A aposentadoria, para muitas pessoas, é um momento de alívio e descanso, aguardado com ansiedade. Mas não para Zilda Romero. Só pela voz já é possível perceber que ainda há muita energia e idealismo. Aposentada oficialmente como juíza de direito desde a última segunda-feira (31), Romero compartilhou com a FOLHA alguns fatos marcantes desse caminho.

Imagem ilustrativa da imagem Magistratura além da toga
| Foto: Acervo Pessoal

Nascida na zona rural de Londrina dos anos 50, veio para a cidade com cerca de 11 anos, onde cursou o ginásio e o “normal” (nome antigo dado ao curso de magistério infantil). Logo depois, prestou vestibular para direito e começou a graduação na UEL (Universidade Estadual de Londrina), sempre no intuito de ser juíza.

O sonho teve uma pausa – Romero se casou, experimentou a maternidade e advogou por alguns anos –, mas nunca foi para a gaveta. Já divorciada e com uma filha para criar, ela voltou aos estudos e foi aprovada, com quase 40 anos, no primeiro concurso público que prestou. Mais madura e experiente, a juíza deu início a uma trajetória marcante, sobretudo no enfrentamento à violência doméstica e familiar.

Foram 32 anos na magistratura, passando por Cruzeiro do Oeste, Sangés, Alto Piquiri, Xambrê, Umuarama, Foz do Iguaçu e, finalmente, Londrina, onde esteve por quase 12 anos à frente do Juizado de Violência Doméstica e Familiar, nome oficial da Vara Maria da Penha.

Como estão sendo esses primeiros dias da nova rotina?

Eu aposentei segunda, hoje (quarta-feira, 2) é meu terceiro dia. Parece que ainda não caiu muito a ficha. Já chorei bastante, porque não é fácil deixar a toga que eu tanto amo. Uma amiga me disse que eu parei ainda com o brilho nos olhos. Eu sempre tive esse brilho, porque ia para o fórum com o maior amor, com a maior alegria. Sempre falei para as minhas assessoras, quando a gente faz aquilo que ama, não sente o cansaço, não sente o peso. Como eu amava tanto aquilo que fazia, nunca me cansou. Eu podia trabalhar fora de hora, saía do fórum, me arrumava e ia para outro evento. Aquilo não me desgastava. A gente tem que escolher uma profissão que ama, porque nunca vai pesar. Se a gente está fazendo um trabalho onde estamos contrariadas, aquilo é um sacrifício. Eu sempre trabalhei, e trabalhei muito, mas não sinto aquele peso de sacrifício. Eu sempre gostei.

A senhora sempre quis ser juíza?

Desde criança. Era meu sonho. Quando eu assistia filmes, que eram poucos, achava que o juiz só atuava no tribunal do júri. Achava aquilo lindo, não sabia que o júri é só para os crimes dolosos contra a vida. Eu fiz poucos júris na minha carreira, atuei muito em vara de família, em vara criminal, mas sem ser da competência do júri. Mas, desde criança, meu sonho era ser juíza. Eu fui em busca do meu sonho e realizei ele. Fui muito feliz nesses meus 32 anos de juíza. Sempre trabalhei com amor, com entusiasmo, tentando me preparar o melhor possível, preocupada em não cometer injustiças, pensando no outro e em fazer justiça. O meu maior medo era cometer uma injustiça. Quando você aplica uma condenação, lida com a liberdade das pessoas. Na área cível, você lida com o dinheiro delas ao dar uma sentença. Na área de família, com o sentimento; na adoção, com a vida de uma criança. Eu sempre senti o peso dessa responsabilidade, sempre meditei e pensei muito, para prolatar uma sentença e dar uma decisão, para aplicar uma pena. Sempre com essa preocupação. Você tem que ter o conhecimento jurídico, mas também tem que conhecer a comunidade onde está, onde vai sentenciar. Eu sempre fui a favor daquele juiz que sai do gabinete.

Seu primeiro local de trabalho foi Cruzeiro do Oeste, como juíza substituta. Quais foram os desafios, os medos, as inseguranças? Como a senhora se sentia naquela época?

Como eu comecei há mais de 30 anos, as primeiras comarcas por onde passei nunca tinham tido uma juíza mulher. Então, em Cruzeiro do Oeste, no início, parecia que eu carregava o mundo nas costas, tamanha a responsabilidade que eu sentia. Era tanta sentença para prolatar, tantas decisões a tomar... tudo era novo. Todo processo que eu pegava, tinha que estudar muito. E o pior, eu comecei na época da datilografia. Todas as sentenças eram datilografadas. Se você errava uma palavra, tinha que jogar tudo fora e começar de novo. Eu lembro que varava madrugadas prolatando sentença. Eu não tinha um sábado nem um domingo. Eu trabalhava todos os dias até umas 2h da manhã. Durante a semana estava fazendo audiência, atendendo advogados, despachos, decisões... e naquela época não tinha nenhum assessor. A gente era sozinha, sozinha, sozinha. O computador chegou bem depois. Acho que comecei a mexer com isso lá por 94. No começo foi um peso muito grande, e acho que só depois de uns 15 anos de carreira a gente vai sentindo mais leveza.

