O Brasil chega a um terço da população vacinada contra a Covid-19 com pelo menos a primeira dose neste início de julho. No entanto, ainda há muitas polêmicas envolvendo as imunizações, desde a desconfiança sobre a eficácia delas até a dificuldade por parte da população em aceitar receber a vacina de acordo com o tipo de fabricante.

Imagem ilustrativa da imagem 'É lamentável escolher vacina como em cardápio'
| Foto: Gustavo Carneiro

Há ainda a opção de misturar tipos diferentes de vacinas para as gestantes, como fez a Prefeitura do Rio de Janeiro. A médica pediatra e diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações, Flávia Bravo, não vê problemas na medida. Ela faz parte do comitê de revisão de calendários e consensos da entidade e trabalha na área há mais de 15 anos. Ela também comenta a declaração da ex-jogadora Fernanda Venturini sobre não acreditar em vacina, mas ter escolhido receber a da Pfizer para poder viajar.

Flávia Bravo é autora de capítulos nos livros Coleção Febrasgo — Vacinação da Mulher (Elsevier, 2015), Manual Prático de Imunizações (Editorial Nacional, 2015), e Vacinas e imunoglobulinas: consulta rápida (Artmed, 2009). Ela é enfática ao dizer que é lamentável as pessoas "escolherem a vacina".

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| Foto: Divulgação

A Prefeitura do Rio de Janeiro autorizou grávidas que tomaram AstraZeneca na primeira dose contra a Covid a tomarem a Pfizer na segunda dose. Como é que a sra. analisa isso?

O ideal seria que as diretrizes sempre partissem do Ministério da Saúde, que o Brasil todo agisse uniformemente. As secretarias municipais têm certa liberdade de alterar a recomendação. A Prefeitura do Rio tomou por base estudos que já existem de aplicação intercambiada entre essas duas vacinas (Pfizer e Astrazeneca), com aconselhamento do grupo técnico do comitê técnico assessor. Aplicando uma antes e outra depois se verificou até uma resposta de anticorpos mais vigorosa nessa situação, com um nível de risco de evento adverso maior, o que também pode ser esperado, pois são duas tecnologias diferentes. Só que esses estudos não foram feitos com gestantes, mas de maturação pequena de observação. Não verificaram nenhum evento adverso mais grave. Consigo compreender essa decisão, já que a gente ainda está com a circulação alta do vírus e como não estamos sendo felizes no controle da nossa pandemia.

Mas desde maio a Anvisa tinha suspendido a vacinação com Astrazeneca para grávidas, não?

Foi uma atitude, na minha opinião, precipitada. Porque foi por conta daquela TTS (síndrome tromboembólica com trombocitopenia), que foi observada também com outras vacinas, mas aqui no Brasil a questão da única gestante no mundo que apresentou isso fez com que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) fizesse isso sem conversar com o Programa Nacional de Imunizações. A gente não observa um risco maior de TTS nas gestantes. A partir do momento que tomaram essa decisão, por precaução exagerada ou não, entrou na balança o risco de adoecimento para aquelas que só tomaram uma dose, porque aquelas que não tomaram nenhuma dose de AstraZeneca vão fazer (imunização com) Coronavac ou Pfizer. e não vão fazer com a da Janssen, porque ela tem a mesma tecnologia da vacina de Oxford. Tomou-se essa decisão de protegê-las com uma dose de outra tecnologia, no caso a da Pfizer, porque já tem alguns estudos mostrando uma boa resposta vacinal.

Pegando esse gancho que a sra. falou de que a Janssen tem a mesma tecnologia da Oxford, por que uma é aplicada em uma dose e a outra em duas doses?

Nos estudos de fase um e dois são estudados intervalos e quantidade de dose para se chegar à conclusão de qual é o melhor esquema para testar em fase três e faz parte do desenho do planejamento inicial. A Janssen testou com uma dose e testou com duas também, mas com uma dose ela conseguiu mostrar uma resposta suficiente, com eficácia geral de 66%, com uma duração de proteção semelhante também 14 dias após a dose. Em termos de saúde pública, quando você pensa em catástrofe mundial e necessidade de muitas doses para muitas pessoas, é uma coisa inteligente você estudar com uma dose só para ter mais doses disponíveis para mais pessoas. E há uma facilidade logística melhor para implantar programas e para atingir os requisitos mínimos para obter sucesso na vacinação, o que é ótimo.

Recentemente, a ex- jogadora de vôlei Fernanda Venturini declarou em suas redes sociais que tomou a Pfizer porque achava a menos pior. Queria que a senhora comentasse sobre essa eficácia das vacinas de cada tipo.

