As normas e a preocupação com a preservação do meio ambiente brasileiro voltaram à pauta na última semana. Na segunda-feira (28), o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), presidido pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, aprovou a revogação de suas resoluções 302 e 303, que estabeleciam critérios para a preservação de áreas litorâneas de manguezais e restingas, assim como áreas em torno de reservatórios de água, como mananciais urbanos.

Governo alega perseguição de outros países em relação a temas como queimadas no Pantanal
Governo alega perseguição de outros países em relação a temas como queimadas no Pantanal | Foto: Ernesto Carriço/Enquadrar/Folhapress

O conselho também revogou a resolução 284, que submetia projetos de irrigação ao processo de licenciamento ambiental, e aprovou ainda uma nova resolução que permite a queima de resíduos de poluentes orgânicos persistentes - como pesticidas, inseticidas e fungicidas usados na agricultura - em fornos de produção de cimento. As medidas causaram uma repercussão negativa muito grande em instituições ligadas ao meio ambiente.

Um dia depois, a Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu os efeitos da revogação das normas 302 e 303. Em sua sentença, a juíza federal Maria Amelia Almeida Senos de Carvalho, da 23ª Vara Federal Criminal, alegou "evidente risco de danos irrecuperáveis ao meio ambiente" para decidir pela antecipação dos efeitos da tutela. No entanto, na sexta-feira (2), o TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região) restabeleceu a validade das resoluções aprovadas pelo Conama, atendendo a um recurso da AGU (Advocacia Geral da União).

Em entrevista a FOLHA, o promotor Alexandre Gaio, do Núcleo do Meio Ambiente do Ministério Público do Paraná, critica a atual política ambiental do governo federal e também a mudança na formação do Conama, que diminuiu a participação de representantes da sociedade civil e aumentou o poder de decisão nas mãos de conselheiros ligados ao governo e ao setor produtivo. "Me parece bastante claro que a atual configuração do Conama é um caminho aberto para a revogação de outras resoluções que diminuem o patamar de proteção ambiental", afirmou.

O promotor Alexandre Gaio, do Núcleo do Meio Ambiente do Ministério Público do Paraná, critica a mudança na formação do Conama
O promotor Alexandre Gaio, do Núcleo do Meio Ambiente do Ministério Público do Paraná, critica a mudança na formação do Conama | Foto: Divulgação/MPPR

Que tipo de impacto estas mudanças aprovadas na semana passada no Ministério do Meio Ambiente podem trazer?

Enxergamos com muita preocupação estas decisões que foram adotadas no Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente). São decisões que implicam em uma clara flexibilização das normas ambientais, implicam em um claro retrocesso de proteção ambiental de diversas áreas e temas. E evidenciaram o quanto a configuração atual do Conama não é viável para ter uma representatividade adequada da sociedade brasileira. Porque claramente não houve sequer possibilidade de discussão, de aprofundamento das questões que ali foram tratadas, das decisões tomadas e muito menos a possibilidade, a viabilidade de uma insurgência de modo mais efetivo da sociedade civil.

Então, nos preocupa muito porque todas as decisões, sem exceções, as quatro decisões, seja a questão do coprocessamento e incineração de agrotóxico em cimenteira, seja a resolução 284, que dispensa do licenciamento ambiental as atividades de irrigação em grandes propriedades, seja a resolução que retira uma faixa de área de preservação permanente à margem de reservatórios de água, como por exemplo dos mananciais, seja em relação a resolução 303, que retira e exclui uma faixa significativa de vegetação de restinga do regime jurídico de APPs (Áreas de Preservação Permanente). Todos estes casos são casos que trazem uma diminuição da proteção ambiental e estão de certa forma alinhados a um discurso já externalizado pelo Ministério do Meio Ambiente de flexibilização das normas.

Estas novas medidas abrem um precedente muito grande para os grupos empresarias, imobiliários em detrimento das reservas ambientais?

