De acordo com o Fórum Nacional contra a Pirataria e Ilegalidade, as perdas de 15 setores econômicos por conta da evasão fiscal decorrente do contrabando foram de mais de R$ 290 bilhões em 2019. Grande parte desse contrabando entra no País pela Tríplice Fronteira. E o trabalho de combate a esse tipo de crime depende de cooperação entre as polícias do Brasil, Paraguai e Argentina.

Imagem ilustrativa da imagem Cooperação no combate ao contrabando
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É o que defende Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo). A instituição é uma das protagonistas de uma iniciativa para capacitar policiais que atuam nas fronteiras do País. O acordo de cooperação foi assinado também pelo Ministério da Justiça e conta com apoio financeiro do PMI IMPACT, programa global da Philip Morris International para combate ao crime organizado e ao comércio ilegal.

A meta da capacitação, que vai treinar 500 policiais dos três países, é reduzir a assimetria entre as instituições que atuam para conter o comércio de produtos falsificados e contrabandeados, além de reforçar os termos de cooperação entre os Poderes Judiciários e promover a troca de inteligência e a capacidade operacional entre os participantes.

A legislação e execução das leis é muito diferente entre os três países?

Existem diferenças importantes. Nós fizemos um atlas comparativo do sistema de justiça dos três países. Temos um módulo todo dedicado ao problema da cooperação e às diferenças que existem em termos de base legal nos três países. Mas temos a vantagem de que existe um sistema interamericano de segurança multidimensional, criado pela a OEA (Organização dos Estados Americanos), que ajuda a criar uma base comum de acordos nessa área. Temos instrumentos em número muito maior do que tínhamos há uma década. São instrumentos de cooperação que possibilitam, por exemplo, a busca e perseguição ampliada no outro país, próximo à fronteira. São instrumentos desenvolvidos com base nessas normativas gerais do sistema interamericano de segurança e defesa. Há um esforço na região para se criar uma base comum de legislação na área criminal. No curso a gente vai explorar e mapear quais as diferenças por meio do atlas. A gente vive um momento interessante de aumento da cooperação, de novos tratados que permitem uma integração mais eficaz entre os países no controle desses ilícitos transfronteiriços.

Como as perdas decorrentes da transnacionalização dos mercados ilícitos acontece mesmo com com o arcabouço legal que existe nesses países?

A economia dos produtos falsificados é gigantesca. A região tem um ponto fraco que é a legislação paraguaia em várias áreas relacionadas à importação desses produtos da China. Esses produtos, na maioria dos casos, vêm de contrabando para o Brasil. Então o Paraguai virou uma plataforma de importação desses produtos, de todas as áreas: eletrônicos, roupas, medicamentos, defensivos agrícolas. A preocupação é grande porque a demanda em cada um desses mercados é muito significativa. Você pode comprar uma roupa falsificada de uma grife por menos de um quinto do valor da roupa original. Isso atrai consumidores. E a gente não pode esquecer que por trás de toda essa engrenagem têm consumidores comprando esses produtos. Essa demanda é atendida por organizações criminosas que atuam em escala global. Há falsificação, quebra de propriedade intelectual, exportação desses produtos, entrada ilegal no país. Cada elo dessa cadeia conta com a participação de organizações criminosas que abastecem esse mercado consumidor. O que acho difícil nesse trabalho das polícias, que exige um quadro de cooperação crescente, é que estamos lutando contra mercados grandes e muito dinâmicos e que existem zonas de sombra de capacidade de controle por parte das instituições. O tabaco é um setor entre vários e a situação é grave porque o tabaco também produz obviamente danos para a saúde. São produtos de pior qualidade, assim como medicamentos, como os eletrônicos. Toda essa indústria causa grande prejuízo não só para as empresas legais, mas também aos consumidores que consideram essa possibilidade de substituir um bem legal por um bem falsificado.

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Esse comércio ilegal também alimenta o crime organizado, não?

Sim. O crime organizado surge a partir dessas oportunidades. Para burlar o controle da fronteira surge uma organização especializada nesse nicho. A distribuição e armazenamento desses produtos próximo aos grandes centros consumidores exige proteção da polícia. Isso permite a corrupção e o crime organizado é um tipo de atividade criminal que se desenvolve a partir desses nichos de mercados ilícitos. Ele opera e controla esses nichos muitas vezes de forma monopolista, ou seja, só existe uma organização que cuida de um ponto de passagem da fronteira. E principalmente usa de violência e de intimidação para garantir esse controle. A grande característica do crime organizado é o uso da violência, da corrupção e da ameaça para garantir que aquele negócio ilícito seja operado por aquele grupo.

