O ordenamento legal que rege o transporte e armazenagem das chamadas cargas perigosas é permeado por uma série de exigências, com legislação internacional extensa, detalhada e voltada para salvaguardar a vida humana. No entanto, em um intervalo de pouco menos de duas semanas, houve as explosões com nitrato de amônio em Beirute, Líbano; de gás em uma área residencial de Baltimore, Estados Unidos, e também em um posto de combustíveis de Volgograd, na Rússia. Houve também o vazamento de óleo de um navio japonês nas Ilhas Maurício, no Oceano Índico. São episódios como esses que colocam à prova a fiscalização do cumprimento dessas regras, incluindo a necessidade de melhorar a qualificação profissional das pessoas que lidam com cargas perigosas e a necessidade de promover a manutenção com periodicidade adequada nos equipamentos que envolvem esses processos.

O gestor de operações do Grupo Pinho, Pedro Flores de Souza, discorre sobre a necessidade de conscientização no manejo de cargas controladas.
O gestor de operações do Grupo Pinho, Pedro Flores de Souza, discorre sobre a necessidade de conscientização no manejo de cargas controladas. | Foto: Divulgação/Grupo Pinho

Para discorrer sobre o assunto, a reportagem da FOLHA conversou com Pedro Flores de Souza, especialista em comércio exterior, com 20 anos de experiência. Souza acompanhou de perto a explosão do navio chileno Vicuña, no Porto de Paranaguá, em 2004, episódio que ele afirma não ter sido pior por causa de procedimentos que permitiram à tripulação desconectar uma mangueira comprometida, que levava metanol para um tanque em terra. Souza é gestor de operações do Grupo Pinho, empresa paranaense com grandes clientes na área de gestão logística internacional, com experiência na importação de cargas químicas, inclusive o nitrato de amônia, e até de elementos radioativos. Com 80 anos, a empresa é a primeira despachante aduaneira paranaense. Tem 150 funcionários e é uma das maiores despachantes internacionais do Brasil e tem como clientes empresas como Itaipu, Klabin.

Imagem ilustrativa da imagem Explosões colocam à prova a fiscalização de armazenamento e transporte de cargas perigosas
| Foto: AFP

Como evitar explosões como a que ocorreu em Beirute?

No caso de Beirute as investigações ainda não determinaram qual a real causa da explosão, mas a forma como o material estava armazenado fora dos padrões deixou a população bastante revoltada com o governo. A população suspeita que houve o pagamento de propina por fora para “fechar os olhos” dos responsáveis pelo cumprimento da fiscalização. Uma mercadoria como o nitrato de amônio acondicionada fora dos padrões da legislação internacional acaba causando esse tipo de acidente mesmo.

E como é essa fiscalização no Brasil?

Existe deficit de mão de obra na fiscalização no Brasil para manter 100% das empresas auditadas. É nesse momento que acontecem as falhas. A Receita Federal diz que apenas 5% das cargas são fiscalizadas por falta de contingente. O Brasil vive essa realidade há tempos.

Mas como fiscalizar e garantir o cumprimento das normas?

Tem que haver mais conscientização. É como a cadeirinha no carro para crianças. Não é porque o sujeito não será mais multado que não será mais preciso levar a cadeirinha. Você tem que ter a consciência disso para garantir a segurança de seu filho. As agências têm mais caráter orientativo do que propriamente de função fiscalizatória. Mas é claro que a fiscalização vai para cima quando acontece um desastre, mas cada um precisa se conscientizar sobre a própria segurança.

O nitrato de amônio é muito utilizado na agricultura. Ele se soma aos muito produtos químicos que são utilizados na produção de alimentos no País, mas que ao mesmo tempo oferecem riscos se não forem bem manejados. Como lidar com isso?