É lamentável uma figura pública divulgar em rede social uma opinião tão tacanha, que obviamente não é a área dela. Ela não entende de saúde pública, de campanha de vacinação, de proteção coletiva e de objetivo de campanha e sai falando o que não deve. É lamentável as pessoas escolherem a vacina. Quando você pensa em campanha de vacinação, o objetivo principal é vacinar o maior número de pessoas no menor tempo possível, porque assim as diferenças individuais de eficácia são diluídas e, ainda que tenha diferenças de eficácia, há a redução da circulação do vírus. Mesmo aquelas que tomaram uma vacina, cujo estudo de licenciamento pré- aprovação mostrou uma eficácia menor, vão acabar sendo protegidos pela baixa circulação do vírus, porque na vida real é diferente. O objetivo é vacinar com aquela que estiver disponível. A gente tem que pensar no controle da pandemia, na redução de doentes, de mortos e de internados e no alívio do sistema de saúde. Não se deve pensar egoisticamente.

Muita gente que já recebeu a primeira dose e não está buscando a segunda dose. Qual o risco disso?

Provavelmente uma parte disso é de gente que está escolhendo vacina e que se expõe ao adoecimento. Não é uma coisa inteligente. Vai ficar desprotegido e contrair a doença. No caso das vacinas que são estudadas com duas doses, uma dose não é suficiente para fazer a proteção adequada. Essas pessoas com uma dose só podem adoecer e ainda podem selecionar variantes que escapam daquela proteção que ela conseguiu. Em relação ao evento adverso eu vejo muita gente dizer que não quer tomar outra dose porque ficou com muita febre. Grande parte das criancinhas toma vacina e fica um ou dois dias com febre, mal-humorada e algumas até comem menos. São eventos esperados, auto-alimentados, sem sequela e sem consequência alguma. Na maioria das vacinas os eventos adversos acontecem na primeira dose e quando tomar a segunda dose não necessariamente vai ter os mesmos sintomas. O papel da gente é trazer essa tranquilidade. Muita gente diz que teve febre alta, que ficou muito mole e vai que na segunda dose tenha essa trombose? Não existe a menor ligação nesse sentido. Mesmo quem teve um evento adverso mais intenso, foi temporário e é controlável.

E em relação às variantes Alfa, Beta, Gama e Delta? A resposta das vacinas a elas apresenta resultados semelhantes para essas variantes?

A gente tem que se preocupar com o que está circulando aqui no Brasil. As vacinas demonstraram eficácia com todas elas. O que é importante é justamente buscar alta cobertura vacinal para não dar chance de aparecerem outras variantes que escapem. A gente tem que considerar o local onde a gente está, quais são as variantes que estão circulando aqui e se preocupar com as nossas variantes. Fazer uma vigilância genômica decente seria o ideal, mas para tranquilizar a população as vacinas hoje disponíveis têm eficácia contra essas variantes. O que a gente tem que fazer é não escolher a vacina e ficar desprotegido até conseguir a vacina que quer, como se houvesse um cardápio e deixar o vírus circulante ou aparecer uma variante que vai escapar da vacina.

Aqui no Paraná foram registrados os primeiros casos da variante Delta no Brasil, inclusive a primeira morte. A Secretaria de Saúde de Apucarana informou que as pessoas vacinadas em uma família não foram atingidas pela variante Delta e as que foram vacinadas não adoeceram. Essa questão da vacina não é evitar que a pessoa se contamine, mas gerar sintomas mais leves, não é?

Exato. Se eu tenho uma vacina que demonstrou 50% de proteção para todas as formas, significa que eu reduzi o risco dessa pessoa de apresentar qualquer tipo de quadro clínico em 50%, só que a pessoa vai ter sintomas leves ou praticamente nenhum sintoma como todos os coronavírus que a gente pega desde a infância, ou seja, não preocupa do ponto de vista individual, mas podem disseminar. Quando você separa somente os quadros graves, eles são semelhantes na eficácia. Ou seja, tanto faz a vacina que eu usar, eu vou me proteger da doença grave e metade das pessoas não vai nem contrair. Esse caso aí do Paraná é emblemático. Eu não sei quais foram as vacinas que o restante da família tomou, mas as vacinas foram eficazes em proteger contra a variante Delta.

Sobre a variante Delta, uma pessoa que morreu em Apucarana foi uma gestante que veio do Japão. Ela fez o teste lá no Japão e tinha dado negativo, mas ao desembarcar aqui no Brasil dois dias depois começou a apresentar os sintomas.