Como se combate a rede de informação que o crime organizado tem ao infiltrar-se nas instituições? É difícil fazer esse trabalho?

É difícil, mas é necessário e urgente. A indicação dos participantes para o curso é feita pelas polícias. É um curso aberto a qualquer policial que queira fazer. Não temos nenhum tipo de controle de integridade. Não temos os antecedentes [criminais]. O policial é indicado pelas instituições e será bem recebido. O grande desafio está nas mãos das instituições policiais, que precisam desenvolver instrumentos de controle interno eficazes. Precisa ter corregedoria, precisa ter supervisão e investigação, porque esse tipo de crime organizado é muito agressivo e é capaz de se infiltrar em instituições de diferentes tipos. É preciso que as instituições tenham a capacidade de investigar e conter essas ameaças. Esse é o grande trabalho do controle interno das polícias. É fundamental para vencer esse problema. Sem procedimentos claros, sem estruturas capazes de investigar, de punir, a corrupção realmente prospera. O nosso lado aqui é educar e treinar. É o lado acadêmico de uma universidade.

Ao mesmo tempo tem o problema das penalidades inadequadas e das autoridades de fiscalização sobrecarregadas. Isso é um fator desmotivador para o agente que está na ponta?

O policial tem elemento de vocação e paixão pelo trabalho, que também é fundamental. As condições são sempre ruins, tanto salariais e quando as condições de trabalho. Mas é incrível como existe gente comprometida, séria e envolvida. Em todos os estudos, em todos os países que visitei e trabalhei com polícia, este é o elemento fundamental. A gente sente no ar aquele clima de compromisso, aquele entusiasmo no trabalho. Acho que isso é até mais importante que o salário direto. O bom policial tem um senso moral, um senso de justiça e de engajamento público muito desenvolvido. Se não tiver, melhor procurar outro trabalho, porque não é para quem busca recompensas materiais e, principalmente, não é para quem busca recompensas rápidas. Tudo é muito de longo prazo. Mesmo assim tem gente motivada a se sacrificar por isso, pelo trabalho policial, pela segurança, e pela comunidade.

Qual impacto esse treinamento deverá ter nos próximos meses ou anos?

O que a gente espera é que os treinados no curso de educação a distância tenham um papel multiplicador indireto, de levar um pouco adiante as boas práticas aprendidas. Teremos no ano que vem um curso presencial para aqueles que se destacarem nesse curso a distância. Pretendemos criar um núcleo duro de policiais treinados, em torno de 80 a 100 policiais, que serão reunidos em um mesmo local, em Foz do Iguaçu, no ano que vem. A ideia é que esse curso vire uma atividade quase permanente, que haja novas edições atingindo mais policiais e criando uma cultura de policiamento de fronteira integrado, uma cultura de cooperação com os países vizinhos. Uma cultura em que a compreensão sobre os mercados ilícitos transfronteiriços seja assimilada. É o que gente espera: preparar o policial para o seu trabalho nessa região.

Com essa cooperação internacional é possível estabelecer uma base normativa institucional comum como ferramenta de incremento?

Exatamente. A gente quer colocar isso no “chão de fábrica”, na base do sistema de operação. O homem e a mulher que estão trabalhando como policial de fronteira devem ser conhecedores das leis e dos problemas que estão enfrentando e estar preparados para o trabalho em cooperação. É preciso transformar o marco normativo em prática institucional e operacional.

Analisando a tipologia criminal, temos mais pontos similares ou diferentes em relação aos outros países?

Mais similaridades. O Brasil tem uma legislação mais avançada no que diz respeito à tipificação de crime organizado. E mais recentemente foi atualizada no pacote anticrime do ex-ministro Sergio Moro, o que permitiu avançar em algumas ferramentas de investigação de crimes complexos como corrupção e crime organizado, não só [tráfico] de drogas, mas de armas e de produtos falsificados nessa região. O Brasil tem uma legislação mais atualizada e internalizou mais os princípios da Convenção de Palermo [Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, assinada em 2000], que é o grande marco normativo internacional para essa área. Mas Paraguai e Argentina têm avançado muito também na mesma direção. O Brasil tem uma legislação bem interessante e atualizada nessa área.

Com esse treinamento transnacional é possível criar uma ação bastante padronizada entre os três países?

Esse é o grande resultado desse esforço. Mais do que padronização normativa, uma padronização operacional que atinja a base do sistema policial.