Em discussão há mais de uma década, porém sem efetivamente ter sido colocada em pauta no Congresso Nacional, a tipificação penal do devedor contumaz é apontada por entidades e órgãos de controle como avanço no combate à sonegação de impostos, que só em 2021 atingiu a marca de R$ 360 bilhões. A estimativa é da plataforma "Quanto Custa o Brasil", uma campanha mantida pelo Sinprofaz (Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional), que representa os servidores à frente do órgão responsável pela inscrição, cobrança e fiscalização da Dívida Ativa da União.

"No início do 'sonegômetro', detectávamos sonegações na casa de R$ 500 bilhões anualmente. Esse valor foi aumentando e hoje, infelizmente, ele já passa de R$ 600 bilhões considerados todos os tributos no âmbito nacional. Esse impacto é até considerado modesto por algumas pessoas que estimam que a sonegação seria de cifras ainda maiores", lamenta o procurador da Fazenda Nacional, Achilles Linhares de Campos Frias, à frente da diretoria do Sinprofaz.

Embora tenha surgido anteriormente, a criação da figura do devedor contumaz é alvo de um PLS (Projeto de Lei do Senado) apresentado em 2017 pela senadora Ana Amélia (PP-RS) e que encontra-se com o relator, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES). O objetivo do PLS é regulamentar o artigo 146 da Constituição, que dispõe sobre o conflito de competências entre a União, o Distrito Federal, estados e municípios.

Em entrevista à FOLHA, Frias abordou estratégias já consolidadas para a elaboração de uma política fiscal mais justa, considerou que a Reforma Administrativa facilitará o cometimento da sonegação fiscal e falou sobre a importância da observação da lista sêxtupla elaborada pelo Fórum Nacional da Advocacia Pública Federal pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na escolha do sucessor de André Mendonça na AGU (Advocacia-Geral da União).

Man hand with a stack of hundred US dollars bills, close up
Man hand with a stack of hundred US dollars bills, close up | Foto: Vadym Petrochenko

Boa parte da sonegação de impostos no país é cometida por poucas empresas? Qual é o panorama atual?

O grosso desse valor vem de grandes empresas, grandes contribuintes, grandes sonegadores. Não são os pequenos que impactam nesse valor, isso por uma questão complexa. Veja, o sistema tributário brasileiro incide sobremaneira sobre o consumo e menos sobre a renda e o patrimônio do que nos países integrantes da OCDE (Organização para o Comércio e Desenvolvimento Econômico). Isso implica dizer que uma pessoa que é assalariada e recebe um salário modesto, ou seja, a maioria da população, acaba comprometendo boa parte do seu rendimento na aquisição de bens indispensáveis para sua subsistência que são altamente tributados. Ao passo que aqueles que têm altas rendas ou elevados patrimônios sofrem baixa tributação. E o mesmo vale para empresas. Então, percebemos que o pequeno pode muito pouco sonegar e nem tem capital para tanto. Em relação aos assalariados, eles já têm na fonte descontado o seu imposto de renda, de modo que há muita limitação na sonegação destas pessoas. As grandes empresas, os ricos, os que têm elevado patrimônio, além de ser pouco tributados, eles podem se valer de mecanismos sofisticados, como lavagem de dinheiro, para sonegar. Então, o grosso desse valor, praticamente todo esse valor, vem sim de grandes contribuintes. E nós dizemos que o Brasil fiscal é um paraíso fiscal para os ricos justamente por tributar pouco a renda, progressivamente falando, e pouco o patrimônio. Num patamar de R$ 5 mil hoje você já se insere na maior faixa de tributação do Imposto de Renda, com alíquota de 27,5%. Então, quem ganha R$ 1 milhão ou valores maiores por mês, os verdadeiramente ricos, esses não sofrem nenhuma tributação maior em relação aos que ganham apenas R$ 5 mil. Essa é uma injustiça flagrante do nosso tema.

Um outro aspecto. O imposto sobre a herança tem uma alíquota máxima prevista pelo Senado, que é quem tem a competência para estabelecer essa alíquota, de 8%, mas é um tributo que incumbe aos estados, que fixavam alíquotas menores. A nossa alíquota média gira em torno de 4%. Há um movimento recente de aumentar para o máximo previsto, que é de 8%. Ainda assim, é muito pouco se comparado, mais ou uma vez, com os países da OCDE. Eles têm uma tributação de heranças com alíquotas médias em torno de 30% e, em alguns casos, chegando a 40%. Imposto sobre grandes fortunas, embora previsto desde 1988, até não foi regulamentado. Há um movimento de alguns países, inclusive Argentina, onde foi regulamentado. E grandes fortunas são, realmente, grandes fortunas, milhões e milhões de reais. Às vezes observamos a classe média reclamando, mas ela não seria impactada.

