Conforme os dados da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), o Brasil registrou crescimento de 9,2% no número de beneficiários de planos de saúde em julho deste ano, em comparação com o mesmo mês do ano passado. O resultado representa um recorde para o setor, com 48,4 milhões de usuários a mais, sendo São Paulo, Minas Gerais e Paraná os estados que registraram as maiores taxas de crescimento no período.

Nilza Sacoman, advogada especializada em direito à saúde
Nilza Sacoman, advogada especializada em direito à saúde | Foto: Bruno Ferraro/Divulgação

Ao mesmo tempo, os dados da ANS também apontam que houve crescimento na taxa de sinistralidade, ou seja, o índice que mede o número de procedimentos utilizados pelo beneficiário e o valor pago por empresas para o plano de saúde. O índice médio pulou de 73,3% no segundo semestre do ano passado para 84,2% no mesmo período deste ano.

Para a advogada especializada no direito à saúde, Nilza Sacoman, a ausência de uma regulamentação na ANS sobre a venda de planos de saúde coletivos, ou empresariais, é o principal facilitador para que ocorram reajustes considerados abusivos. Atualmente, apenas planos de saúde familiares e individuais possuem regras claras de negociação. "Hoje, para os planos de saúde, é muito interessante fazer planos empresariais porque eles não têm essa regulamentação, diferentemente dos planos familiares, individuais, onde tem uma regulamentação da ANS e eles não podem aplicar os seus reajustes a bel-prazer", explicou.

Além do reajuste, a tensão entre beneficiários e operadoras comprova que as preocupações das famílias que dependem de planos de saúde não se resumem ao custo. Não são raros os casos em que a ausência da prestação do serviço desejado precisa ser resolvida na Justiça. De acordo com a advogada, são 500 mil ações judiciais a mais nos últimos dez anos em todo o País relacionadas à negativa de planos para a utilização de novas tecnologias em tratamentos ou ao fornecimento de medicamentos mais caros, dois aspectos que dependem apenas de recomendação médica.

Em entrevista à FOLHA, Sacoman aborda quais são as principais consequências da adoção de uma "lógica de mercado predatória" por parte dos planos de saúde e como o aperfeiçoamento das ferramentas de fiscalização e controle podem colaborar para evitar a judicialização de conflitos. Ao mesmo tempo, avalia que o legado da pandemia da Covid-19 deverá ser de agravamento das tensões acerca da prestação do serviço.

Quais são as principais demandas e fontes de tensão entre pacientes e planos de saúde?

Com a digitalização da medicina, estamos vendo exames nucleares, cirurgias robóticas e uma série de plataformas que vêm trazer para a população de uma forma geral um atendimento de saúde de excelência, mas isso não significa que os planos irão cumprir. O que eu tenho visto com muita frequência é que os planos de saúde estão muito resistentes em oferecer este tipo de tratamento para o usuário. Um exemplo: você pode fazer uma cirurgia urológica aberta ou fechada, por robótica. A diferença está no custo disso e os planos de saúde não visam o bem-estar do usuário. Ele visa o custo. Se a cirurgia aberta, na qual você passará mais tempo no hospital, correndo o risco de ter uma infecção hospitalar ou até ter uma complicação, mas custar um terço ou um sexto de uma cirurgia robótica, que você praticamente não ficaria internado e sairia em muito pouco tempo e restabelecido, o plano opta por essa cirurgia muito mais barata. Os planos de saúde não estão voltados para a saúde do usuário. Estão voltados a administrar o seu custo. E não vamos dizer que o plano de saúde precisa fazer isso porque ganha pouco, uma vez que, na pandemia, os planos de saúde faturaram muito mais do que já haviam faturado. Segundo o Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), no ano de 2019, os planos de saúde tiveram faturamento de R$ 11 bilhões. No ano de 2020, em plena pandemia, eles tiveram um aumento de 18%: R$13 bilhões de faturamento. Então, eles não estão ganhando pouco e adotam uma postura predatória.

O quanto o Poder Judiciário tem sido solicitado?

A judicialização da saúde tem sido fator de grande preocupação. Nos últimos dez anos, para se ter uma ideia, só em primeira instância aumentou em mais de 500 mil processos as demandas de saúde. E elas praticamente estão ligadas às seguintes questões: negativas de procedimentos dos planos de saúde e negativa de fornecimento de medicamentos. Basicamente é isso. E quando o plano de saúde aplica a sinistralidade, eu entendo que ele tem que abrir as suas contas. Não basta ele dizer "olha, o meu prejuízo foi X, então vou aplicar a sinistralidade". Ele precisa, na verdade, abrir as contas e o que vemos é que isso não ocorre.

