Na terça-feira (19), a CAS (Comissão de Assuntos Sociais), do Senado Federal, aprovou em decisão final o projeto que facilita o acesso à laqueadura e à vasectomia. O PLS 107/2018 foi apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e recebeu voto favorável, com uma emenda, da relatora, senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE). Se não houver recurso para a votação pelo Plenário do Senado, a proposta será enviada à Câmara dos Deputados.

Imagem ilustrativa da imagem 'É justo que a idade mínima para laqueadura e vasectomia seja de 20 anos'
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O motivo do PLS foi o estabelecimento de restrições no artigo 10 da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que dificulta o acesso das pessoas a esses meios de planejamento familiar. A primeira dificuldade se dá quando a lei não deixa clara a possibilidade de que a laqueadura possa ocorrer no pós-parto imediato. Na regulamentação, o texto praticamente inviabilizou o acesso das mulheres ao procedimento, já que a Portaria nº 48, de 1999, da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, estende a proibição até o 42º dia após o parto ou aborto.

Essa restrição cria problemas para as mulheres que dependem do SUS para serem submetidas a cirurgia de laqueadura tubária, pois gera a necessidade de segunda internação, novo preparo cirúrgico e, por conseguinte, aumento dos riscos de complicações para a mulher, sem ignorar as consequências indesejáveis produzidas pelo afastamento da mãe do recém-nascido.

Para Rogerio Bonassi Machado, presidente da Comissão Nacional Especializada em Anticoncepção da Febrasgo (Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia), o projeto de lei é um ajuste da lei de 1996 e corrige alguns aspectos que estavam dúbios ou que já estavam defasados em relação a outros países.

"Eu acho que é justo que a idade estabelecida para a laqueadura e para a vasectomia seja a partir de 20 anos, tanto para homens como para mulheres. Isso é uma tendência que já ocorre em outros países. O Brasil está fazendo uma adequação", diz o especialista em Ginecologia e Obstetrícia pela entidade.

Machado é professor associado livre docente da disciplina de Ginecologia do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí (FMJ) e livre docente em Ginecologia e Fisiopatologia da Reprodução pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp). É doutor em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) - Escola Paulista de Medicina, e mestre em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

O que representa esse projeto de lei?

É só um ajuste na lei, que eu acho que vinha funcionando bem. Antes dessa lei de 1996 havia pouca regulamentação sobre laqueadura e, embora tivesse pouca regulamentação, era muito mais utilizada. Para você ter uma ideia, a laqueadura era muito mais feita no período do pós-parto imediato, durante uma cesariana. A lei de 1996 colocou pedras que eu acho que foram bem acertadas e isso até diminuiu o número de laqueaduras.

É preciso ver os dois lados da questão. Muitas laqueaduras geram também muito arrependimento e nem sempre as mulheres estavam bem orientadas em relação a isso. A lei ajudou bastante porque ficou um pouco mais abrangente no sentido das mulheres que não estavam grávidas e com 25 anos ou com dois filhos poderiam fazer a laqueadura. Mas a lei tem uma confusão na interpretação, já que muitos diziam que era preciso ter 25 anos e dois filhos. Foi passando o tempo e os ajustes são naturais. Eu acho que é justo que a idade estabelecida para a laqueadura e para a vasectomia seja de 20 anos, tanto para homens como para mulheres. Isso é uma tendência que já ocorre em outros países. O Brasil está fazendo uma adequação.

E mudou a questão do consentimento do cônjuge, não?

Eu acho que é um ponto interessante essa retirada do consentimento do cônjuge, que era obrigatório. Acho que foi um ajuste bom que foi feito agora, porque acaba tirando algumas restrições e o método fica um pouco mais abrangente. O que a gente viu nesse tempo todo é que as taxas de esterilização tanto masculinas quanto femininas, principalmente na mulher, têm diminuído no Brasil. Então até que ponto isso pode ser uma tentativa de aumentar as esterilizações? Eu acredito que não seja isso, mas para dar mais opções.