Seria a elite financeira mesmo, 0,1% da população?

Exatamente. E sobre a Dívida Ativa Tributária da União temos um estoque de R$ 2,5 trilhões e boa parte está concentrada na mão de poucos devedores. Cerca de 1% destes devedores concentra dois terços da dívida. O grosso se concentra na mão de uma parcela muito pequena, realmente. E a PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), a quem incumbe por determinação constitucional a cobrança dessa Dívida Ativa, tem já há alguns anos concentrado esforços para cobrar dívidas superiores a R$ 1 milhão. E isso trouxe eficiência ao órgão, aumentamos significativamente a nossa arrecadação. Inclusive, isso foi bem recebido no TCU (Tribunal de Contas da União), que validou essa tentativa de eficiência e arrecadação dos recursos que ingressam no erário para poderem satisfazer as necessidades da população e políticas públicas de maneira geral.

Além de faltar para as políticas públicas, há um efeito danoso na livre concorrência? Qual é a importância de avançarmos com a agenda da diferenciação entre o devedor contumaz e o eventual e por que esta discussão está tão atrasada?

É um debate que importa muito e como representante do erário eu fico muito confortável até para conversar porque ele impacta menos ao erário do que à própria concorrência. As empresas honestas, sérias, são as maiores prejudicadas nesta questão do devedor contumaz. O que seria esse devedor? É aquele que abre uma empresa com o intuito deliberado de não pagar tributos. No Brasil, sonegar é crime. Se você deixa de declarar um tributo, você tenta evitar a cobrança do mesmo. Isso é crime. Omitir é falsear informações. No caso do devedor contumaz, para evitar a incidência da esfera penal, ele declara o tributo. Ele abre uma empresa com o fim específico de não pagar tributos, ele declara, mas não paga. Ele abre a empresa com esse fim porque primeiro não há incidência da atuação penal, ele se livra de esfera penal, fica só sujeito à cobrança tributária. Só que, muitas vezes, essas empresas estão em nomes de laranjas, pessoas que não são localizadas. Esta empresa funciona por um lapso temporal e depois fecha deixando um prejuízo gravíssimo no setor. Eu diria que há prejuízo ao erário, mas o que é mais severamente impactado, no meu sentir, é o empresário sério. Ele sofre uma concorrência desleal muito forte por parte deste segmento do devedor contumaz. É uma situação muito delicada.

Temos projetos de lei no Congresso tratando do tema há alguns anos. Inclusive, por ocasião da Reforma da Previdência houve o encaminhamento de um Projeto de Lei, porém ele não avançou. É uma mera lei ordinária, bastaria um quórum simples para a aprovação. Ao passo em que a Reforma Previdenciária, precisando de quórum qualificado por ser uma emenda constitucional e tramitar em duas casas e em dois turnos, foi rapidamente aprovada em oito, nove meses. Percebemos que há uma resistência do Parlamento a uma aprovação do combate ao devedor contumaz. Esse projeto encaminhado em 2019 previa dívidas superiores a R$ 15 milhões, ou seja, não era para pegar qualquer um. Ao não aprovar, o Parlamento acaba beneficiando mais uma vez os ricos, grandes e desonestos que atuam de modo ilícito.

Os vemos atuarem em causa própria. O próprio Ciro Nogueira (PP), recém-nomeado à Casa Civil, é apontado com uma dívida de R$ 17 milhões. A PGFN possui um relatório de quem são esses parlamentares?

