obra retrata aspectos sobre Agostinho de Hipona, um dos mais importantes teólogos e filósofos nos primeiros séculos do cristianismo, do século 4.

Em seu texto, Novaes reforça que Agostinho não se deteve no dualismo maniqueísta e ressaltou que não se trata de condenar este mundo, mas sim de ver nele o lugar de um caminho. “O mal não está no mundo, não está na matéria; o mal está no aprisionamento da vontade humana.”

"Mais do que o equívoco filosófico e metafísico, o maniqueísmo é um equívoco encobridor das grandes divisões que realmente dilaceram o país."
"Mais do que o equívoco filosófico e metafísico, o maniqueísmo é um equívoco encobridor das grandes divisões que realmente dilaceram o país." | Foto: Divulgação/Arquivo pessoal

Um artigo sobre Agostinho que o senhor escreveu fala sobre essa questão do maniqueísmo e da dicotomia. O que é o maniqueísmo?

Eu não sei nem se tem a ver com o maniqueísmo de agora. O caso de Agostinho é um problema do final do século 4 que, de certo modo, está muito longe da gente. Era uma doutrina, uma teoria, digamos assim, sobretudo cosmológica, com reflexões morais importantes. Por isso havia um princípio do bem e um princípio do mal. O mundo seria uma espécie de pus cósmico, como resultado do combate das células boas contra os invasores. É claro que este pensamento está associado a uma noção muito elitista do que é o pensamento, do que é a religião e do que é a filosofia, em que poucos conseguiam se purificar.

Agostinho combatia essa visão do cosmos e do mundo; e, ao mesmo tempo, também era contra esse elitismo associado a essa visão de mundo. Ele defende aquilo que está codificado como caridade, como amor ao próximo. A ideia dele era de que o conhecimento e a ação moral estão ao alcance de todos, dependendo dos respectivos talentos.

É possível traçar um paralelo daquele maniqueísmo com a era atual? O maniqueísmo deixou algum legado para a modernidade?

Eu não vejo muita repercussão desse maniqueísmo do século 4 agora. Tem esse maniqueísmo que a gente usa dentro da língua portuguesa, que é essa coisa de bem e mal, essa coisa intolerante, mas eu não gostaria de atribuir aos maniqueístas do século 4, que eram pessoas estudiosas e esforçadas, a esse movimento militante que tem no Brasil, dos homens de bem, das pessoas direitas, dos que se autointitulam conservadores, dos que intitulam os outros de comunistas e assim por diante. Essa bobajada a gente chama de maniqueísmo porque está no dicionário, mas eu não acho que isso seja um legado daquilo, que era uma forma de gnose, de força de conhecimento muito elevado.

Naquela época era um jogo sério. Eu tendo a ver Agostinho criticamente, mas não no mesmo sentido em que eu deparo com esses haters. É outro uso da palavra. Eu acho que em vez de maniqueístas eles devem ser chamados de intolerantes e perigosamente reacionários. São muito violentos e têm uma visão patriarcal do mundo. É o macho, branco, rico e que dita as regras. Mulheres brancas ou negras são submetidas, as negras mais ainda. Homens negros também, homens pobres também.

Imagem ilustrativa da imagem O maniqueísmo, a dialogia e a sociedade contemporânea
| Foto: iStock

Mas o que é esse maniqueísmo do dicionário?

Eu acho que a gente costuma usar maniqueísmo nesse sentido, de uma oposição estrita entre bem e mal. No Brasil, isso aparece um pouco nessa história dos “homens de bem”. Eles acham que um homem de bem pode tudo contra aqueles com os quais não se identificam. Mas eu acho que essas polarizações possuem um problema muito grave que é o de encobrir discussões mais importantes, que dividem e destroem uma sociedade. É preciso olhar para as divisões que interessam. Por exemplo, o Brasil é um país racista, mas dessa divisão se fala pouco e é mais importante para a gente enfrentar. O Brasil também é um país misógino e machista. Mulheres são assassinadas e espancadas. Há um contingente machista muito violento. Outro dia apareceu um rapaz fantasiado como aquele goleiro que foi acusado ou sentenciado de ter matado a namorada. Esse país é rachado, dividido.