Abre uma avenida enorme para diminuir a biodiversidade, para desmatar a restinga, diminuir um compartimento do bioma da Mata Atlântica, que já está tão ameaçado. E a principal ameaça é o setor imobiliário, porque é justamente ele o maior interessado em ocupar estes espaços , próximos a regiões litorâneas, ao mar, que tem um atrativo, sem dúvida, paisagístico e há um grande risco se esta decisão de revogação prevalecer no poder judiciário. A gente espera que não. Há um grande risco de uma agravamento ainda maior da situação do bioma da Mata Atlântica, que já está tão ameaçado que é a restinga.

Há uma crítica grande sobre as mudanças implementadas pelo governo federal na composição dos membros do Conama e a diminuição, consequentemente, de conselheiros ligados a entidades da sociedade e um aumento de representantes pró-governo e setor econômico. Estas mudanças no Conama têm sido decisivas para medidas como estas?

Me parece bastante claro que a atual configuração do Conama é um caminho aberto para a revogação de outras resoluções que diminuem o patamar de proteção ambiental. O que ocorreu na última segunda-feira (28) é bastante ilustrativo do risco que nós corremos se não houver, emergencialmente, um retorno ao status quo de como era antes o Conama ou então uma reconfiguração do Conama que traga uma efetiva participação da sociedade. Com a alteração que ocorreu no ano passado houve uma diminuição da participação da sociedade civil no conselho de 75%.

Eu acompanhei a reunião e verifiquei que com os votos do poder executivo somados aos dos setores econômicos é impossível, não tem como se ter algum tipo de possibilidade diferente daquelas que são propostas pelo próprio governo federal e pelo Ministério do Meio Ambiente.

Como reconfigurar a formação do Conama?

Existe uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) ajuizada pelo Ministério Público Federal, através da Procuradoria-Geral da República, quando a procuradora-geral era a Raquel Dogde, que questiona o decreto federal que reconfigurou, desnaturou e descaracterizou o Conama com toda esta redução da participação da sociedade civil.

Esta ADPS está no STF (Supremo Tribunal Federal) com a ministra Rosa Weber e nós temos esperança que esta ADPS seja julgada procedente para que seja restabelecida a composição anterior do Conama. Me parece que esta é a única forma de evitar que outros tantos absurdos e retrocessos aconteçam.

Em uma reunião ministerial em abril, que teve as imagens divulgadas autorizadas pelo STF, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, usou a expressão "passar a boiada" como uma forma de indicar que o governo deveria aprovar seus projetos da área ambiental sem muito alarde, aproveitando a preocupação do País e da imprensa com a pandemia da Covid-19. O governo federal está "passando a boiada" com essas medidas?

A postura e a conduta do ministério do Meio Ambiente nas temáticas ambientais estão bastante claras e alinhadas com essa fala que ocorreu na reunião dos ministérios. Porque de fato são diversas as iniciativas para diminuir a proteção ambiental. Vou citar aqui o despacho 4.410 do Ministério do Meio Ambiente, que buscava retirar a aplicação especial da lei da Mata Atlântica e anistiar os que destruíam mata ciliar e áreas de APP por conta de uma pretensa do dispositivo do código florestal de modo prevalente. Da mesma forma, surgiu na imprensa, uma minuta de decreto federal diminuindo a abrangência do bioma da Mata Atlântica em mais de 10% do território.

Isso somado as outras sinalizações, como, por exemplo, a própria não utilização de verbas destinadas ao Ministério do Meio Ambiente para as políticas ambientais, a diminuição da fiscalização por parte do Ibama. Isso é algo objetivo que a gente consegue perceber. Todas essas iniciativas estão dentro de uma mesma lógica de flexibilização das normas ambientais e atendimento a interesses econômicos. Para nós está muito claro este caminho.