O Brasil é segundo maior importador global de fertilizantes e adubos químicos. De modo geral, esses produtos devem estar registrados no Ministério da Agricultura, têm que seguir normativas de segurança e armazenamento. Há alguns órgãos que fazem essa fiscalização, como o próprio Exército ou o IAP (Instituto Ambiental do Paraná), e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). O Brasil é signatário de acordos internacionais e aqui existe uma série de regras para prevenir explosões e também riscos ambientais para evitar a contaminação da água ou do solo. Do ponto de vista do armazenamento todos têm que se adequar à legislação internacional para evitar esses acidentes. Somos bastante aplicados na fiscalização das boas práticas de segurança no transporte de cargas perigosas, com a atuação de agências reguladoras como a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), a Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), que respondem pelas atividades no setor aéreo, aquaviário e rodoferroviário.

E no transporte de produtos agrícolas de grãos como o milho. O que o senhor pode dizer?

Até poucos anos atrás esses produtos só possuíam normativas de acondicionamento e armazenamento, mas alguns episódios de explosão que aconteceram fizeram revisar as regras. Aqui no Paraná houve explosão de silos de milho. A decomposição desses grãos gerou gases e a falta de controle e acesso adequado e a falta de respeito às normas fez com que tudo fosse pelos ares quando um sujeito acendeu um cigarro.

Como o senhor vê o treinamento e a qualificação do profissional que lida com esse tipo de carga?

Toda empresa que lida com isso tem que estar adequada com as normativas, caso contrário não podem operar e é preciso estar atento à publicação de novas regras. Temos que ter adequação técnica e obrigatoriamente a gente tem que ter pessoal com certificação para manejo de carga perigosa com segurança. O profissional precisa saber como fazer o manejo, como fazer a adequação da embalagem com etiquetas e como fazer a ficha de segurança.

A atualização deve ser constante?

Sim. Na quarta-feira (12), por exemplo, saiu uma nova portaria pedindo para que as empresas comprovem o gerenciamento de risco de todos os itens que transportam e acondicionam. Muitas vezes as situações não são previstas pela legislação, como o episódio em que houve a explosão de um smartphone dentro de um avião. Esse fato determinou a proibição do transporte de baterias de lítio por transporte aeroviário de passageiros no ano passado. Atualmente esse tipo de carga agora é feita por transporte marítimo. Quando ocorre um acidente como esse é normal que aconteça essa verificação das normativas para ver o que pode ser melhorado.

O senhor estava perto do acidente envolvendo o navio Vicuña no Porto de Paranaguá, em 2004. Pode relatar essa experiência?

Na época eu era agente marítimo e estava operando um outro navio no porto. O isolamento de uma das mangueiras do Vicuña estava comprometido, o que levou ao vazamento de metanol. Devido ao calor naquele dia, a mangueira pegou fogo, com ignição espontânea. O que ficou destacado é que foi graças a existirem normativas de “safety first” (segurança em primeiro lugar), que visam salvaguardar a vida humana, que o desastre não foi maior. A equipe de terra responsável pela manutenção recebe preparo constante para agir em situações como essa e conseguiram evitar que o fogo atingisse os silos. Se isso acontecesse naquele dia teria "chovido" pedaço de Paranaguá em Curitiba, porque ali são armazenados milhões de litros de combustíveis. Todo o aparato de segurança é feito para não ser usado, mas quando acontece tem que estar ali. Esse tipo de segurança diminui o prejuízo da coisa toda. Poderia ter sido um desastre realmente feio.

Como está a fiscalização da manutenção dos equipamentos de segurança no Brasil?

As cargas refrigeradas, por exemplo, se adequam a todas as legislações e são conduzidas por companhias de navegação modernas. Um navio de bandeira grega, que possui tradição no setor, tem qualidade. Mas há aquelas empresas que transportam produtos intermediários, que não exigem tanto cuidado, e existe o transporte de produtos como ferro e granito, que não requerem tanto manejo e são as companhias mais baratas, mas que possuem condições mais precárias. E assim acontecem os problemas.