Na guerra entre a Rússia e a Ucrânia também há uma divisão semelhante?

Está havendo essa polarização. O que incomoda muita gente é o fato de que a Ucrânia é um país europeu, de crianças loiras e de olhos verdes, que estão sendo atingidas. Se fosse no Iraque ou num país do terceiro mundo tudo bem e não seria tão grave? Eu tenho assistido várias cenas de repórteres pelo mundo, falando isso. Não teria problema se fosse no Iraque, ou no Iêmen, como atualmente está acontecendo? Isso é uma visão colonial daqueles que classificam quem é gente e quem é menos gente. Mais um exemplo desse tipo de visão que o Brasil vive e sobre a qual não se fala é que nessa tragédia que atingiu Petrópolis, a gente cansa de ler nas manchetes que a chuva fez isso e a chuva fez aquilo. A chuva não fez nada, a chuva choveu. Quem matou pessoas na miséria foi a especulação imobiliária, que expulsou aquelas pessoas das áreas habitáveis para áreas inabitáveis. Mesmo porque a chuva não matou nenhum milionário em Petrópolis e nem destruiu nenhum casarão grã-fino. A chuva não é culpada, mas é o grande sujeito das manchetes dos jornais. Isso é uma justificação encobridora.

Quando você me propôs essa entrevista sobre o maniqueísmo, pensei: é verdade. O maniqueísmo é um grande equívoco por essa divisão entre o bem e o mal e as coisas são muito sem mediação. Mas eu pensei, mais do que o equívoco filosófico e metafísico, no nosso caso é um equívoco encobridor das grandes divisões que realmente dilaceram o país. Um país racista, em que basta você ser um jovem negro para você ser uma vítima potencial de assassinato. E eu não estou falando nada abstrato. Eu estou falando de coisas que tragicamente se confirmam todo dia.

E tem a discussão de gênero também, não é?

Exatamente, sem falar da homofobia, de toda essa discussão sobre gênero e identidade sexual, que há uma violência enorme contra uma grande parte das pessoas. É uma divisão real. A gente precisa enfrentar isso. Vamos tratar com respeito e dignidade todas as pessoas. É disso que a gente precisa falar.

Ao mesmo tempo, muita gente usa o nome de Deus para praticar barbaridades como ataques contra membros de outras religiões, não?

A manipulação do nome de Deus é muito antiga e isso não me parece uma grande novidade. Eu não estou aqui condenando e com preconceito. Existem igrejas muito sérias e que exercem o seu papel de maneira muito digna, mas é claro que pessoas mal-intencionadas podem se valer desse recurso, sobretudo quando as igrejas que, por força de lei, são ambientes protegidos de ter leis fiscais mais duras, ou também quando há manipulação em nome de Deus para fazer política eleitoral.

Essas práticas são muito antigas, mas uma coisa mais aguda, mais concreta e nova é a intolerância religiosa, que não é simplesmente no sentido de alguém ter uma convicção religiosa e a outra pessoa ter outra, como o fato de um ser presbiteriano e outro ser batista. Tem algo a ver com a origem e tem a ver com o racismo. Há muita discriminação no Brasil e muita intolerância. É patente que há racismo nos ataques contra religiões de origem africana. Isso para não falar dos indígenas, que continuam sendo tratados como bizarrices e pitorescos e não são respeitados. Isso também tem a ver com essa intolerância cultural e religiosa.

Migrando o assunto para o futebol, a gente viu o ataque com bombas contra um ônibus do Bahia. A gente viu o ataque da torcida do Paraná contra os jogadores, quando o clube foi rebaixado para a segunda divisão do estadual. E quando o Palmeiras perdeu o mundial, houve quem agredisse as pessoas que "tiraram sarro". Como é que o senhor vê essa questão do adesismo em que as pessoas ficam fanáticas e acabam criando conflitos por conta do esporte?

