Saulo Abouchedid defende a continuidade do auxílio emergencial, aponta que falta uma política de industrialização do País, analisa que o País não está quebrado e apontou que a precarização do trabalho é benéfica aos empresários a curto prazo, mas danosa a longo prazo.
Saulo Abouchedid defende a continuidade do auxílio emergencial, aponta que falta uma política de industrialização do País, analisa que o País não está quebrado e apontou que a precarização do trabalho é benéfica aos empresários a curto prazo, mas danosa a longo prazo. | Foto: Divulgação/Arquivo pessoal

Desde meados de 2014, o Brasil tem vivido uma grande recessão, que foi combinada com a crise política e a variação dos preços das commodities. O cenário de crise econômica será mais longo e mais profundo do que se imaginava e foi agravado com o advento da pandemia da Covid-19, que pode gerar desdobramentos ainda imprevisíveis.

Para Saulo Abouchedid, mestre e doutor em Economia pela Unicamp (Universidade de Campinas) e professor de macroeconomia da Facamp (Faculdades de Campinas), a continuidade do auxílio emergencial é importante para vencer a crise, ainda mais por conta da falta uma política de nacional de industrialização.

Abouchedid discorda, no entanto, que o País esteja "quebrado" e aponta que a precarização do trabalho é "benéfica aos empresários a curto prazo, mas danosa a longo prazo". "O governo deveria prorrogar as medidas emergenciais, entre elas o auxílio emergencial. Não tem como pensar em um teto de gastos em um cenário tão dramático como a gente vive em relação à crise sanitária e à crise econômica", analisa o economista, que é coordenador do Núcleo de Estudos de Conjuntura (NEC-Facamp) e é o responsável por coordenar o Relatório Trimestral do Centro de Pesquisa Econômica da Facamp.

Como o senhor vê o cenário econômico para 2021?

É bem preocupante por conta deste momento do recrudescimento da pandemia. A crise sanitária voltou a endurecer. Há previsão de uma crise mais dramática nas próximas semanas e a pandemia vai comprometer a recuperação de alguns setores, principalmente do setor de serviços. Um ponto que dificulta ainda mais é a ausência das medidas emergenciais. Em 2020 teve a resposta do governo, por meio do Congresso, via aprovação do auxílio emergencial, mas em 2021 não vai ter o auxílio emergencial. Pelo menos não há previsão de volta dele.

O que pode ser feito para melhorar?

Neste contexto complicado em relação à pandemia, o governo deveria prorrogar as medidas emergenciais, entre elas o auxílio emergencial. Não tem como pensar em um teto de gastos em um cenário tão dramático como a gente vive em relação à crise sanitária e à crise econômica. Talvez a União possa diminuir o valor do auxílio ou diminuir o alcance e atender um menor número de famílias, mas de alguma forma precisa adotar medidas emergenciais para enfrentar a pandemia. Não tem outra solução. Os estados e municípios têm algum dinheiro em caixa por terem gastado menos em muitas áreas, pelo fato, por exemplo, de terem mantido as escolas fechadas, mas vão precisar de um repasse extra da União por conta dos maiores gastos na saúde, provenientes da pandemia.

A questão cambial contribuiu para a pressão inflacionária?

Contribuiu porque hoje o Brasil é muito dependente de produtos importados, de bens finais e de produtos intermediários, como insumos para a sua indústria. Esse é o resultado da desindustrialização do país. Conforme o Brasil vai se desindustrializando, o país não compra só bens de consumo, como o iPhone, mas a indústria vai deslocando seus fornecedores para fora. O resultado disso é que qualquer desvalorização cambial acaba afetando de forma potente o nível de preço. Vários insumos destinados à produção de alimentos aumentaram de preço e isso aumentou os custos de produção. Ao mesmo tempo, as commodities produzidas aqui, como o arroz, acabaram obtendo maior atratividade no mercado externo e os produtores direcionaram seus produtos para fora. E o que foi vendido no mercado interno alcançou um preço mais elevado e isso teve impacto.

E como incentivar as empresas locais?

No caso dos negócios locais, pequenas e médias empresas, é necessário algum tipo de coordenação. Pensando agora na pandemia, há uma grande dificuldade de se obter financiamento e muitos negócios acabaram fechando por dificuldade de caixa, pela falta de capital de giro. O que a gente mais escuta é que o dinheiro não chegou ou chegou tarde às empresas. O principal papel da coordenação e da política pública é promover financiamento para essas empresas sobreviverem ao período mais crítico da pandemia. Esses negócios locais precisam de financiamento. Outra coisa é cultural. É preciso incentivo promovido pelas prefeituras e pela comunidade para consumo de negócios locais. É preciso firmar parcerias com plataformas digitais, incentivando o consumo de negócios locais e propagando essas parcerias. Isso poderia ser incentivado pelas secretarias da fazenda locais.

