Em vigor desde agosto do ano passado, a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) pode sofrer modificações já em 2022. Trata-se de um anteprojeto de lei que visa o tratamento de dados pessoais para fins de segurança pública, defesa nacional e atividades de investigação, a chamada LGPD Penal. A atual LGPD não normatiza diretamente os casos de uso de dados para segurança pública e persecução penal. Na própria lei que a criou, o texto aponta que será editada uma lei específica e esta norma garantirá o devido processo legal, os princípios de proteção de dados e os direitos dos titulares. No debate acerca da criação da LGPD Penal, portanto, há o interesse comum de construção de uma lei que não inviabilize o tratamento de dados nas atividades policiais, mas que não viole direitos fundamentais e crie situação de confiança entre Estado e cidadão.

Imagem ilustrativa da imagem Lei Geral de Proteção de Dados pode ter modificações no âmbito criminal
| Foto: Peck Advogados/Divulgação

A evolução da legislação tem o desafio de promover um equilíbrio entre a investigação penal, atividade que demanda tratamento de dados de diversos atores, e os direitos fundamentais de privacidade e proteção de dados. Em novembro de 2020, uma Comissão de Juristas apresentou à Presidência da Câmara um anteprojeto de lei sobre a temática, que possui 12 capítulos e 68 artigos, divididos em oito eixos temáticos, entre eles a segurança da informação e a transferência internacional de dados.

Advogado e sócio do Peck Advogados, em São Paulo, Henrique Rocha é mestre em direito empresarial pela Universidade Nove de Julho com Módulo Internacional pela Universidade da Coruña (Espanha), sócio gestor e DPO (diretor de proteção de dados) do escritório e aponta que a lei brasileira foi inspirada na da União Europeia. Ele destaca a importância do equilíbrio para esse tipo de legislação. "Se de um lado a gente não deve criar obstáculos à persecução penal, também não se pode deixar uma fiscalização acertada que suprima, por exemplo, direitos e garantias fundamentais, sob o pretexto de gerar uma investigação a quem quer que seja", afirma.

Quais as principais mudanças que ocorrerão na LGPD com a possível aprovação do anteprojeto de lei conhecido como LGPD Penal?

Um dos grandes pontos que se questionava, tanto aqui no Brasil quanto na Europa, é em qual momento a gente tem que tratar dados de ordem criminal, dados aplicáveis especificamente à repressão de atividades de infrações penais. Porque esta tipificação de dado na Europa tem uma classificação especial que no Brasil nós não temos para fim desse tratamento. No Brasil, o artigo 4º inciso 3 da LGPD deixa claro que, para determinadas situações voltadas à persecução penal, a lei geral de proteção de dados e os princípios não são aplicáveis. Então a gente fica num hiato, em um espaço em que há necessidade de se melhor aclarar esse ponto.

Como esse hiato ocorre?

Por hipótese, um criminoso não poderia requerer para não tratar seus dados, porque existe a LGPD. Se está cometendo uma infração, não teria o menor sentido ter essa aplicabilidade. Mas como que se consegue, em alguma medida, mitigar esse hiato no ordenamento jurídico brasileiro? Existem algumas recomendações trazidas por autoridades ao redor do mundo, e existe uma tentativa de alguns projetos de lei pelo menos desde 2019 tentando equalizar essa situação. Desde 2018 a gente passa a ter uma legislação que regula o tratamento de dados. Esta mesma legislação acertadamente não obsta o tratamento de dados pessoais para fins de persecução final, porque seria uma incoerência. Existe movimento aqui no Brasil para que haja esse anteprojeto voltado a esclarecimentos e uma melhor acomodação na matéria penal no que se refere ao tratamento de dados pessoais

Como deve ser a LGPD ideal para não se tornar uma camisa de força nas investigações criminais e, ao mesmo tempo, garanta uma privacidade até um certo nível para as pessoas?

O anteprojeto, em seus princípios, já começa com direitos fundamentais. Se isso se cumprir já tem um encaminhamento positivo. Eu preciso que os agentes, órgãos de controle daqueles que tratam esses dados, sigam a regra. No aspecto criminal, a gente deve caminhar na mesma medida, fazendo o projeto, debater bastante, ter respeito aos princípios e manter garantias constitucionais.