Eu sou do tempo de ir ao estádio de futebol e sair com a torcida adversária pelo mesmo portão. Todo mundo xingando o outro lado, mas não passava disso. Não havia agressão. Eu não sei o que está acontecendo, mas não posso dissociar do fato de que no Brasil há uma celebração da violência. Há movimentos políticos importantes e personalidades políticas no Brasil que celebram a violência e fazem disso um culto. Eu, como cidadão, não posso dissociar essa escalada de violência entre pessoas evidentemente mais pobres, menos instruídas e mais suscetíveis de manipulação e que têm poucas possibilidades de poder exercer alguma potência e que, eventualmente, estão encontrando nessa violência estúpida um caminho, que é um péssimo caminho. Isso é assustador.

O senhor acredita que essa polarização generalizada é fruto das redes sociais, da propagação de conceitos que antes ficavam escondidos e hoje ganham o mesmo espaço que discussões mais profundas?

Eu não sei. Para isso precisaria estudar e calibrar o quanto as redes sociais são a causa e o quanto elas são sintomas. A minha sensação é de que elas são mais sintomas, são efeitos de um processo político de exclusão, de desigualdade. Nas redes sociais, isso vai se manifestando. O fato de qualquer cretino poder emitir a sua opinião e espalhar o conteúdo é lastimável. Claro que as pessoas podem se manifestar, mas no Brasil se manipula muito a noção de liberdade de expressão. Por exemplo, a pessoa fazer culto ao racismo, por exemplo, em torno da intolerância religiosa, à propagação do nazismo. São coisas que não podem ser acobertadas, e não são pertinentes à ideia de liberdade de expressão, mas da manipulação dela. Você usou a expressão fruto. Eu não sei se ela é fruto das redes sociais, ou são um pouco fruto de alguma outra coisa.

Se as opiniões nas redes sociais são mais os sintomas do que a causa, o senhor saberia dizer a causa ou as causas?

Eu não sei se é uma causa só. Às vezes a gente pensa um pouco nessas coisas e procura uma causa, como se fosse uma doença a partir da qual você vai tendo sintomas. Mas as pessoas tratam tudo como matéria de opinião. Aquele filme “Não olhe para cima”, que passou recentemente, é muito interessante sob esse aspecto. Será que tudo é assunto de opinião? Eu tenho uma opinião de que vai cair ou não vai cair um meteoro e destruir a Terra? Vamos fazer uma enquete? O mundo acabou ou não acabou? Aí 50% acham que o mundo não acabou. Não faz sentido, mas a gente vive um pouco nessa cultura. Talvez isso tenha a ver com o próprio fato de que a gente tem um grau de instrução no Brasil e no mundo muito baixo. A educação formal é um privilégio no mundo.

Pode explicar isso?

Eu acho que a pessoa não conseguir discernir o que é matéria de opinião e o que não é matéria de opinião é resultado de uma educação falha. É claro que todas as pessoas têm direito a ter opinião sobre tudo, mas, sobre tudo que é suscetível de opinião. Eu não tenho opinião sobre a lei da gravidade. Determinar se eu concordo ou não com a lei da gravidade não é propriamente matéria de opinião.

E como o senhor projeta o futuro? Estamos fadados a viver em um mundo com discussões acirradas?

Eu não sei. Muitas vezes eu fico muito desanimado e desolado ao ver as notícias. Eu tenho filhas e penso no futuro que elas vão herdar da minha geração. O que nós vamos deixar? Por outro lado, quando eu olho para as minhas filhas e converso com elas, com os amigos e colegas delas, eu vejo jovens muito mais bem informados, muito mais abertos do que a minha geração. As pessoas são muito mais capazes, muito mais atentas. Todas essas temáticas que eu mencionei para você, eu vejo não só na minha classe social. Eu vejo uma moçada andando de metrô ou dentro do ônibus que está atenta ao racismo, ao machismo e como estão reagindo. Então eu sou um pouco mais otimista. Acho que há uma abertura para os debates entre a nova geração que talvez ajude um mundo a andar melhor. Eu digo que a minha geração está legando um péssimo mundo para eles, mas eles parecem que estão sabendo reagir melhor do que nós somos capazes. Eu quero ser otimista, embora não consiga ser muito.

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