Mas não há o risco da banalização?

A gente não pode levar isso aos extremos. Quando a pessoa é muito jovem não é preciso dizer que isso pode ter consequências, principalmente para as mulheres. Então é interessante que se discuta bem e que a pessoa faça toda a orientação contraceptiva e adequação ao método.

O senhor mencionou essa questão de que pela redação do projeto de lei não será mais preciso o consentimento do cônjuge para a realização do procedimento de laqueadura, mas há dois meses alguns planos de saúde começaram a pedir autorização para a implantação do DIU, que é um dos métodos contraceptivos disponíveis.

Mas acho que isso não foi para frente. Eu acho que foi uma tentativa econômica de deter seu uso por causa do custo. Realmente foi algo contra a lei e eu acho que nem é constitucional fazer isso. Acho que foi mais uma tentativa de economia de gastos.

Qual a relação de laqueaduras e vasectomias realizadas no Brasil?

O PNDS (Programa Nacional de Desenvolvimento de Saúde) é feito a cada 10 anos e os últimos dados teriam que ser as estatísticas de 2016. Deve estar para ser publicado agora. O que a gente tem publicado mesmo é o dado de 2006, quando a taxa de laqueadura ainda estava entre 25% das mulheres com relacionamento estável. Na vasectomia é menor. O número chega a 3% a 5% dos homens que estão em relacionamento estável. A gente acredita que em 2016 também esses números devem estar praticamente a mesma coisa. Mas quando a gente vai olhar os dados das Nações Unidas eles têm outros números. Eles estavam mostrando que no final de 2018 o Brasil já apresentava uma redução grande, o equivalente a 14% das mulheres em união estável fazendo laqueadura. Então baixou. Isso não quer dizer que a lei estava restringindo mais, mas é que agora existem mais métodos e a mulher se interessa hoje por métodos bastante eficazes sem a necessidade de fazer a cirurgia.

Pode explicar isso?

Porque hoje existem métodos contraceptivos altamente eficazes como, por exemplo, o implante do DIU e o implante contracepcional, que possuem resultados semelhantes ao da laqueadura e as mulheres reconhecem isso. Se uma menina de 20 anos diz que não quer ter filhos em sua vida, o período fértil dela vai de 20 a 40 anos. Ela pode colocar um DIU de 10 anos, depois outro DIU de 10 anos e depois outro de 10 anos e acabou. No dia em que ela mudar de ideia, porque as pessoas mudam de ideia, ela pode retirar o DIU e acabou.

Mas há uma frase muito em voga hoje que diz “Meu corpo, minhas regras”. Como o senhor vê isso?

Essa é uma questão importante, porque realmente cada um tem o domínio sobre o seu corpo e pode escolher, mas essa é uma situação que é diferente de uma doença que você não pode escolher o tratamento. Se ela falar que quer outro tratamento contraceptivo, tudo bem, mas ao optar por fazer uma laqueadura a pessoa vai ter que ter responsabilidade, já que o corpo é dela. Há muita judicialização para reverter laqueaduras. Mas a gente está falando de casos que são esporádicos. Vamos pensar na grande maioria, que vai muito bem com essa lei em vigor. Eu acho que não não implica em grandes mudanças. Acho que esses ajustes são interessantes. A lei é importante porque acaba tendo uma maior disponibilização de métodos, embora isso não seja uniforme no país. Mas acho que aí acaba dando um equilíbrio para essa situação. Mas são raros os casos de pessoas que querem fazer a laqueadura e nunca tiveram filhos. Não é muito comum.

Os que defendem o PLS falam que o impedimento da laqueadura no pós-cesárea impedia que ela retornasse posteriormente somente para fazer o procedimento, porque envolve uma internação a mais e a mãe já está envolvida com os cuidados com o bebê. Mas o senhor disse que há muito arrependimento. Isso tem relação com a depressão pós-parto?