Também é preciso viabilizar o tempo de adequação para os órgãos de investigação para que eles consigam estudar a nova norma. Também é necessário investir em tecnologia. As corregedorias que vão avaliar devem estar bem preparadas para enfrentar esse tipo de cenário. Vamos criar mais uma lei em um país de leis, e ela deve ser avaliada da maneira mais abrangente possível. Quando falo de uma investigação criminal frustrada por algum motivo, isso significa recurso público investido. Há um desprendimento gigantesco de recursos e ele é pago pelo erário. É preciso ter segurança jurídica. Não se deve tentar sanar todos os pontos de forma muito fechada. É em conjunto que se consegue sair de um risco de ter um "jabuti" e o Supremo Tribunal Federal declarar a lei como inconstitucional. Aí é um cenário de caos e de instabilidade normativa e legislativa em um país que já tem muita instabilidade.

O Ministério Público já criticou o anteprojeto, uma vez que existe uma possibilidade de dificultar ainda mais as investigações criminais. Quais tipos de obstáculos podem existir?

O marco civil da internet permite que o Ministério Público e as autoridades policiais façam requisições diretamente aos agentes de tratamento e ao poder judiciário, refazendo as representações para esses bloqueios, mas à medida que você tem mais um anteprojeto trazendo regras, elementos e requisitos para esse tipo de interação nasce essa percepção do Ministério Público de haver mais obstáculos no que se refere a essa atividade. As colocações do MP são bem-vindas, mas é necessário trabalhar um pouco mais nessa frente. Se de um lado a gente não deve criar obstáculos à persecução penal, também não se pode deixar uma fiscalização acertada que suprima, por exemplo, direitos e garantias fundamentais, sob o pretexto de gerar uma investigação a quem quer que seja.

Como fica o direito ao esquecimento à luz da LGPD Penal?

Imaginávamos que uma decisão do STF teria pacificado isso de maneira definitiva. Na Europa há a possibilidade de ter apagado o resultado dos provedores de busca. No exemplo que deu origem, um cidadão da Europa quitou seu débito de imposto com o Estado, mas nos buscadores de internet ainda constava informações disso. Ele apelou para a autoridade espanhola e na corte da União Europeia, porque alegou que essa exposição do seu passado nas ferramentas de busca feria o direito à privacidade. No Brasil houve um caso, da década de 1950, em que os sucessores da vítima de um crime solicitaram que uma emissora de TV não veiculasse mais informações sobre o episódio, porque feria a memória da vítima. O Supremo entendeu ao julgar o caso que o direito ao esquecimento não se aplica ao Brasil. No entanto, algumas decisões de São Paulo caminham na contramão disso, porque quando o STF julgou a matéria foi antes do vigor da LGPD. Me parece que não há cabimento que informações de crimes sejam simplesmente apagadas. A história faz parte da gente. Não me parece que o esquecimento seja um caminho acertado, principalmente no que se refere a figuras públicas.

Existe a possibilidade de sobrecarga ainda maior do que já existe hoje do Poder Judiciário?

À medida que eu trago mais elementos, seja no anteprojeto de normas ou de outros itens que exijam autorização prévia ou nasça a possibilidade de você embaraçar uma investigação ou ofender um direito, certamente o Poder Judiciário vai ser acionado e vai avolumar demandas. Se de um lado a gente tem que ser célere e assertivo na condição de investigações em um ambiente cada vez mais digital, nós não podemos sobrepor leis que devem ser harmônicas. Não devíamos ter um acionamento repetitivo de mais uma área do direito que está sendo levada a campo. É bom calibrar bem isso para evitar mais obstáculos para a persecução e aplicação da legislação penal.

A LAI (Lei de Acesso à Informação) e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) são leis que defendem garantias constitucionais, mas ao mesmo tempo, em certos aspectos, entram em conflito. Como é que o sr. analisa isso?

O Tribunal de Contas da União já emitiu um parecer e outros órgãos já emitiram notas técnicas, indicando que a LGPD não deve ser utilizada como obstáculo para justificar a confidencialidade ou omissão de informações de ordem pública ou de interesse público para que haja, por exemplo, a ausência de justificativa de não apresentação numa resposta formal por uma autoridade que seja protelada por um agente, por outro padrão, por uma situação.