No vazamento de óleo na costa do Nordeste, no ano passado, se atribuiu a um navio fantasma, que desligou o localizador. Como evitar isso?

Há uma regulamentação internacional e você se deve adequar a ela, que prevê a manutenção do controle de água de lastro e também a obrigatoriedade de livros de manutenção à bordo. É uma burocracia danada. Comandantes passam boa parte do tempo para manter esse controle para evitar esse tipo de situação. Será que o equipamento estava com a manutenção em dia? Será que a tripulação estava treinada? O ponto é que a embarcação foi contratada provavelmente por ser a mais barata e são muitos fatores que influenciam isso.

Pode falar mais sobre as normativas internacionais de segurança?

A IMO e a Iata (siglas em inglês das poderosas Organização Marítima Internacional e Associação Internacional de Transporte Aéreo), responsáveis respectivamente pela Imdg (International Maritime Dangerous Goods Code) e pela DGR (Dangerous Good Regulations), que são voltadas para a segurança. A IMO é responsável por todo o controle das embarcações ao redor do mundo tem como registro obrigatório uma regulamentação chamada Solas (Safety of Life at Seas), que visa salvaguardar a vida nos mares. O transporte dessas cargas tem que ser com controle rígido. A Iata (International Air Transport), por exemplo, tem um checklist bem robusto. Se um dos ítens não estiver adequado a aeronave não pode levantar voo. É com base nesse checklist que eles confrontam com informações da caixa preta quando ocorre um acidente, para ver o que aconteceu. São regulamentações muito sérias. No transporte rodoviário, aqui no Brasil a Antt exige condições de transporte e segurança para cargas superdimensionadas, por exemplo. Nesses casos ela exige batedores e com drones as empresas têm melhorado bastante nesse quesito. A Antt prevê também paradas para fazer manutenção do equipamento.

E como é essa normatização?

A empresa que realiza o transporte precisa ter a certificação de acordo com a carga transportada. Se for uma carga de Airsoft, por exemplo, que é um simulacro de arma de fogo, tem uma normatização do Inmetro. Se for de uma carga de microondas tem outra normativa do Inmetro, adequando o Brasil à legislação internacional.

O senhor já transportou cargas radioativas?

Já importamos algumas. Têm equipamentos hospitalares que usam esse material. O isótopo tem que vir em uma caixa de chumbo e tem que fazer habilitação junto ao Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear), pegar todas as autorizações dos órgãos que cuidam da energia nuclear brasileira e fazer a movimentação da fonte. A gente pode trazer fonte de aliementação de energia como o irídio, que é usado em equipamentos hospitalares. Quando se substitui essa fonte por uma nova, por exemplo, transportamos 0,1 centigrama de irídio e ele precisa ser transportado em uma caixa de chumbo de 25 kg. Tem todo um controle de segurança.

Quais os cuidados para se transportar uma carga perigosa?

Nós não usamos a expressão carga perigosa, mas carga controlada. A embalagem precisa estar bem arrumada, bem identificada e a ficha de segurança deve ficar com a tripulação do navio, pois ela possui orientações sobre como agir, caso haja algum acidente, como por exemplo, se uma substância vazar e entrar em contato com outras substâncias, qual o procedimento a ser adotado. A embalagem deve ter muitas etiquetas com essas informações e deve ser acompanhada por extensa documentação para enquadrá-la na classe de risco correta.

Por qual motivo um refrigerante é considerado um elemento perigoso?

Refrigerantes não têm risco de explosão, porque tem água, mas são considerados como produtos corrosivos para o manejo e transporte deles por conta da composição química deles, que é corrosivo e seu transporte por avião é cercado de cuidados especiais. É um elemento que em determinada situação pode causar acidente, por isso passa por adequação de manejo como os demais produtos químicos. Em nosso dia a dia vejo as normativas para cada produto ser transportado e comercializado e vejo qual a adequação precisa ser feita para ter esse certificado junto ao órgão anuente.