As gigantes globais da internet, como Facebook, Google e Twitter têm resistido à remuneração dos produtores de conteúdo do material que circula em suas plataformas. A Austrália foi pioneira na implantação de uma cobrança que compensasse financeiramente parte do conteúdo produzido pelas empresas jornalísticas e veiculado por essas plataformas. Outros países, como a França, seguiram na mesma trilha.

Imagem ilustrativa da imagem Fenaj propõe taxa para financiar fundo de fomento ao jornalismo
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Um projeto da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) propõe a criação de um fundo de fomento ao jornalismo por meio da constituição de uma Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico), que recairia sobre as grandes plataformas mundiais da Internet.

Essas empresas obtiveram um faturamento mundial de US$ 889 bilhões no ano de 2019, valor que representa 48,8% do PIB brasileiro e parte desse valor é obtido pela circulação do conteúdo jornalístico, mas os veículos e profissionais não recebem por eles.

O projeto apresentado pela Fenaj foi construído por especialistas tributaristas, assessores parlamentares, jornalistas e especialistas em direitos autorais, e contou com a experiência internacional da FIJ (Federação Internacional dos Jornalistas).

A presidente da Fenaj, Maria José Braga, destaca que as grandes plataformas sejam taxadas para financiar projetos jornalísticos de empresas de pequeno e médio porte. “A nossa proposta é que o fundo financie não um ou outro veículo, mas financie projetos. Cada projeto será avaliado, para que não se corra o risco de aprovar um financiamento para um determinado veículo e aquele veículo mudar completamente a sua produção e não cumprir efetivamente os objetivos do projeto”, explica.

Como seria a remuneração de conteúdo jornalístico? As matérias jornalísticas seriam financiadas pelos grandes conglomerados de plataformas de internet?

Primeiramente, há duas discussões que são correlatas, mas são diferentes. Uma coisa é a remuneração direta do conteúdo jornalístico pelas grandes plataformas, como o Facebook e o Google, e essa remuneração seria a posteriori, ou seja, um jornal ou uma empresa de rádio ou de TV faz uma reportagem e, se a plataforma usar, ela teria que pagar por ela. Isso é a remuneração à posteriori do conteúdo jornalístico.

A Fenaj defende que haja essa remuneração, mas nós ainda não temos uma proposta formulada sobre como deveria ser isso. A gente entende que ela tem que ser com base no direito autoral, para que a remuneração não fique com as empresas.

Em segundo lugar, a gente defende uma taxação por meio da criação de uma Cide, que é a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, que incidiria sobre as grandes plataformas de internet para criar um fundo de fomento ao jornalismo.

É uma tributação não fiscal prevista na Constituição Brasileira, em que o dinheiro arrecadado cairia direto na conta do agente público. Como é uma taxação não tributária, ela pode ter destinação específica já no momento da sua criação. O primeiro passo é criar a Cide e o segundo passo seria criar e regulamentar o fundo de apoio e fomento ao jornalista.

Vocês estudaram um valor entre 0,5% e 5% em função do porte da empresa. Como é que funcionaria isso?

A proposta da Fenaj para a Cide prevê uma taxação progressiva dessas plataformas, com a criação de uma Cide digital, com variações entre 0,5% e 5% em função do porte da empresa no Brasil. Aquelas com faturamento de até R$ 30 milhões serão taxadas em 0,5%, acima desse valor e até R$150 milhões, em 1%; até R$ 300 milhões em 3% e superior a isso, em 5%.

Vocês chegaram nesse percentual baseado em alguma coisa que é feita lá fora? Austrália e França já taxam essas plataformas digitais.

Lá fora, a maioria dos países não tem essa tributação não fiscal da Cide. Nós pegamos um valor que não impede inclusive que essas empresas sejam tributadas de forma fiscal, que paguem outros impostos, mas que signifique que elas tenham capacidade contributiva, que possam de fato contribuir para a irrigação do fundo. Também nos baseamos nas outras Cides já existentes no Brasil como é o caso da Cide do petróleo.

A Cide do petróleo tem uma resistência muito grande por parte das pessoas que consomem combustível e acham que ela deveria ser eliminada. Como vencer essa resistência das pessoas em relação a uma nova taxa?