Entendemos que em determinados movimentos, por um segredo de estado, você deva, como exceção, aplicar algum tipo de restrição. Mas utilizar como muleta para obstaculizar o acesso à informação não deve ser um caminho saudável. Há princípios respeitando a transparência. É importante que haja respeito não só a essas duas leis, que a Constituição trata como regra para publicização de atos tanto administrativos quanto judiciais.

Sobre o uso indevido da LGPD, há exemplos como o caso do Geraldo Alckmin, que decretou sigilo de 100 anos sobre informações acerca do Metrô e, agora, o presidente Jair Bolsonaro fez o mesmo no registro das visitas de pastores. Como evitar que as autoridades usem indevidamente essa lei?

A legislação não tem espaço para esse tipo de manobra. O que a gente poderia trabalhar primeiro é conscientização da população de exigir e saber de fato qual é a posição de determinada autoridade que, sendo pública, deve prestar contas à população e aos órgãos de imprensa, que são tão valiosos para a manutenção da democracia e ao exercício de direitos de informação. Em paralelo, é necessário que órgãos como o TCU emitam orientações e recomendações. Utilizar do argumento de que há um interesse estratégico por parte de qualquer autoridade que seja para encampar informações ou denúncias públicas não me parecem que devem prevalecer quando, por exemplo, levadas a uma decisão judicial.

Por princípio, tem de se ter, especialmente no segmento da atividade pública, um encaminhamento de trazer luz ao ato e se há necessidade de se justificar o sigilo de alguma informação. Essa justificativa precisa ser muito bem delineada, defensável e sustentável, porque do contrário, a regra deve ser luz, transparência e clareza nas informações.

Uma técnica de investigação muito utilizada pela polícia é a interceptação telefônica autorizada pela Justiça. Essa é uma técnica cada vez mais difícil de ser aplicada, uma vez que os aplicativos de conversa são criptografados. Como é que o sr. analisa esse tipo de medida à luz da LGPD Penal?

Como o anteprojeto ainda não foi posto em prática, vou falar com base no que temos hoje. A interceptação telefônica foi e é importante na identificação, rastreamento de crimes em todas as searas. No caso da interceptação da conversa entre o ex-juiz Sergio Moro e os procuradores [no escândalo que ficou conhecido como Vaza Jato] o que se questionou foi a forma como essas interceptações foram levadas a público. A Justiça não poderia utilizar esses dados para qualquer tipo de decisão pró ou contra a operação. A interceptação telefônica, se for produzida de forma ilícita, não deveria ser utilizada. Em um aplicativo como o Telegram, o texto fica exposto, mas o áudio não. A lei nunca acompanha a evolução tecnológica. Um dos desafios do anteprojeto é identificar a forma fazer a fiscalização sem infringir a lei. O que se tem hoje são parcerias, acordos, mas para dizer como serão aplicadas a gente tem que esperar como a lei será conduzida. Mas a lei e a norma não acompanham a evolução tecnológica. Sempre surgem novas tecnologias.

E como o Ministério Público e as forças de segurança podem fiscalizar o respeito à intimidade pessoal dos dados do cidadão. Quais as ações cabíveis para a proteção dos dados pessoais?

Infelizmente, todo dia a gente vê um tipo de ataque à segurança da informação, envolvendo ou não dados pessoais, que gera essa instabilidade, essa insegurança para todo o público que tem os seus dados armazenados em um sem-número de empresas e instituições. Isso leva a gente a aplaudir a existência da LGPD e a autonomia concedida a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), que é a autarquia responsável por fiscalizar a aplicação da LGPD.

Hoje, o Ministério Público já tem um ferramental próprio para instaurar procedimentos e investigar, ao mesmo tempo gerar e dar prazo a um inquérito civil público. Se o assunto for relevante e somando elementos, o próprio tem capacidade postulatória para requerer informações e requisitar informações com base também na LGPD.

Mas a capacidade de investigar é mantida?

No mesmo cenário, as autoridades, quando citadas ou de ofício, têm a capacidade de investigar em alguma medida, adequada e distinta. Se eu sou vítima de uma exposição de dados, nós podemos requerer tanto à ANPD quanto ao próprio controlador desses dados na empresa que detinha a informação, ou mesmo à autoridade policial que me auxilie nas identificações cabíveis para isso. A autoridade policial deve agir se houver uma exposição massiva de dados.

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