A senhora comenta que práticas abusivas são facilitadas pela ausência de regulamentação na ANS dos planos de saúde empresariais e coletivos. E que essa discussão não está sendo feita. Qual seria o caminho ideal para essa regulamentação?

Eu entendo que o Ministério Público precisa começar a ser mais ativo no sentido de pedir ao plano de saúde que abra suas contas quando aplicar esses aumentos abusivos, excessivos. Fazer mais denúncia junto à Agência Nacional de Saúde. Porque hoje, para você ter uma ideia, se um plano de saúde nega um atendimento de uma consulta sem justo motivo, ele tem que pagar uma multa de R$ 50 mil. Mas poucas vezes um plano de saúde é denunciado na ANS por não estar cumprindo a regra. Um problema seríssimo é a portabilidade. Eles não querem fazer a portabilidade porque têm que respeitar os períodos de carência. E quando negam essa portabilidade, mesmo o usuário tendo o direito, eles podem ser denunciados junto à ANS e há multa por negar a portabilidade sem justo motivo. Mas o que vemos com muita frequência é a falta de cumprimento da lei e essa fiscalização que ainda não é eficiente. O Ministério Público tem atuado com muita eficiência na defesa do consumidor. Mas precisa haver uma atuação mais incisiva junto aos planos de saúde, e isso percebemos que não está ocorrendo.

Esse problema decorre da falta de conhecimento das pessoas sobre os seus direitos? Essa atuação do Ministério Público, então, precisaria ser mais forte no sentido de obrigar os planos a terem ainda mais transparência? Porque, em qualquer outro sentido, os planos sustentariam que estão sendo prejudicados pela ausência de liberdade econômica, livre concorrência etc..

Eles sempre alegam que estão tendo prejuízos, que é preciso compreender o rol de procedimentos. Mas, se eles tiveram um lucro de 18% a mais de 2019 para 2020, se eles não tiveram que autorizar cirurgias eletivas, que praticamente não houve por conta da pandemia, imagina o lucro que eles não tiveram. Precisa haver, realmente, transparência. O que percebemos é que os planos de saúde, na contramão da história, não agem com integral informação ao seu usuário, não têm essa transparência. E observamos hoje que eles fornecem um contrato de adesão e pronto, você não pode discutir uma única cláusula se quiser aderir àquele plano. Isso está errado. Já tivemos um momento em que os bancos foram demandados por conta desses contratos de adesão. Está na hora do consumidor também fazer a mesma coisa com o plano de saúde, para que eles sejam mais transparentes e isso não estamos vendo.

Esse pode ser o grande legado da pandemia?

É o que precisamos. Uma grande guerra é o tratamento domiciliar. As pessoas que estão acamadas com Alzheimer e Parkinson e mesmo assim os planos negam porque precisam ter uma estrutura, uma equipe para ir ao lar deste idoso. Mas eles não fazem isso de forma espontânea. Eles até têm projetos, mas é insuficiente para o que necessita o idoso. Você passa a vida inteira pagando o plano e quando necessita dele, precisa demandar na justiça para ter o seu direito. Isso é um absurdo.

Na questão da demência, o que as famílias precisam ter mais atenção?

Temos decisões no sentido de que o portador de Alzheimer e Parkinson e que necessita de cuidados 24 horas de enfermagem tem que ser cuidado em casa. Ocorre que os planos de saúde, para que evitem cumprir a regra, estão levantando uma defesa de que os serviços de enfermagem podem ser substituídos por um cuidador. Só que o cuidador é um empregado doméstico. Por que existe a figura do cuidador? Não é para dar remédio, é para estar ao lado do idoso para que ele não seja vítima de um golpe quando for ao banco, fazer a comida dele, limpar a casa dele. Isso hoje está sendo desvirtuado. Os serviços de enfermagem possuem vários graus de complexidade.

Estabelecimentos podem cobrar passaporte da vacina?

Entendo que pode cobrar passaporte vacinal em estabelecimentos menores, como bares e restaurantes, porque ele está primando pelo interesse coletivo, que se sobrepõe ao interesse individual numa situação como essa. Mas contrária à exigência do passaporte da vacina em relação a eventos, por conta da dificuldade de fiscalização do cumprimento da medida.

O município pode criar uma lei que proíba a exigência do passaporte vacinal?

Você não pode criar uma lei que vai contra uma lei maior. O que não será admitido e isso será inconstitucional, é um prefeito entender que, mesmo diante da pandemia, naquela cidade ele entende que ninguém mais precisa ter cuidados. É inconstitucional e nenhum estabelecimento será obrigado a cumprir uma norma dessa porque ele vai estar fazendo apologia à morte, não à vida.