Essa nova taxa não vai atingir o cidadão, porque ela não vai ser repassada. É bom lembrar que as grandes plataformas digitais e os serviços de mensageria, como o WhatsApp, não cobram pelos seus serviços. Elas ganham recursos pela publicidade, utilizando dados dos consumidores. Então elas não têm um preço para repassar. É bastante diferente de um produto que tem um preço final e que chega para o consumidor. No caso desses serviços, não existe um preço final para o consumidor e, portanto, não pode haver repasse.

E haveria divisão desses recursos por veículo? Quanto seria destinado para as TVs, rádios, jornais impressos e sites? Haveria uma proposta de divisão igualitária?

A gente não está prevendo a divisão por veículos. Estamos prevendo o financiamento por projetos. Isso vai ser bem detalhado futuramente, quando houver os recursos a serem distribuídos. Quando acontecer, aí sim, isso seria definido por meio dos editais de chamamento para que haja de fato maior diversidade.

Como surgiu a ideia?

É uma proposta da FIJ (Federação Internacional dos Jornalistas) para as suas entidades filiadas e a Fenaj prontamente encampou essa proposta. O debate surgiu lá na FIJ com a crise econômica do jornalismo, que atinge não só o Brasil, mas também os outros países. A migração da publicidade para as grandes plataformas digitais teve impacto na produção jornalística em todo o mundo, com fechamento de veículos e com o desemprego. É isso que nós estamos vivendo no Brasil e ocorreu em outros países. A FIJ pensou em buscar uma alternativa para fomentar o jornalismo e para isso são necessários recursos financeiros. Ela deixou muito claro que cada país deveria discutir a melhor alternativa de acordo com a sua legislação tributária. E no caso do Brasil nós entendemos que a melhor opção para os nossos objetivos é constituir o fundo de fomento ao jornalismo por meio da criação da Cide.

Existem veículos jornalísticos mais confiáveis, mas existem muitos sites e blogs que produzem informações falsas com dados baseados em fontes não confiáveis. Seria criado um conselho para a distribuição desse recurso?

Sim, a partir da criação do fundo ele será totalmente gerido por um conselho diretor que terá a obrigação de zelar pelo cumprimento das diretrizes e dos objetivos do fundo. A nossa proposta é que o fundo financie não um ou outro veículo, mas financie projetos. Cada projeto será avaliado, para que não se corra o risco de aprovar um financiamento para um determinado veículo e aquele veículo mudar completamente a sua produção e não cumprir efetivamente os objetivos do projeto. Nós entendemos que o caminho mais fácil seria basear nos fundos de fomento já existentes no Brasil, principalmente da cultura. É mais fácil você aprovar e fiscalizar a execução de projetos específicos que, volto a dizer, deverão ser avaliados e acompanhados.

Isso deslocaria a produção jornalística de grandes centros?

Sim, porque nos grandes centros a gente tem informação jornalística sendo produzida, mas em muitos casos a gente tem também os vieses de linhas editoriais que seguem o chamado mercado editorial, mas falta um contraponto. A expectativa é de que a população possa se informar com qualidade, então esses objetivos têm que estar na formulação da lei e depois na execução da lei que vai criar o fundo de fomento ao jornalismo.

No Atlas da Notícia, de 2020, a Fenaj apontou que 28,9 milhões de brasileiros vivem em 1.187 municípios tidos como semidesertos de notícias ou em locais onde há um veículo de comunicação local. Isso ajudaria a corrigir isso?

Entre os critérios, a gente coloca a democratização dos meios de comunicação por meio da regionalização e da interiorização da produção jornalística. O que a gente quer exatamente é garantir para todo cidadão e para toda cidadã o direito à informação. A aprovação do fundo com essas diretrizes diminuirá os desertos e os semidesertos de notícias no Brasil, porque a maioria dos municípios possui informações locais que devem ser divulgadas, mas isso não ocorre porque não há sustentação financeira para a produção jornalística nessa imensidão de municípios brasileiros.

A gente também coloca a questão da melhoria da pluralidade com o fomento de conteúdos jornalísticos produzidos por mulheres, por negros, por indígenas e por quilombolas. Então tem uma série de critérios que nós estamos propondo para que esse fundo de fato contribua para a diversidade da produção jornalística no Brasil.

E como mobilizar apoio ao projeto?