O presidente Jair Bolsonaro já fez várias declarações alegando que há uma campanha de difamação das políticas ambientais do governo na mídia e que há uma perseguição e um exagero de vários países com o Brasil quanto a temas como as queimadas na Amazônia e no Pantanal. O discurso oficial do governo vai na contramão do que está sendo feito na prática para a preservação do meio ambiente?

O Ministério Público trabalha com questões objetivas. E o MP respeita e reconhece o que é produzido do ponto de vista científico. Então, nós temos dados de imagens de satélites, de questões que são objetivas, como as revogações de normas. Tem o exemplo do despacho 4.410 e destas resoluções revogadas no Conama, e temos, por exemplo, a dificuldade de entendimento por parte de certos setores de dados que são objetivos.

No Pantanal, por exemplo, o próprio Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) demonstrou que o número de queimadas neste ano é superior a 230% em relação ao ano anterior. O MP tem que trabalhar com dados que são objetivos , com base na realidade e com base nisso vai pautar suas condutas e na defesa da ordem jurídica, do direito fundamental do meio ambiente e, em última análise, na defesa da sociedade.

Com a maioria dos votos do Conama alinhados ao governo federal, o caminho para a reforma de algumas dessas decisões é a justiça?

Sim. Me parece que quando não é possível no meio colegiado, que seria o ambiente democrático para se discutir e aprofundar as temáticas trazidas nessas propostas de revogação de resoluções e como isso não ocorreu, no meio oportuno, com uma ampla participação da sociedade, com o aprofundamento das discussões. Veja que mesmo com um pedido de vistas por parte de alguns conselheiros, todo o governo, junto com os setores econômicos, foram contrários ao simples pedido de vistas para melhor análise da questão. Então, o poder judiciário é o único meio que restou agora nesta situação para cessar esses ilícitos e voltar a proteger áreas que são representativas, como a restinga.

Nós temos já uma restinga no Brasil que já vem sendo bastante degradada, bastante pressionada pelo setor imobiliário . A restinga que exerce funções ambientais e sócio-ambientais essenciais, indispensáveis. Por exemplo, o controle da ressaca , da cheia do mar, inclusive viabilizando uma economia de milhões de dinheiro público por conta das obras necessárias. Matinhos é um exemplo. Há um projeto do governo do Estado para a engorda da praia, um dos fatores para que se necessite da engorda da praia é o fato de não haver restinga, que é uma vegetação protetiva deste local. Temos no litoral inteiro do Brasil uma situação bem clara da importância da restinga para toda a sociedade e me parece que em relação a essas quatro decisões tomadas no Conama, o único caminho agora é fazer o questionamento no poder judiciário.

A comunidade internacional tem uma imagem cada vez mais arranhada do Brasil em relação às políticas de preservação, sobretudo pelo que tem acontecido na Amazônia e no Pantanal. Quais as consequências deste cenário ao País?

A imagem do País já vem sendo arranhada há algum tempo e neste caso específico das revogações das resoluções do Conama, não preciso ir nem muito longe. Há um claro descumprimento de acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. O acordo internacional de Paris, por exemplo, que trata da redução da emissão dos gases do efeito estufa, é diretamente afetado por conta de uma revogação que tem como consequência prática a diminuição da vegetação nativa da restinga , lembrando que a restinga não só tem este efeito de prevenir, de ajudar na redução destes índices, mas também na própria adaptação aos efeitos das mudanças climáticas, em relação ao aumento progressivo do nível do mar. Então, certamente isso fica claro.

Tem a convenção de Ramsar, que tutela as condições dos ambientes úmidos, dos brejos, da restinga, das florestas paludosas. Também há uma afronta a esta convenção e certamente não só a imagem do País fica arranhada, mas também, inevitavelmente, haverá impactos negativos também na seara econômica porque diversos países, diversos importadores de produtos brasileiros, não têm interesse em importar de um país que descumpre as normas ambientais. Não tem interesse em importar produtos que possam ter, direta ou indiretamente, relação com atividade degradadora do meio ambiente e que contrariam todas as metas e acordos internacionais.