Por isso mesmo que as gestantes e puérperas foram incluídas nos grupos de vacinação. Na primeira onda não se observava esse risco especial com gestantes, por isso quem estava adoecendo e morrendo eram os idosos e pacientes com comorbidades. Com a segunda onda e com o número muito maior a gente pôde ter dados estatísticos para perceber que as gestantes se comportam da mesma maneira como acontece com outras infecções respiratórias, como a gripe. Por questões de operação fisiológica do organismo as gestantes acabam sendo mais suscetíveis para a evolução ruim de infecções respiratórias. E é por isso que ela infelizmente essa viajante gestante acabou entrando na estatística.

Alguns Estados conseguiram autorização da Anvisa para utilizar a Sputnik. Essa vacina é segura?

A vacina Sputnik não recebeu aprovação da Organização Mundial da Saúde. Ela tem a mesma tecnologia da Janssen e da Oxford/AstraZeneca, com a diferença que usa o adenovírus como vetor. No entanto, o vetor viral de cada uma das doses é diferente e isso pode trazer sempre a preocupação com o erro. Eu penso que é uma vacina que não foi muito usada ao redor do mundo e a gente tem que ficar de olho em resultados de efetividade em outros países. Tem que fazer uma vigilância cuidadosa para ter mais dados de resultados na vida real e de segurança também. E o motivo da aprovação do uso emergencial somente por alguns Estados é a falta de uma coordenação firme, clara e correta do Ministério da Saúde.

E como é que a sra. analisa as vacinas que estão sendo citadas recentemente na CPI da Covid: a Covaxin e a Convidecia?

A gente não tem muitos dados dessas vacinas. Na verdade eu acho que a lida não honesta acabou atrapalhando uma outra possibilidade. Se as pessoas agissem corretamente como todas as outras vacinas que estão sendo aprovadas tanto pela Organização Mundial da Saúde como pelo CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos), mas trilhassem o caminho correto e determinado, a gente poderia ter mais informações sobre essas vacinas e mais opções de vacinação. Da forma que foi feito só pode trazer insegurança na utilização, de acordo com os dados que a gente tem de publicação dessas vacinas e diante da não aprovação delas ou até por não submeter essas vacinas à aprovação por órgãos regulatórios. Só agora a Covaxin foi submeter o dossiê dela para ver se a Anvisa vai aprovar ou não para uso emergencial. Essa questão nebulosa envolvendo autoridades e políticos só traz prejuízo e macula talvez uma boa possibilidade de mais opções de vacinação para o mundo inteiro.

Muita gente fala da adoção de passaporte de vacinação. O que a senhora acha disso?

É um caminho natural os países se protegerem. Aqueles que conseguem fazer campanhas eficazes de vacinação, que adotam medidas de distanciamento realmente efetivas e corretas, com duração certa e que fazem uma boa vigilância acabam controlando a pandemia em seus países. E eles precisam se proteger de novas variantes e manter a situação deles sob controle. É mais ou menos como acontece com a febre amarela, então é uma coisa legítima. Como isso vai ser solucionado é um problema de geopolítica, não é um problema médico. Se vai se adotar, por exemplo, nos países da Europa só as vacinas aprovadas pela EMA (Agência Europeia do Medicamento) ou se vai partir do princípio do que foi pré-aprovado pela Organização Mundial da Saúde. Isso tudo são decisões governamentais.

Tem gente que já teve Covid e acha que por esse motivo já está imunizado, pois já criou anticorpos para combater a doença. É isso mesmo?

A gente tem relatos que não são comuns de pessoas que se reinfectaram e há variantes surgindo o tempo todo. É claro que a doença causa uma proteção, mas na semana passada saiu um estudo que comparou o soro de pessoas convalescentes com o soro de pessoas que foram vacinadas e o soro dos vacinados foi mais eficaz nessa neutralização que o soro dos convalescentes. Óbvio que mais estudos estão sendo feitos, mas já permitem que a gente possa orientar nesse sentido. Então não há nenhum problema, muito pelo contrário, em tomar a vacina, mesmo quem já adoeceu, desde que se respeite um intervalo que cada país determinou um intervalo diferente. Aqui no Brasil são 30 dias e depois de completamente recuperados.

E o que a senhora pode dizer sobre o kit de tratamento precoce?

Não serve. É besteira. Não use. Pode fazer mais mal e não traz bem algum, isso pautado em resultados da ciência, da ciência séria que faz estudo sério sem viés de análise. A minha opinião é que é gastar dinheiro à toa. É acreditar que pode andar sem máscara e ficar bem e não vai ficar bem, sem contar que possibilita eventos adversos das medicações sérias. Ele pode inclusive prejudicar a evolução da própria Covid. Dependendo da droga que estiver usando pode afetar tudo: coração, rins, porque esse kit além de tudo é caro. Eu vi uma receita com 11 itens para uma lactante, que está amamentando. É um absurdo.