Estamos na luta, conversando com as entidades. Por exemplo, o movimento sindical brasileiro nos apoia. Nós teremos um grande aliado, que é a CUT (Central Única dos Trabalhadores), que acabou de aprovar no seu Congresso Nacional uma moção apoiando a proposta da Fenaj. A CUT é a maior central sindical do Brasil, com vários sindicatos filiados e dos mais diversos ramos de atividades econômicas. Nós vamos procurar as outras centrais sindicais e os movimentos sociais, as entidades do campo da comunicação, as entidades do campo dos direitos humanos e vamos fazer um amplo trabalho de convencimento de que esse projeto de fomento ao jornalismo interessa a toda a sociedade.

Mas não pode ocorrer alguma resistência?

A gente acredita que não terá resistência da sociedade. Haverá sim a resistência desses grandes grupos, que são oligopólios mundiais e estão faturando bilhões, mas praticamente não pagam impostos. Ou seja, eles não promovem retorno algum do ponto de vista fiscal para a sociedade.

E quando entra a questão do poderio econômico que esses grandes conglomerados possuem? Eles podem exercer forte influência sobre parlamentares? Como lidar com esse tipo de influência?

A gente sabe que a influência desses grandes grupos é grande, mas é exatamente a questão da justiça fiscal e da justiça social que precisa ser levada em conta. A tributação desses grandes conglomerados está sendo discutida em todo o mundo e em todos esses países está se chegando a conclusão que esses grandes conglomerados ganham muito dinheiro, têm uma influência muito grande nos países onde atuam, inclusive econômica, prejudicando outros setores econômicos, sem dar uma contrapartida para a sociedade. Esse debate está amadurecendo e os próprios parlamentares estão entendendo e vão fazer o debate. Eu creio que vão chegar a conclusões muito parecidas com as nossas, de que é preciso que haja uma contrapartida para a população brasileira. Essas empresas faturam aqui e remetem todos os lucros que obtêm para suas matrizes, a maioria delas é nos Estados Unidos.

E quanto elas faturam no Brasil?

Nós não temos os dados do faturamento dessas empresas no Brasil, justamente porque essas empresas são absolutamente opacas em relação à sua atividade e ao seu faturamento. Vamos dizer que os produtos que elas oferecem para a sociedade possuem diretrizes e políticas de moderação que não têm transparência alguma, e eu diria até uma certa maquiagem. Mas a nossa proposta é de taxação das empresas de acordo com o faturamento delas no país, justamente para que haja uma justiça fiscal.

O que significaria a aprovação desse projeto qualitativamente para o jornalismo brasileiro?

A gente acredita que significaria mais produção jornalística e com mais diversidade e mais pluralidade. Para a sociedade brasileira, o ganho seria considerável, porque significaria mais condições da população ter acesso à informação plural e diversa e que, portanto, permitiria ao cidadão e à cidadã constituir seu juízo e agir como cidadão e como cidadã. Então seria um ganho para o jornalismo, para os jornalistas e para toda a sociedade brasileira.

As próprias empresas jornalísticas têm interesse em uma nova forma de financiamento. A sra. acha que isso pode ser um ponto de convergência entre os sindicatos dos profissionais e os sindicatos patronais?

A gente acredita que as grandes empresas jornalísticas não serão nossas aliadas, porque elas pensam muito no faturamento delas próprias e como um dos nossos objetivos é a interiorização e a regionalização da produção jornalística isso pode não ser de interesse delas. Mas a gente acredita que podemos convencê-las de que isso é importante e pode favorecer alguns projetos em determinadas situações e elas também podem vir a ser beneficiadas.

Em quanto tempo projeto pode ser viabilizado?

Nós já estamos em diálogo com alguns parlamentares sobre a nossa proposta e a gente deve apresentar o projeto de lei no final deste ano ou no mais tardar no início do ano que vem, dependendo da avaliação dos nossos parlamentares. O tempo de tramitação no Congresso depende muito do convencimento dos partidos, dos líderes partidários e do apoio que conquistarmos da sociedade. O Congresso é sempre muito imprevisível e a tramitação das propostas também. Às vezes uma proposta bastante complexa é aprovada muito rapidamente, inclusive sem o debate necessário e outras propostas mais simples, às vezes, levam anos tramitando. A gente espera que pela urgência da questão da taxação das plataformas, essa tramitação seja relativamente rápida para que haja uma contrapartida social.