E como será o ambiente para os empresários afetados pelas medidas de isolamento?

Vai depender do tipo de negócio. Em relação ao comércio varejista, ele acabou se direcionando para o e-commerce, mas os negócios ligados a serviços foram mais afetados e estão se recuperando lentamente. Não acredito que vá ter um isolamento do mesmo nível que a gente viu em abril, maio e junho do ano passado. Mesmo que o poder público queira retomar esse isolamento, as pessoas não estão mais respeitando, ou não têm mais o mesmo temor que tinham no ano passado. No comércio varejista, o fim do auxílio emergencial vai afetar bastante.

Desde 2018 pelo menos 15 multinacionais deixaram o país, como a Ford e a Sony. Muitas estão optando por países vizinhos como a Argentina e o Paraguai. Como evitar essa diáspora das empresas?

O Brasil sofreu uma queda do PIB em 2015 e 2016 e depois veio a pandemia e agravou ainda mais a crise econômica, mas as causas da saída das empresas são estruturais, calcadas principalmente no processo de desindustrialização do País desde os anos 1990. Houve perda da participação da indústria no PIB do país. Isso aconteceu por diversos fatores. Há queda da produtividade em relação aos concorrentes e o Brasil está perdendo competitividade por falta de uma política industrial. Falta uma coordenação e quando falo isso não significa necessariamente o Brasil atuando por meio de empresas estatais. Falta uma política industrial que incentive certos setores, que estimule o desenvolvimento de tecnologias e pesquisas de desenvolvimento. Isso estimularia a criação de tecnologia própria brasileira. O Brasil acabou perdendo competitividade em relação a outros países, especialmente em relação aos países asiáticos, notadamente a China.

O senhor mencionou os anos 1990 e foi nessa época que o então presidente Fernando Collor implementou medidas de liberação de mercado. Na época até chamou os carros brasileiros de carroças, porque os produtos nacionais tinham uma certa reserva de mercado e baixo desenvolvimento tecnológico. Como alcançar um equilíbrio?

Com a globalização, a indústria brasileira se inseriu na ponta que agrega menos valor, ligada mais intensivamente à montagem dos produtos, porque a mão de obra possui um custo salarial relativamente mais baixo. As medidas protecionistas e subsídios podem em um primeiro momento resultar em produtos de pior qualidade tecnológica, mas podem resultar em desenvolvimento tecnológico e industrial. Mas para isso é preciso planejamento. Não adianta colocar reserva de mercado infinitamente, sem reavaliações. Mas também não adianta derrubar todas as reservas de mercado e derrubar a indústria nacional automotiva, como ocorreu nos anos 1990. A partir dessa premissa de que o carro brasileiro era uma carroça, isso acabou nos deixando alheio às decisões das empresas automotivas internacionais como a Ford. O governo pode conceder subsídios para o desenvolvimento da indústria nacional e pode financiar pesquisas de ponta, como outros países fizeram. Os próprios Estados Unidos, que muita gente coloca como exemplo do liberalismo, utilizaram largamente o financiamento na Defesa para desenvolver tecnologias que são usadas nas principais empresas do país.

A Ford saiu se queixando do ambiente econômico, mas recentemente o Brasil realizou as reformas trabalhista e previdenciária. Para os empresários, essas reformas atenderam reivindicações antigas. Já os trabalhadores alegam que perderam direitos e poder econômico. Como o senhor analisa isso?

Essa questão da reforma trabalhista e previdenciária é macroeconômica. Conforme o país for precarizando o mercado de trabalho, a gente observa o avanço da informalidade, da pejotização. As empresas não contratam mais trabalhadores pela CLT para diminuir custos salariais. Em um primeiro momento é algo que dá alívio para o empresário, mas, a longo prazo, esse avanço da precarização acaba se voltando contra o próprio empresário, porque esse trabalhador terá uma renda menor e isso se traduz em uma menor demanda para o comércio e para os serviços. Esse ponto é importante ressaltar.

Na pandemia, as grandes empresas como a Amazon, a Apple e a Tesla têm se beneficiado e apresentado crescimento. Por que isso ocorre?

Do ponto de vista das grandes empresas globais um dos fatores é o excesso de liquidez, já que os países desenvolvidos, como os EUA e os países europeus, injetaram um volume muito grande de dinheiro para sair da crise. Esse volume foi direcionado para empresas de tecnologia ou que estão na fronteira da tecnologia e da nova matriz energética, que é o caso da Tesla. É um reflexo dessa indústria 4.0, que vai promover, por exemplo, uma matriz energética que permita um maior uso do carro elétrico.