Exatamente. Se você for conversar com a grande maioria das mulheres que está no fim da gestação, muitas delas querem fazer a laqueadura e essa taxa infelizmente é alta. No Brasil, muitas vezes as mulheres optam por fazer a cesárea para fazer a laqueadura. Então esse é um ponto conflitante. Com a lei ela precisava passar alguns meses depois do parto para fazer a laqueadura eletiva. No pós-parto é um período em que a mulher está mais instável emocionalmente e pode ter um exagero nessa questão. A lei evitou que fossem feitas cesáreas para fazer a laqueadura. Durante a cesárea é um dos casos onde tem risco de vida materno.

E a religião tem interferido nessa discussão?

A questão religiosa é relevante sim, mas não é mais como há alguns anos. Muitas entidades são favoráveis a esses métodos contraceptivos. Acho que a grande pedra no sapato em relatos religiosos são relacionados ao aborto mesmo. Na própria Febrasgo dificilmente tem algum questionamento de origem religiosa para anticoncepção. E olha que eu fui presidente dessa comissão por dez anos.

Isso leva à discussão da realização dos abortos. Como a Febrasgo vê isso? Há algum levantamento algum alguma estimativa de quantos abortos ocorrem no país?

Eu não saberia te dizer. A gente acaba tendo acesso a essas informações pelos dados que são oficiais do Ministério da Saúde. A Febrasgo não tem esse escopo, porque ela é uma federação de associações médicas que tem muito mais foco científico, de discutir as questões com fundamentos científicos. Na nossa última discussão sobre o assunto a Febrasgo defendeu a descriminalização do aborto. Mas essa informação ficou truncada. A gente não disse que defendia a legalização do aborto. São coisas diferentes.

Uma das queixas das mulheres em relação à atual lei sobre a laqueadura é que mesmo as que são enquadradas a realizar o procedimento pelo SUS enfrentam resistência, seja porque esbarram na recomendação de um médico, seja por conta de etapas burocráticas. Há críticas de que as candidatas são desencorajadas por serem jovens, ou por não terem filhos. Como o senhor vê isso?

Nos serviços bem estruturados de planejamento contraceptivo não pode ter esse tipo de barreira. É preciso seguir a lei. A pessoa precisa manifestar o desejo de fazer a cirurgia e depois passar por uma orientação mais aprofundada de uma enfermeira. Depois ela é encaminhada para a assistente social e por último ela passa pelo médico, que vai efetuar a cirurgia. Não pode realmente haver alguma restrição sem que não haja uma contraindicação médica. Isso é uma falha grave e que precisa ser corrigida. Quando isso ocorre em geral acaba em judicialização. A pessoa acaba procurando e conseguindo. Eu não vejo muito isso. A gente vê queixa de isolados, com uma ou outra pessoa que fala, mas a maioria que segue a normatização vai muito bem. Se está na lei a gente tem que seguir. Não se pode criar obstáculos para a pessoa por questões pessoais. Ninguém recomenda isso. Todas as entidades seguem rigidamente essas regras. Teria que ver caso a caso.

Em Jundiaí (SP), no ano passado, uma mulher teve uma decisão favorável na Justiça ao solicitar indenização a um hospital e ao município porque ela teria sido submetida a laqueadura sem autorização dela.

É, eu sei, por coincidência eu trabalho aqui. Não fui eu que fiz o procedimento e não sei detalhadamente sobre o caso. O que fiquei sabendo foi por alto. Mas o que chama atenção é que em alguns casos as pessoas processam os profissionais por questão econômica, porque ninguém faz uma laqueadura por dinheiro, principalmente em hospital público. O profissional fez a laqueadura depois de ter feito os trâmites normais, mas aqui acontece de ter esse tipo de arrependimento da paciente. O objetivo do médico é sempre ajudar. É interessante a gente pensar sempre nesse outro lado também.