Sim. Os dados da Dívida Ativa da União, que ficam sob responsabilidade da PGFN, que é o órgão responsável pela inscrição e cobrança da mesma, são públicos. Então qualquer pessoa pode consultar as dívidas por estado, município, setor, valores. É um instrumento amigável, basta entrar no site da PGFN. Existe um aplicativo muito interessante em que você pode pesquisar por pessoa jurídica apenas os devedores próximos a você e a dívida de cada qual. São dados públicos e qualquer pessoa pode pedir pela Lei Acesso à Informação, também. De fato, existem parlamentares que são grandes devedores perante o erário e às vezes, outros tantos, que não têm eles mesmos dívidas, mas representam o capital que investe nas suas campanhas eleitorais. Então, há toda essa resistência no nosso Parlamento sim, infelizmente. Isso também vem sendo a explicação para essa teoria da Ciência Política que os consideram como veto-players, esses atores políticos com poder de veto e, portanto, combate à autuação destas figuras, como o devedor contumaz ou a modificação do sistema tributário brasileiro para ser mais justo. Inclusive, houve um levantamento destes parlamentares, é um dado público e pode ser requerido à PGFN. E a PGFN também tem as suas limitações para a cobrança porque os sistemas recebem pouco investimento, o orçamento é sempre escasso, a carreira de apoio não existe, temos coisa de 0,6 servidor por procurador, então há toda uma desestruturação do órgão. Ainda assim, o órgão tem feito um trabalho brilhante e foi avalizado pelo TCU (Tribunal de Contas da União), que verificou um aumento na eficiência.

Ainda sobre a estrutura da PGFN, como a Reforma Administrativa pode impactar na atuação destes servidores?

Gravemente. Ela pode dificultar a cobrança da Dívida, na verdade, a atuação dos órgãos do estado como um todo e do estado em si. É uma reforma atrasada, mal pensada, diria até que é uma reforma de intuito duvidoso, para dizer o mínimo. O próprio Ministério da Economia quando a encaminhou falou em New Public Management, a nova administração pública, ou novo serviço público, que é um termo acadêmico utilizado para justificar o início do neoliberalismo no âmbito da administração pública. No final da década de 1970, começou o movimento neoliberal com Margaret Thatcher na Inglaterra, em 1980 nos Estados Unidos, espalhou um tanto para outros países da Europa. E a academia acabou dando origem ao estudo dessa teoria, que baseou, segundo o Ministério da Economia, o encaminhamento dessa reforma. O próprio setor acadêmico, no entanto, já rechaçou a New Public Management a considerando uma teoria ultrapassada. A ideia básica era trazer os princípios e toda a lógica do setor privado para o setor público. Isso não pode ser feito de modo simplista e a academia verificou que houve exageros e em muitos países onde foi implementado, foi revisto ou está sendo revisto. A administração pública tem uma série de especificidades e não podemos simplesmente transportar a atuação privada para o setor público. Há outros valores envolvidos, uma lógica de estado por trás, até por não buscar o lucro em várias situações. Podemos falar de educação pública, saúde pública, segurança pública, relações externas, cobranças de dívida pública, que na maior parte fica a cargo do setor público. E, com o fim da estabilidade e o aumento dos cargos em comissão, ambos aspectos previstos nessa reforma, teremos uma situação muito delicada para os agentes públicos que atuam cobrando e autuando poderosos. Esses agentes poderiam ficar reféns de pressões políticas perigosas para o nível da complexidade e da importância da função institucional. Seria extremamente temerário que agentes que participassem da inscrição, cobrança e fiscalização da Dívida Ativa não tivessem estabilidade e ficassem à mercê de episódios e dos governantes de plantão, alguns que estão nos mais altos escalões do governo e mandatos parlamentares. É colocar o agente público com missões tão elevadas trabalhando em condições precárias. E há um enorme incremento de cargos em comissão, ou seja, aqueles apadrinhados políticos para cargos variados, pessoas que não têm compromisso com o estado, com o bem atuar público, que portanto ficam mais propensos às pressões políticas. Vejo como um marco regulatório da corrupção.

É possível ainda esperar que o presidente Jair Bolsonaro leve em conta a lista sêxtupla para a escolha do novo AGU?

É fundamental que tenhamos no órgão quadros qualificados das carreiras, membros da AGU e que contam com respeito, admiração e reconhecimento dos seus pares. Consideramos fundamental que o Executivo atente para essa questão sob o aspecto democrático. Seria fundamental que tivéssemos na AGU pessoas respeitadas pelos seus pares para gerar um bom ambiente de trabalho, de estímulo e de reconhecimento dos colegas aos profissionais que consideram como os mais preparados e aptos. Seria extremamente temerário colocar uma pessoas que não tivesse esse reconhecimento, isso pode gerar um clima institucional muito negativo, um desânimo no exercício das funções e gerar a falta de liderança do chefe maior da instituição.

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Folha de Londrina · ENTREVISTA | "O Brasil é um paraíso fiscal para ricos"

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