Para quem perdeu o emprego é possível vislumbrar algum horizonte?

É difícil. Nesse momento eu acho que esse ano será desafiador. A palavra é paciência. Sei que é complicado falar isso. Para quem acabou de perder o emprego e tem uma reserva, essa pessoa vai demorar mais para achar um emprego. No primeiro semestre a crise sanitária vai apertar e afetar o desempenho do emprego e da renda. A gente vai observar que as pessoas que estavam desempregadas e aquelas que estavam recebendo auxílio emergencial vão sofrer mais. Vamos ver o aumento da miséria e da pobreza. É difícil falar em paciência para quem não tem a quem recorrer.

O presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Brasil está quebrado. Em 1987, o então presidente José Sarney já havia dito algo semelhante quando decretou a moratória. O cenário é semelhante?

São bases diferentes de comparação. Na década de 1980 o Brasil tinha o problema da dívida externa elevada e essa é a única possibilidade de um país quebrar, porque não podia emitir moeda, já que dependia das reservas internacionais para isso e elas eram baixas na época. A situação hoje é completamente diferente. A dívida externa é baixíssima, desprezível até. Quase a totalidade da dívida pública brasileira é em reais, ou seja, em sua própria moeda. Eu sempre digo aos meus alunos que um país não quebra em sua própria moeda. Se há uma dívida em reais, o país consegue refinanciar a sua própria dívida. Claro que não significa que ele possa refinanciar essa dívida ao infinito, mas se refinancia emitindo títulos de curto e longo prazo. Se o Brasil se endividar muito, ele pode encurtar a sua dívida e isso pode refletir no aumento das taxas de juros que remuneram os títulos, mas isso não é um fator limitante. Esse argumento de que o Brasil está quebrado é falso. Não se pode tratar o orçamento público como o orçamento familiar. Mesmo com esse aumento de gastos, o Brasil conseguiu se refinanciar com uma taxa de juros relativamente baixa em relação aos outros anos.

Em quanto tempo pode recuperar o nível de atividade econômica anterior a 2014?

Depende da política econômica. Se continuar com esse teto de gastos não vai voltar tão cedo aos patamares obtidos antes de 2014. Esse teto limita a capacidade de se recuperar da crise que a gente vive. Disso eu tenho certeza. Eu não defendo a gastança desenfreada. O teto de gastos significa a diminuição dos gastos que incentivam o investimento do setor privado. Sem o teto de gastos, o Brasil tem chances de se recuperar e ele possibilita oferecer uma política industrial que proporcione um horizonte para o empresário, incentivando o investimento.

O planejamento orçamentário do Governo pode ser melhor elaborado?

Na verdade, o Congresso nem votou o orçamento de 2021 e isso nos coloca bem atrás no planejamento. Há uma clara falta de coordenação da União com estados e municípios e essa dificuldade vai acabar afetando vários serviços públicos essenciais. Essa coordenação precisa melhorar. O investimento público não prevê enfrentamento da crise: a proposta de orçamento de 2021 do governo federal foi feito como se a pandemia não existisse mais, não existisse crise, apesar da previsão de queda de 4% do PIB de 2020 em relação a 2019, um dos piores resultados da história econômica do país. O orçamento prevê cortes em importantes receitas para os governos municipais. Não há nenhum tipo de planejamento de enfrentamento da crise em 2021. Não havendo por parte do governo esse planejamento, a economia brasileira fica refém do acaso.

E o que fazer?

Os limites da retomada da atividade econômica até agora tornam evidente a necessidade de um programa de investimentos públicos, acompanhado de uma ampla oferta de financiamento de curto e longo prazo, capitaneada pelo BNDES. Por meio dessas medidas, o estado assumiria a coordenação e a liderança da retomada, reduzindo a incerteza dos empresários e das famílias e estimulando, assim, a geração de emprego e renda de forma sustentável.

E qual a perspectiva?

Mesmo os possíveis acasos e milagres não garantem a continuidade da recuperação em 2021 e podem inclusive contribuir para reversão do crescimento conquistado no segundo semestre de 2020. A ausência de uma âncora para as expectativas dos atores da sociedade deixará provavelmente a economia brasileira à deriva em 2021. A crença no fim da pandemia e nas ocasionais condições externas favoráveis podem não ser suficientes para conferir o dinamismo desejado à atividade econômica.

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Folha de Londrina · ENTREVISTA | O Brasil está quebrado?