Como foi, na posição de juíza, ver a legislação sobre violência doméstica nascer?

Antes de 2006 e da Lei Maria da Penha, a violência existia, mas as mulheres não se sentiam encorajadas a procurar uma delegacia, fazer um boletim de ocorrência, denunciar o homem agressor. Elas sofriam caladas. A Lei transformou a violência doméstica em crime, pois antes era delito de menor potencial ofensivo, e passou a haver uma punição para o homem agressor. Com a divulgação da lei, com as campanhas, as mulheres foram se conscientizando. Mas, mesmo assim, ainda precisa haver muita informação sobre a lei, porque muitas mulheres ainda desconhecem seus direitos, têm medo de denunciar, têm vergonha, acham que se fizerem uma denúncia, que se processarem o homem agressor, vão perder o direito à propriedade, vão perder a guarda dos filhos... então nós precisamos mesmo esclarecer as mulheres. Porém, como eu digo sempre, não basta uma lei que é considerada pela ONU [Organização das Nações Unidas] como uma das três melhores do mundo no enfrentamento à violência doméstica, se não tivermos políticas públicas para proteger essas mulheres.

O seu olhar sobre o que é a violência doméstica mudou muito nesses 12 anos de trabalho?

Mudou muito. Porque quando eu estava atuando em outras áreas – cível, família, criminal – não tinha noção do que era a violência doméstica e familiar. Só quando fui para o juizado especializado é que tive ideia do tamanho da violência que as mulheres sofrem, ouvindo as mulheres durante todos esses anos (eu ouvia por dia 5 ou 6 vítimas de violência), vendo o sofrimento, vendo a força das mulheres, que, mesmo diante da violência, tinham dignidade e força ou para continuar junto com o agressor e criar os filhos, ou para separar e começar tudo de novo. Então, se eu já admirava as mulheres, passei a admirar muito mais. E, como juíza e autoridade, sinto até hoje que tenho que ser a voz dessas mulheres que não têm voz.

O que a senhora diria para uma mulher jovem que sonha com a magistratura?

O que a gente observa é que as mulheres são muito mais estudiosas e dedicadas. Então, de uns anos para cá, começaram a passar muito mais mulheres. Mas ainda não tivemos nenhuma mulher como presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, nenhuma mulher na corregedoria, nenhuma mulher na presidência da associação dos juízes... Eu acho que agora é que as mulheres vão começar a chegar lá. Tem que haver essa igualdade. O que as mulheres querem é o que está na lei: igualdade de direitos, igualdade para estar em qualquer lugar, sem sofrer preconceito e discriminação. Porque o que se vê todos os dias é que as mulheres ainda sofrem assédio, importunação sexual, são mais vítimas de toda sorte de crítica. A mulher tem que ser muito mais competente que o homem, porque ela é muito mais observada. Eu tive essa dificuldade no começo, porque fui a primeira juíza mulher dos lugares e causei um impacto grande. As pessoas viam no juiz, na figura de autoridade, a figura de um gomem. Hoje em dia, acho que não há mais esse nível de discriminação. Isso já foi quebrado. Mas ainda temos que abrir caminhos.

Quais são os seus planos para a aposentadoria?

A magistratura foi um sonho que eu realizei e encerrei com a consciência da missão cumprida. Pensei muito para requerer a aposentadoria, porque essa palavra pesa. Mas eu acho que tudo tem a hora certa. Com 32 anos de carreira, achei que estava na hora de parar na magistratura, mas jamais de trabalhar. Eu não parei para descansar. Não estou cansada. A luta continua. Com a experiência que eu adquiri em todos esses anos, como advogada, como juíza, como professora, hoje tenho uma vivência muito vasta e não vou guardar para mim. Eu quero retribuir. O tanto que eu recebi, tenho que dar de volta para comunidade e para a sociedade. Então vou continuar trabalhando como voluntária, vou continuar participando da rede de enfrentamento. É como falo sempre: parar jamais, pois a luta continua.

Imagem ilustrativa da imagem Magistratura além da toga
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Vi no seu Instagram que a senhora toca acordeão. Fiquei curiosa... É alguma tradição familiar ou afetiva?

Falando em família, queria só falar que tenho dois netos. Filhos da minha filha Vanessa, o José Felipe e o João Mateus. É a família próxima. Tenho agora, vivos, oito irmãos. Um homem e sete mulheres. Então sempre convivi muito com mulheres, minha mãe era muito forte. O acordeão eu ganhei de aniversário do meu pai quando tinha 15 anos. Com 12 anos, já na escola, entrei para estudar música e acordeão. E tocava muito nesse período, 13, 14, 15, 16, 17 anos. Quando eu tinha 17, meu pai morreu, e eu fechei o acordeão, porque ele é quem gostava de me ouvir tocar. Fiquei anos sem tocar o acordeão. Porque toda vez que eu tocava minha mãe chorava muito, minhas irmãs choravam. Então eu fui abandonando. Mas estou voltando, começando a tocar de novo. Estou recordando. Eu tenho até hoje o acordeão que ganhei do meu pai quando completei 15 anos de idade. É amor, é história, e amo meu acordeão. Sempre me acompanhou por onde eu fui.